O Cristianismo não é uma religião branca e ocidental
Entrevista com Onleilove Alston – Os Cristãos da Letra Vermelha
(Traduzido por: Sara Tironi)
NOTA DO EDITOR: enquanto muito evangélicos brancos se preocupam com o Black Lives Matter [1] ser um movimento subversivo, aqui nos Cristãos da Letra Vermelha somos gratos por membros de nossa rede que têm compartilhado, já há alguns anos, as boas novas do Jesus que não é branco. Onleilove Alston é uma de nossas grandes professoras que tem nos ajudado a enxergar o motivo pelo qual a encarnação do Evangelho em movimentos como o Black Lives Matter é uma boa nova para todos nós. Estamos felizes em dar destaque à voz dela hoje.
1) Compartilhe conosco um pouco do pano de fundo da sua fé. Quando você começou a seguir Jesus?
Eu não fui criada em nenhum sistema de crença específico, ainda que a minha mãe fosse ateia e meu pai estivesse em um ramo da Nação do Islã.
Quando eu tinha cerca de sete anos, minha família ficou desabrigada e meu irmãozinho e eu entramos em um programa de acolhimento familiar em casas de parentes e começamos a morar com minha avó e minha tia. Com dez anos de idade, algo me levou a pegar o livro de Salmos e eu comecei a orar de manhã, ao meio-dia e à noite. Eu hoje acredito que era o Espírito Santo que estava me direcionando! Eu fiz isso por quatro anos e então minha tia disse, “Alguém precisa levar essa menina para a igreja”. Eu comecei a ir à Igreja Batista Missionária Greater Bright Light. Eu respondi a um chamado no altar, fui batizada na semana seguinte e comecei a receber a comunhão.
Eu também amava ler e aprender sobre a história negra. Eu lia Malcolm X e Dr. King e pensava que todas as igrejas estavam envolvidas em questões de direitos civis. Essa era a minha expectativa.
Quando eu estava na [Universidade de] Penn State, eu me juntei aos Navigators, e comecei a aprender sobre a cultura evangélica. Eu tenho muito respeito por eles e possuo muitos amigos por causa desse grupo. Mas foi nessa época que eu também comecei a perceber uma separação entre fé e justiça, o que era muito estranho para mim. Quando eu me converti, Jesus salvou minha mente e corpo da perda do lar, do sistema de acolhimento sócio-educativo onde eu poderia ter facilmente terminado na prisão. Para mim, fé e ação social eram completamente atadas uma a outra.
Minha relação com Deus era muito próxima quando o Espírito Santo me conduziu para si. Antes de eu me envolver fortemente na igreja, eu tive uma relação bastante vigorosa com Deus. Mas por meio de minha atividade na igreja, eu senti que as pessoas estavam tentando me moldar dentro dessa cultura ocidental branca – mesmo na igreja negra. Eu quase abandonei minha fé na faculdade, mas, como minha experiência de conversão foi tão poderosa, não pude fazer isso. Porém, ainda havia essa tensão entre a cultura ocidental, a cultura bíblica, e minha cultura enquanto pessoa afrodescendente.
2) Como você resolveu essa tensão?
Na Penn State, eu cursei uma disciplina de estudos sobre religião afroamericana na qual eu li “O Deus dos Oprimidos” de James Cone. Eu o reli durante aquele verão. Eu comecei a ver a Bíblia dentro da minha realidade. Isso tornou claro aquilo que eu havia sido chamada para fazer em comunidades urbanas em geral, e na zona leste de Nova York de forma particular.
Isso me fez enxergar minha realidade no Evangelho muito mais do que a média dos evangélicos. Eu escutava o Focus on the Family e Charles Stanley, mas eu lutava para integrar sua forma de cristianismo à minha vida cotidiana.
3) Você é apaixonada pelo que? Em que você trabalha diariamente?
