Tolkien versus Lewis sobre fantasia cristã
David C. Downing
Traduzido por Gabriele Greggersen
A maioria das discussões sobre J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis enfatiza seu parentesco – sua fé compartilhada, seus interesses acadêmicos semelhantes em literatura e linguagem, seu amor mútuo por mitos, lendas e romance com personagens heroicos. Os acadêmicos também tendem a observar semelhanças no corpus de literatura de fantasia distinto criado por Tolkien e Lewis. No entanto, os dois autores diferiam significativamente em suas abordagens à literatura de fantasia, como fica evidente não apenas nos pronunciamentos que cada um fez sobre esse gênero, mas também nas fantasias que cada um criou de fato.
Tolkien e Lewis produziram, cada um por si, apologias da literatura de fantasia, Tolkien em “On Fairy-Stories” [“Sobre os contos de fada”] (Ensaios), Lewis em “Sometimes Fairy Stories May Say Best What’s To Be Said” [“Às vezes dos contos de fada são a melhor forma de dizer o que tem que ser dito”] (Sobre Histórias). Embora os dois ensaios compartilhem vários pressupostos, são as diferenças entre eles que melhor elucidam as ficções distintas criadas por Tolkien e Lewis.
A obra de Tolkien “On Fairy-Stories” (Sobre Contos de Fadas) afirma que o domínio exclusivo dos contos de fadas (agora mais comumente chamados de literatura de fantasia) é o reino de Faerie [fadas], o Reino Perigoso da magia e do encantamento onde os mortais comuns às vezes precisam se aventurar para cumprir uma missão. Para Tolkien, uma história de fadas autêntica não é simplesmente uma extensão de nosso Mundo Primário, mas a criação de um Mundo Secundário plausível e autoconsistente, sujeito a suas próprias leis. Tolkien sugere que foi dada muita ênfase à “representação ou interpretação simbólica das belezas e terrores [deste] mundo” (Essays [Ensaios], p. 51), sem atenção suficiente à subcriação. A fantasia, para Tolkien, é no fundo a “criação ou vislumbre de outros mundos” (Ensaios, p. 63).
A noção de que um artista é um criador de realidades alternativas não é nova. Mas a estratégia de Tolkien é sugerir que esse modelo muito elevado de criação artística é mais bem incorporado, não no romance ou no épico, mas naquele gênero humilde, a história de fadas. Da mesma forma que Tolkien argumentou em outro ensaio famoso que Beowulf deveria ser considerado como literatura, não como um artefato linguístico, aqui ele argumenta que os contos de fadas deveriam ser estimados como literatura, não como passatempos para crianças. Quando Edmund Wilson caracterizou a trilogia O Senhor dos Anéis do próprio Tolkien como “um livro infantil que, de alguma forma, saiu do controle” (citado em CARTER, p. 3), ele estava expressando o mesmo preconceito que Tolkien procurou denunciar em “On Fairy-Stories” [“Sobre contos de fada”].
A doutrina da subcriação era especialmente agradável para Tolkien, tanto como cristão quanto como escritor de fantasia. Como cristão, Tolkien podia ver a subcriação como uma forma de adoração, uma maneira de as criaturas expressarem a imagem divina nelas tornando-se criadoras. Como escritor de fantasia, Tolkien podia afirmar que o gênero escolhido era uma das mais puras de todas as categorias ficcionais, porque exigia a criação não apenas de personagens e incidentes, mas também de mundos para que eles existissem.
C. S. Lewis aparentemente subscreveu a teoria de subcriação de Tolkien e recomendou “On Fairy-Stories” àqueles que lhe perguntaram sobre suas próprias opiniões sobre fantasia. (GLOVER, pp. 30, 37) No entanto, Lewis nunca levou a ideia de subcriação tão a sério quanto Tolkien, e o próprio ensaio de Lewis sobre o assunto, intitulado “Às vezes, os contos de fadas podem dizer melhor o que deve ser dito”, tem um tom bastante diferente.
