Como Hubble, James Webb e seus campos profundos podem nos conduzir a uma espiritualidade saudável.

Por Daniel Barros da Silva*
Do meu ponto de vista, telescópios são instrumentos sagrados; não vejo como descrever de outra maneira objetos que nos conectam aos luzeiros celestes. Essa conexão se torna ainda mais sagrada se considerarmos que a sobrevivência dos nossos antepassados dependeu dos ciclos das estrelas, que os orientavam sobre tempos e estações: de plantio, colheita, procriação dos animais, tempos de abundância e tempos de racionamento.

 

Outro aspecto sagrado desta conexão, é o senso de direção. As mesmas constelações que guiaram os marinheiros pelos tenebrosos mares antigos, guiaram também os astronautas, incluindo Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins em seu trajeto rumo à Lua, e ao “pequeno passo para um homem, mas grande salto para a humanidade”.

 

Nossa conexão com as estrelas se torna tanto mais complexa e completa quanto mais somos capazes de refinar e ampliar a capacidade de nossos instrumentos, os Telescópios, que ampliam nossa visão para aquilo que está longe. Entretanto, quanto mais longe estão as estrelas, mais sua luz se dissipa pelo caminho, e desta forma nos parece que ao nosso redor existe apenas escuridão.

 

Porém, uma das façanhas mais incríveis de nossos telescópios mais notáveis é a capacidade de enxergar luz mesmo na escuridão mais densa. Isso se chama pesquisa de campo profundo. Ou seja, nós apontamos o telescópio para uma região extremamente escura do céu, onde parece não haver luz alguma, e com tempo suficiente, ele nos mostra milhares de galáxias em regiões do céu que, a olho nu, teriam o tamanho de um grão de areia.

 

A pesquisa de campos profundos carece de tempo. A pálida luz que vem de galáxias distantes demora para sensibilizar mesmo os mais sensíveis de nossos sagrados instrumentos. Aqui cabe uma explicação para entendermos a enormidade da dificuldade de captar essa luz distante.

 

Os físicos nos ensinam que a luz dos astros distantes no espaço, também está distante no tempo. Pode parecer difícil, mas é fácil explicar. A estrela mais próxima de nós é Próxima Centauri, a 4 anos-luz. Isso significa que a própria luz leva 4 anos para vir de lá e sensibilizar os nossos olhos (ou nossos instrumentos), e, por isso, sempre vemos como Próxima Centauri era há 4 anos atrás, e a menos que possamos viajar até lá, nunca veremos como a estrela mais próxima de nós realmente é.

 

Perceba que estrelas a mil anos-luz de distância no espaço também estão distantes de nós em 1000 anos no tempo. Como era a vida humana há apenas mil anos? Nós temos dificuldade de conceber a vida de nossos antepassados que viveram séculos antes de nós, quanto mais difícil fica a nossa compreensão se trocarmos séculos por milênios?

 

Por isso, precisamos muito desenvolver não apenas sensibilidade, mas também paciência, quando lidamos com luzes distantes – ou, como ouvi em uma pregação inesquecível – quando lidamos com o sagrado do outro. Talvez nos ajude a compreensão de que não existe diferença entre a luz que eu conheço e a luz que o outro conhece, o que existe apenas é a distância entre mim e o outro. Também nos ajuda, se compreendermos que: a luz que me ilumina só parece mais brilhante porque está mais próxima de mim.

 

Aqui preciso pedir uma licença, que julgo poética, para lidar com este assunto deveras complexo. Peço a gentileza de me permitirem citar algumas palavras de Jesus de Nazaré, quando perguntaram-lhe:

– Mestre, qual é o grande mandamento na Lei?

Respondeu-lhe Jesus: 

– Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.

(Mateus 22:36-40)

 

Partindo destes dois princípios, eu gostaria de propor uma forma diferente de enxergar a espiritualidade. Na verdade, essa forma é bem antiga, só vem sendo esquecida. Esquecida porque ultimamente nós temos nos tornado cada vez mais eficazes na construção de muros, e cada vez menos adeptos à construção de pontes. Espiritualidade neste contexto representaria o compromisso com a construção de dois tipos de pontes: pontes entre Deus e pessoas, e pontes entre pessoas e outras pessoas.

 

Ao contrário do que muita gente pode pensar, a arqueologia moderna, em especial pela descoberta do templo em Göbekli Tepe, na Turquia, nos sugere que a espiritualidade organizada precede a civilização. Este antigo complexo de templos é anterior à prática da agricultura organizada, em uma época de tribos nômades de caçadores-coletores.

 

Não posso fazer afirmações pois não sou especialista na área, mas me parece lícito sugerir que a organização da religião permite a construção de regras mínimas de convivência entre tribos diferentes. Isto porque as regras podem ser inconvenientes para o indivíduo, mesmo quando são vitais para a sobrevivência do grupo. Mas quando eu me submeto a uma regra ditada por “deus” eu não me submeto à você, mas a uma “ideia” que é tão superior a nós dois que a obediência a esta regra se torna menos pesada, mesmo que seja de um ponto de vista psicológico.

 

Talvez esta seja a razão de Jesus ensinar que o amor a Deus precede o amor ao próximo. Pois a compreensão de que há valores superiores a todas as pessoas permite que todos se submetam a regras mínimas de convivência sem a necessidade de aplicação de força ou violência, mas por obediência a um ideal maior, comum a todos.