Em relação a minhas atividades diárias, eu sou Diretora Executiva do Faith in New York, uma afiliada da PICO[2], uma federação de 70 congregações que organizam atividades baseadas na fé para criar políticas justas em nossa cidade enquanto constroem uma comunidade de amor. Eu também lidero um trabalho com mulheres sobre Teologia da Libertação para a rede PICO, em que mulheres de fé estão fazendo seu trabalho de justiça e se reunindo em retiros, pensando sobre como organizar atividades com fé, e centradas na participação de gênero.
Eu sou a fundadora do Prophetic Whirlwind, uma organização que provê materiais de estudos bíblicos e promove a educação via mídias sociais, palestras, e workshops sobre as raízes africanas do cristianismo e da fé judaica. Essa é uma grande paixão minha.
Até 1869, Israel estava ligada ao Egito – ligada a toda África. Foi apenas quando o Canal de Suez foi terminado que Israel se separou da África. Inclusive, até o princípio dos anos 1900, Israel era considerado como nordeste africano.
O mundo inteiro se abriu para mim e revelou questões que eram importantes para cristãos negros, e cristãos em geral. Nós realmente separamos o cristianismo da fé dos hebreus. Mas os primeiros crentes continuaram a celebrar a Páscoa e o Sabbath. Na cultura hebraica, a salvação é de todos – da comunidade inteira – não apenas do indivíduo. Essa é a norma na cultura africana.
É importante entender que a Bíblia é um livro multicultural. Meu trabalho é sobre reconciliar Jesus com sua cultura – sua cultura hebraica. Se você está tentando entender o cristianismo em um contexto ocidental, você ficará perdido.
É muito importante para os cristãos se conectarem com as raízes hebraicas de sua fé, porque de outra forma sua fé se tornará incoerente, será ocidentalizada e transformará a brancura em ídolo.
4) Você escreve e fala bastante sobre a importância de entender a negritude da Bíblia. Como isso se encaixa em nossa teologia?
Na história da igreja, os primeiros crentes eram hebreus e eles ainda celebravam o Sabbath no Sábado e se reuniam aos Domingos. Eles não viam sua aceitação de Yeshua como um abandono de sua fé judaica. Yeshua estava chamando seu povo de volta à pureza da Torah.
Mas quanto mais gregos e romanos se convertiam, e o Cristianismo ia se tornando a religião do Império, ele foi se enfraquecendo e se distanciando de suas raízes hebraicas. Por exemplo, o termo ajudadora (“helpmate”[3]) é Ezer Kenegdo em hebraico e significa muito mais do que apenas uma auxiliadora, muito mais do que a explicação que nos foi dada. Desse modo, entender as raízes judaicas de nossa fé é incrivelmente importante.
É ainda mais poderoso entender as raízes culturais de nossas mães e pais da Bíblia. Marcos foi o pai do Evangelho na África. A Última Ceia e o Pentecostes se deram na casa de sua mãe, e ela era uma judia africana de Cirene. Eles eram refugiados. Os imigrantes sabem disso hoje? Irmãs e irmãos negros sabem disso hoje? Seria incrivelmente empoderador se nós conhecêssemos essas histórias.
Então houve um grande êxodo reverso a partir de Israel de volta para o Egito nos tempos bíblicos. As duas porções de terra eram ligadas, elas se pareciam e possuíam climas semelhantes. Quando Marcos e sua mãe precisaram deixar Israel, eles foram para o Norte da África. É um lugar para onde muitos judeus foram. Thomas Oden é um pesquisador da Eastern University e sua pesquisa abriu meus olhos. Marcos nasceu na África e morreu na África. Santo Agostinho era africano, sua mãe Mônica era africana, e ao morrer, ela disse a Santo Agostinho para carregar seus ossos de volta para a África.
Ou nós teremos um cristianismo ocidental ou teremos um cristianismo baseado na verdade da Bíblia, que é o que pode transcender a cultura. Quando você o separa de suas raízes, a versão embranquecida ocidental e frequentemente americana fere a todos, inclusive as pessoas brancas.
5) Conte-nos um pouco sobre seu trabalho com grupos negros em Israel. O que cristãos americanos sabem e entendem sobre eles?
