A idolatria do(de) mercado: interlúdio
Diálogo, debate, repercussão, comparação e paternidade
Gostaria de iniciar este post com um pedido de desculpas pela demora na continuidade da série*. Tenho recebido mensagens de leitores perguntando sobre a sequência das postagens e peço, portanto, desculpas a eles; como também ao meu interlocutor, Franklin Ferreira, que aguarda a conclusão da série para, possivelmente, responder. Nesse breve post de intervalo vou, então, abordar alguns eventos que ocorreram desde que comecei os textos e que – penso – valem a pena como “interlúdio” do debate. A saber: a paternidade; as tensões/divisões talvez resultantes da série; e alguns comentários feitos aos textos. É absolutamente impossível não começar pelo primeiro.
A Paternidade
Desde o acontecimento incrível e indescritível em termos práticos que foi o nascimento da minha filha, as reflexões teológicas que eu vinha fazendo no tema desta série de postagens foram alegremente substituídas pelos momentos de espiritualidade proporcionados por essa nova experiência. A atividade de “ninar” um bebê, seu filho, uma singela e aparentemente frágil criatura, nos braços, se tornou para mim um ato essencialmente espiritual. Nesse sentido, a interrupção da série em si foi permeada pela intensidade do amor, beleza e cuidado que me tomaram de súbito, com o nascimento dela.
Seria talvez óbvio dizer que a experiência da paternidade transforma a maneira como enxergamos e nos relacionamos com nossos pais: a paternidade nos ensina que o relacionamento que eles têm conosco transcende nossa própria compreensão, uma vez que esse relacionar se iniciou antes da nossa própria construção, em termos modernos, como sujeitos. Mas o que talvez seja menos óbvio é que a paternidade é capaz de transformar nossa relação com Deus. Ao segurar uma criatura de aparência frágil nos braços, o impulso de protegê-la me faz lembrar do verdadeiro sentido porque chamamos a Deus de ‘Pai’. Se o amor desse Deus por nós, suas criaturas, se assemelha ao que temos por nossos filhos, então é possível compreender, ao menos em parte, a angústia do Criador diante da queda e do sofrimento humano.
Nesses dias, as figuras de Abraão e Isaque me vêm constantemente à mente. Trata-se da narrativa de um pedido de sacrifício à sombra de um Deus que, diferentemente de todos deuses que se conheciam à época, termina por demonstrar que não exigiria do seu povo os mesmos sacrifícios e holocaustos humanos: os sacrifícios de seus próprios filhos. Talvez a melhor descrição literária desse episódio bíblico seja aquela de Kierkegaard, que explora as diferentes possíveis reações de Abraão após o teste de sua fé mediante ao terrível pedido de sacrifício que lhe é feito por Deus:
“Rojou-se na terra e pediu perdão a Deus pelo seu pecado, perdão por ter querido sacrificar Isaac, perdão por ter esquecido o dever paternal para com o filho. Tomou, de novo, com mais frequência o solitário caminho da montanha, mas não encontrou repouso. Não podia conceber que pecara por ter querido sacrificar o seu mais precioso bem, por quem teria oferecido a vida mais de uma vez; e, se pecara, se nunca amara Isaac a tal ponto, não podia compreender como merecer o perdão de Deus — haverá, com efeito, mais horrível pecado do que o seu?”
(Kierkegaard, Temor e Tremor, p.199)
Ouvi uma vez, numa aula de história da filosofia, uma interpretação do episódio conforme narrado por Kierkegaard, que me fez tremer e temer: se Abraão se recusasse o sacrifício, poderia ser um herói em qualquer cultura humana. Porém, não seria o Pai da Fé. Se a fé é como Kierkegaard propõe, um paradoxo, um salto que suspende a moral, isso explicaria porque o amor é maior que a razão.
Mas passemos agora ao segundo ponto deste breve texto.
A repercussão da Idolatria do(de) Mercado
Durante esse curto período de interrupção na série, tanto o primeiro quanto o segundo post encontraram amor e ódio, razão e fé, e talvez já valha a pena perguntar: nesse meio tempo, quais os resultados iniciais e aparentes desse esforço de diálogo/debate teológico? Se por um lado algumas amizades se desfizeram no Facebook, e pessoas pediram para se desligar de igrejas (espero que apenas no universo virtual); por outro, muita gente se sentiu encorajada pela série, e isso mesmo dentre aqueles(as) que alegavam não ter “lado” no debate. Muito mais importantes que os comentários agressivos e o “patrulhamento” sofrido, no entanto, foram os abraços à distância que recebi de cristãos agradecendo pelo texto – o que me alegrou e me incentiva a continuar.