 

Essa ideia não é assim tão diferente daquilo que compreendemos hoje como a necessidade de submissão às leis, e às autoridades constituídas. Exceto em situações de extrema opressão, a obediência às decisões do poder Judiciário deve ser absoluta, pois este é um dos fundamentos mais básicos do Estado Democrático de Direito. Ou como diz o apóstolo João: “Porque nisto consiste o amor a Deus: em obedecer aos seus mandamentos. E os seus mandamentos não são pesados.” 1 João 5:3

 

O segundo mandamento trata do amor ao próximo, construído e constituído a partir do amor a Deus. Essa conexão tríplice Eu-Deus-Próximo pode ser melhor compreendida a partir de outro texto sagrado em forma de poesia:

 

Deus é luz; nele não há treva alguma.

Se afirmarmos que temos comunhão com ele, mas andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade.

Se, porém, andamos na luz, como ele está na luz, temos comunhão uns com os outros…

(1 João 1:5-7)

 

E aqui voltamos aos instrumentos sagrados, e à nossa conexão com esta luz que vem dos céus. “Deus” não é um nome próprio, como José ou Maria, na verdade o termo “Deus” não é nome algum, algo que aprendi em outra pregação inesquecível. A palavra “Deus” deve ser compreendida muito mais como um termo “técnico”. Quando eu uso a palavra “Deus” eu estou apenas tentando comunicar a outra pessoa do que eu estou falando, e a outra pessoa poderá compreender a que “assunto” eu me refiro.

 

O termo “Deus”, portanto, não é uma definição, é apenas uma referência. Deixe-me explicar melhor o que eu quero dizer. Há uma narrativa bíblica que descreve o encontro de Moisés com Deus que se manifestava em um arbusto em chamas (a sarça ardente). Perto do final da conversa, Moisés pergunta a Deus: “qual é o teu nome?” A resposta de Deus é tudo, menos um nome. Deus responde “Eu sou o que sou.” É como se dissesse: eu não posso ser definido, limitado, contido ou compreendido, eu sou aquilo que eu sou.

 

Essa passagem é maravilhosa, pois propõe um entendimento sobre Deus que é tão abrangente que pode nos permitir construir pontes entre todas as religiões, e até com os ateus mais estritos: Deus não existe, Deus é! E nós podemos compreender Deus de maneiras diferentes, e isso não é o mais importante, inclusive para o próprio Deus. Pois, como dito anteriormente, o amor a Deus consiste em obedecer aos seus mandamentos.

 

A dificuldade passa a ser, então, a de perceber Deus na visão do outro sobre Deus. Da mesma maneira que temos dificuldade de enxergar luzes distantes. Mas, novamente, os campos profundos podem nos ajudar. Se compararmos o campo profundo do telescópio Hubble, mais antigo, com o do James Webb, mais moderno, temos que este último consegue enxergar melhor a luz que atravessa a poeira cósmica pois “enxerga” no comprimento de onda do infravermelho, ou seja enxerga calor.

 

De um ponto de vista simbólico, não é muito difícil associar calor com emoções. Ou seja, o esforço de construir pontes certamente é intelectual, mas também é emocional. Quando lidamos com o sagrado do outro, muitas vezes percebemos em nós mesmos respostas automáticas como o reflexo de aversão. E aqui é importante também desenvolver um senso de empatia: para se conectar com o sagrado do outro é necessário boa vontade, tanto intelectual quanto emocional.

 

CS Lewis em seu clássico “Cristianismo Puro e Simples” escreveu:

[A] hostilidade [teológica] vem mais da parte daqueles que estão à margem, …  [d]aquelas pessoas que não são membros de nenhuma comunidade. Acho isso curiosamente consolador. É no seu centro, onde habitam os seus filhos mais honestos, que cada comunidade está de fato mais próxima da outra em espírito, … [e] fala a mesma língua.

 

Desta maneira, os habitantes do centro dessas comunidades de fé, assim como os astrônomos, não se deixam cegar pelo véu daquilo que parecem trevas, mas buscam discernir luz através das brumas do espaço e do tempo. É um olhar para a compreensão que o outro tem do mundo à sua volta que pressupõe a existência de luz mesmo nas falhas da minha compreensão. É tratar o outro como a mim mesmo e aceitar que a luz que ilumina o meu caminho na direção do amor ao próximo é a mesma luz que ilumina o próximo na minha direção.

 

Os astros fascinam a humanidade desde seus primórdios, sejam sacerdotes, cientistas, filósofos, astrólogos, astrônomos, poetas ou simplesmente amantes. O Sol rege o dia, a Lua, a noite. As constelações mostram o caminho aos marinheiros e também o tempo certo para plantar e colher. E nossos sagrados instrumentos, os telescópios, ao captar luz e calor de estrelas distantes, nos emulam a enxergar luz no sagrado do outro, com paciência, empatia e boa vontade.

E assim, que o Eterno nos permeie e transforme a todos em sacerdotes pontífices, empenhados na construção destas pontes entre o Transcendente e os Mortais, e entre o Eu e o Próximo.

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*Daniel Barros da Silva é médico especialista em Endocrinologia. Foi professor de Professor de Clínica Médica na Universidade Estacio de Sá e, desde sempre, um leitor assíduo de Física. Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Pós-Graduação em Endocrinologia pelo Instituto de Endocrinologia da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. É Batista de formação. Foi co-fundador do Grupo da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) no Instituto Biomédico da UNIRIO, e Diretor Suplente do Diretório Acadêmico Benjamin Batista (DABB).

 

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