Vou contar um pouco da história da Bíblia. Havia 12 tribos de Israel, e cada uma recebeu profecias de seu pai Jacó. Tudo correu bem por um tempo, mas então as pessoas começaram a seguir ídolos. No Velho Testamento, a idolatria é sempre associada à prática de injustiças. Injustiça significava manter relações sexuais injustas e relações econômicas injustas, entre outras coisas. As dez tribos do norte foram tão longe com sua idolatria que foram levadas pelos assírios.
Levi, Judá e Benjamin foram levados cativos à Babilônia alguns anos depois, mas eles puderam voltar e se reconstruir, enquanto as outras dez tribos não.
Adiantando para Jesus. Ele disse desde o começo: “Eu vim somente para as tribos perdidas de Israel”.
Isso é significante uma vez que a profecia bíblica afirma que quando essas tribos começarem a voltar para a Torah, o Messias retornará. Muitos pesquisadores, principalmente de fé judaica, viajam ao redor do mundo, como Indiana Jones viajando em busca da arca perdida, buscando essas tribos. E investigações mostram que muitas delas estão na África.
Os igbos na Nigéria são a tribo de Gade e devido ao tráfico transatlântico de escravos, um em cada quatro afroamericanos possui ancestralidade igbo. Sua história oral prova isso. Há muitas tribos na África que possuem tradições hebraicas antigas. Pesquisadores tem documentado isso repetidamente.
Isso também não é importante apenas em termos da profecia sobre o retorno de Jesus. É importante porque a Bíblia diz que essas tribos seriam espalhadas pelos quatro cantos da Terra. Eles parecerão diferentes, falarão línguas diferentes, mas eles serão reunidos em volta de uma fé comum. Na profecia, é dito que eles serão os mais pobres e oprimidos. Todos nós sabemos que Jesus nos disse para cuidar do menor desses.
A história dos hebreus se iniciou com pessoas saindo da escravidão, e Deus não desistiu delas. Essa é uma boa notícia porque significa que Deus nunca vai desistir de seu povo, ele nunca vai desistir de nós.
Acompanhe o ministério de Onleilove, Prophetic Whirlwind, no Facebook e Instagram.
Traduzido de: Christianity is Not a White Western Religion
[1] Nota de tradução: “Vidas Negras Importam”, em tradução livre.
[2] Nota de tradução: People Improving Communities through Organizing.
[3] Nota de tradução: Termo em português utilizado na Bíblia em Gênesis 2:18, segundo as seguintes versões: Almeida Corrigida e Revisada Fiel (“E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele”), Almeida Revisada Imprensa Bíblica (“Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora que lhe seja idônea”) e Sociedade Bíblica Britânica (Disse mais Deus Jeová: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora que lhe seja idônea”). A Nova Versão Internacional utiliza a expressão “alguém que o auxilie e lhe corresponda” (“Então o Senhor Deus declarou: Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda”).
Leia também:
+ Os Cristãos da Letra Vermelha
+ As Mulheres na Vida de Jesus
Ivani Medina
Tudo tem sua razão de ser e o cristianismo não é exceção. No entanto, como a academia busca renovar o endosso da versão autobiográfica do cristianismo, contrariando a expectativa de esclarecedora máxima que temos dela, tomei o partido da história motivado por uma desconfiança secular. Por conta disso, a versão que apresento é rejeitada com fúria por pessoas religiosas e com desconfiança da parte de outros que embora não sejam crentes, estão acostumados às abordagens usuais. A abordagem marxista que apela para a luta de classes é um exemplo. Assim sendo, o leitor ao se deparar com algo absolutamente diferente do comum, ainda que o texto esteja amparado por fatos confirmados pela história, em oposição à versão oficial que a história nada confirma, senão na opinião de historiadores em defesa da cultura ocidental, fica impactado. A grande diferença entre ambas as versões é que a aquela aqui apresentada pode ser seguida como num dia ensolarado, segue-se pegadas no barro depois de uma noite de chuva. A outra não, pois o céu não guarda vestígios.
https://www.facebook.com/aorigemdocristianismoemreflexao/posts/1544695522392311