Contudo, não posso deixar de lamentar também as pessoas que, de maneira talvez tola, almejam inutilmente sustentar que uma determinada posição ideológica em relação a sistemas econômicos, instituições de estado, ou formas de governo humanas, sejam absolutamente incompatíveis com o Evangelho; ou as únicas compatíveis com ele – como defendi no segundo texto da série. Neste sentido, vale a pena lembrar um texto do John Stott, recentemente publicado aqui no Blog da Ultimato que, na sua simplicidade, nos chama à razão (e à fé). Dizia o “Uncle John”: “Na democracia somos convidados a ouvir humildemente uns aos outros e constatar que não temos um monopólio da verdade, enquanto continuamos perseguindo os propósitos de Deus para a nossa sociedade”.
Por fim, não posso me furtar de mencionar que Franklin esboçou três breves comentários ao meu texto, na sua página do Facebook. Aproveito a oportunidade do interlúdio, para respondê-los. Não se trata, no entanto, de respostas aos argumentos que levantei – que já eram, em si, uma resposta a textos dele. O que o autor fez foi buscar falhas aparentes na minha argumentação, que pudessem fazer meus textos ruírem como um todo. Como são comentários relativamente curtos, vou também respondê-los de maneira breve:
+ A comparação Guantánamo // Campo de Concentração
Franklin sugere que a comparação que fiz da Base de Guantánamo como um “campo de concentração”, no meu primeiro post, revela um certo relativismo moral que “ilustra como a ideologia precede a fé no ideário da esquerda”. Na verdade, campos de concentração não são apenas fenômenos históricos, mas modelos, mecanismos disponíveis à política moderna – inclusive democrática. Desenvolvi essa ideia um pouco mais em entrevista concedida a Revista do Instituto Humanitas da Unisinos, publicada aqui. Se Primo Levi descreve os campos de concentração nazistas como um lugar onde não havia porquês (ou razões), certamente o modelo se aplica ao Campo de Detenção de Guantánamo, onde a esmagadora maioria dos “detentos” não era sequer acusada formalmente de crime algum. Até a decisão da Suprema Corte dos EUA (em Hamdan v. Rumsfeld), de 2006, o campo era considerado como lugar fora da jurisdição daqueles que administravam a prisão. Certamente, o “gulag dos nossos tempos”, como já disseram.
+ Um diálogo de cegos, surdos, porém não mudos
Em comentário do dia 08 de abril, Franklin diz que tenho distorcido e ignorado as críticas dele à ideia de “Estado Total“. Por incrível que pareça, tenho a mesma sensação em relação a este comentário dele: sinto que Franklin ignora todo meu segundo texto para se concentrar no único parágrafo que começa com a palavra “talvez”. Este parágrafo, como é óbvio, está longe de ser o mais importante no texto. Na verdade, tratei a crise do autor com a esquerda totalitária decadente como uma discussão superada, dado que estados totalitários nos moldes soviéticos, hoje, são meramente vestigiais (como é a Coreia do Norte, que ele cita); por outro lado, Franklin não percebe que, de maneira muito mais preocupante, práticas e métodos desenvolvidos em regimes totalitários (de direita e de esquerda) têm se espalhado pelo mundo, para dentro das democracias liberais, como demonstrei nos textos anteriores.
Nesse post, Franklin dá a entender que ignorei o contexto da citação bíblica de Mt 22:16-22, optando por uma interpretação centrada no leitor quando, na verdade, propus a interpretação deste texto a partir de outros textos bíblicos (Mateus 6:19-34 e Mateus 19:16-30.) E, pior que isso, Franklin sugere que entendo que o texto trata da “abstração” denominada “mercado”, da maneira como entendemos hoje – o que iria contrariar minha própria argumentação, manchar a citação que fiz de John Locke, etc. Há um hífen bem grande no último parágrafo do meu texto, “– no nosso caso”, que pede o retorno do leitor: do contexto do texto bíblico para sua realidade, mas que parece ter passado batido pela leitura dele. Moeda, lastro, magia, idolatria/ideologia/cosmovisão (total) do capital, técnica, Karl Barth…nada.
+ A Origem do debate?
Em uma outra postagem no Facebook, Franklin reclama – com razão – de que atribuo a origem dos argumentos dele a um debate que travamos na internet (parte em público, parte em privado). Na verdade, os argumentos dele teriam origem anterior, tendo sido publicadas, em parte, em 2007. Como não tinha acesso a essa obra do autor – sua Teologia Sistemática – até muito recentemente, pude apenas presumir que os textos tinham origem naquela troca de e-mails.
Em breve, continuarei com as respostas às três outras teses. Peço paciência dos leitores, e agradeço demais as críticas, orações e sugestões até aqui.
Por: Marcus Vinicius Matos**
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*Os dois primeiros posts da série A Idolatria do(de) Mercado são: 1) A idolatria do(de) mercado: contra a Teologia Política Neoliberal; e 2) A idolatria do(de) mercado: o homem todo para o dinheiro (todo).
**Marcus Vinicius Matos é doutorando em Direito pelo Birkbeck College, na Universidade de Londres, onde leciona Teoria do Direito (Legal Theory II and II) e Direito de Propriedade (Property Law I – Land law). É também líder do ministério estudantil na igreja All Souls, em Londres.
Jorge Idalgo
Caro Marcus Vinicius,
Li em sua postagem anterior que você considera “um reducionismo” tratar de questões éticas bíblicas tais como casamento homoafetivo e aborto. Mas a Escritura cristã não considera tais assuntos reducionismo. Ambos são execrados e abominados do que ninguém menos que o Deus criador. A menos que você não considere a Bíblia a Palavra de Deus, essas questões não são de margem, mas estão no cerne da ética bíblica. Agora, se você não crê na Bíblia como inerrante e adere a uma ética subjetiva e totalmente imanente, então você está mais próximo do liberalismo do que do cristianismo. Se for esse o caso, devia se arrepender e voltar-se ao Jesus da Bíblia, o único que realmente redime e transforma. Li hoje a resposta de Pr. Franklin às suas postagens no blog Bereianos (http://bereianos.blogspot.com.br/2015/07/estadolatria-sobre-idolatria-da.html#.Va_MwehVhBe) . Por mais que você o critique em seu facebook e tudo o mais, as posições dele são claras – não ambíguas como as suas; talvez ele não seja tão suave, como você esperaria, mas ele empunha a bandeira da verdade, é ortodoxo e está do lado do Deus da Bíblia. E você, do lado de que deus está? O da imaginação dos homens e filósofos ou o da Bíblia? Escrevo com amor, não com rancor ou ira. Quero o seu bem e por isso, como alguém que já peregrinou um bocado nesta terra, ofereço esta palavra de exortação. Volte-se para a Bíblia, Marcus. Submeta sua visão política e cultural à autoridade das Escrituras. Isso vai te salvar. O contrário será condenação para você. Abraço de um leitor seu.
mvmatos
Caro Jorge,
Obrigado pelo comentário. Contudo, creio que vc se enganou quanto a minha posição – talvez tenha interpretado mal minhas palavras. Não considero que seja um reducionismo “tratar de questões éticas bíblicas tais como casamento homoafetivo e aborto”, a não ser quando…se trata mesmo de reducionismo.
Quanto as possíveis “ambiguidades”, se trata na realidade de rechaçar o “óbvio”: a posição fundamentalista e estereotipada do que é “ser evangélico” que, tanto no Brasil quanto no exterior, nos últimos anos, tem sido sequestrada por cristãos extremamente conservadores e moralistas – com uma moral, aí sim, reducionista. A quem quer adotar uma visão unívoca, que julga de antemão inequívoca e, além disso, fundamentalista; para cristão com esse tipo de posição, qualquer questionamento a suas posições teológicas e políticas tende a ser visto como uma “ambiguidade”. Mas não se trata de ambiguidades, mas de um chamado ao pensamento crítico e ao arrependimento.
Além disso, minha questão com o Pr Franklin se dá no contexto de uma disputa dentro daquilo que se denominou na história da igreja como Neo-Ortodoxia. As posições do Franklin são, a meu ver, incompatíveis com essa leitura. São, na verdade, fundamentalistas teologicamente; e neo-liberais (e, por vezes, conservadoras) do ponto de vista político.
No mais, segue abaixo a resposta que coloquei para o Jonatas (comentário próximo ao seu) e que serve como resposta também para seu comentário:
“Existe toda uma discussão sobre ética cristã que é extremamente relevante – e que nunca ignorei. Apenas a título de exemplo, a obra (talvez) mais famosa do sociólogo e jurista Max Weber tem o título de “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Certamente, é possível ser protestante/evangélico e dar atenção apenas a uma ética individualista – ou seja: aquela que se preocupa apenas e exclusivamente com assuntos de caráter “moralista”, observando preceitos bíblicos apenas na área “sexual” da vida. Isso é, sim, uma simplificação. Repare: nunca disse que isso não é importante; mas digo que se nossa ética se reduz a isso, teremos uma ética protestante simplificada e perigosa, e que é movida não pelo Espírito Santo – mas talvez por outros espíritos (como o do capitalismo). Mas isso é típico da posição fundamentalista da fé cristã que se expandiu no Brasil. E também é o cerne do que se procurou superar, por exemplo, com a teologia da missão integral.
Quanto a Paulo, ele disse coisas que abalaram o Império Romano em sua (talvez) principal estrutura: a escravidão. Mas também disse algo que deveria deixar todos os cristãos ditos de “direita” – e os entusiastas do liberalismo econômico – no mínimo com uma pulga atrás da orelha; me refiro a I Timóteo 6: 10.
Grato pelo seu comentário!”
Lucio A. de Oliveira
Olá, Marcus!
Você viu que os comentários foram ajuntados num artigo, incrementados com notas e afins? Vai considerar aos pontos colocados?
Eis o endereço: http://bereianos.blogspot.com.br/2015/07/estadolatria-sobre-idolatria-da.html#.VkqKU_mrTDf
Equipe do Blog Dignidade!
Olá Lúcio, sim, eu vi o post. Em breve retomarei essa série, e darei atenção a essa postagem também. Obrigado! Marcus.