Esse ensaio breve, mas esclarecedor começa distinguindo dois lados do escritor: o autor e o homem. (Lewis usou o gênero masculino para denotar o caso geral, como era prática comum em sua época; vou seguir essa prática neste parágrafo que resume seu ensaio). O autor simplesmente escreve para liberar um impulso criativo. Ele começa com uma ideia ou uma imagem convincente “ansiando por uma forma” para chegar a alguma expressão coerente. Logo, porém, o homem entra no processo de escrita com seus próprios valores e propósitos, seu desejo de moldar a escrita para algum fim significativo. O autor pode escrever apenas para agradar – a si mesmo ou a seus leitores -, mas o homem está preocupado em agradar e instruir, em comunicar algo sobre quem ele é e como vê o mundo. Lewis ilustra o processo explicando que seus próprios contos de fadas, As Crônicas de Nárnia, originaram-se como uma série de imagens mentais que começaram a se conectar em linhas de histórias. Mas então, à medida que as narrativas começaram a tomar forma, Lewis percebeu que elas poderiam ser usadas para expressar, de forma imaginativa e de uma maneira nova, as verdades centrais do cristianismo.
Essa ênfase dupla no Autor e no Homem envolvidos na criação da fantasia pode parecer apenas uma pequena variação dos pontos de vista de Tolkien, mas explica em grande parte o caráter marcadamente diferente do trabalho dos dois homens – bem como o fato de que Tolkien nunca foi “capaz de desenvolver uma simpatia completa” (em suas próprias palavras) pelas histórias de fantasia de Lewis. (CARPENTER, p. 227) Embora Tolkien certamente tenha expressado seus valores implicitamente em O Senhor dos Anéis, ele afirmou o ato de subcriação do autor como um fim em si mesmo. Lewis, no entanto, concordou que um escritor não pode sequer começar sem o impulso do Autor de criar, mas sentiu que não deveria começar sem o desejo, por sua vez, do Homem de comunicar seu senso mais profundo de si mesmo e de sua visão de mundo.
Resta a dúvida se as diferentes ênfases de Tolkien e Lewis nessa questão estão relacionadas às suas diferentes origens religiosas, católica romana e anglicana, respectivamente. Desde a Reforma, os teóricos da estética protestante tendem a discutir a arte em termos mais funcionais. Desde os primeiros teóricos, como Pierre Ramee e Jonathan Edwards, até um profeta popular do século XX, como Francis Schaeffer, os protestantes geralmente veem a arte em termos dos valores que ela comunica (sejam eles bons ou ruins), como uma expressão da visão de mundo do artista. Desde a ostentação deliberada de ornamentos da Contrarreforma até o trabalho de escritores contemporâneos como Jacques Maritain e Hans Küng, os católicos romanos têm se mostrado mais dispostos a ver o ato criativo como um fim em si mesmo, se não a arte pela arte, talvez mais precisamente a arte pelo amor de Deus.
Esse espírito está incorporado na história do pedreiro medieval que trabalha por semanas a vários metros acima do solo, esculpindo os entalhes ornamentados na torre de uma catedral. Quando lhe perguntaram como ele podia passar tanto tempo em um trabalho que ninguém jamais veria de perto, se é que veria, ele respondeu: “Deus vê”. O leitor sente o mesmo espírito em Tolkien, trabalhando meticulosamente para criar um Mundo Secundário plausível, com sua própria história e geografia, sua diversidade de povos, idiomas e costumes, com sua insistência em eliminar inconsistências que nenhum leitor em um milhão jamais perceberia. Na verdade, seu biógrafo relata que, mais tarde, Tolkien não se referia a si mesmo como um escritor criativo, mas sim como o cronista da Terra Média. (CARPENTER, p. 4)
Independentemente de como se tenta explicar as diferentes visões de fantasia expressas por Tolkien e Lewis, essas diferenças são imediatamente evidentes nas obras criativas dos dois escritores. Tolkien estava comprometido com a independência de seu mundo secundário criado em relação ao nosso mundo primário. Nas mais de 1500 páginas de O Senhor dos Anéis, Tolkien evita cuidadosamente qualquer referência literária ou histórica que possa desviar a atenção dos leitores de seu mundo fictício e fazê-los pensar em seu próprio mundo. Tolkien se opôs às Crônicas de Nárnia e a partes da trilogia Ransom, porque Lewis introduz descaradamente personagens e motivos do nosso Mundo Primário nos Mundos Secundários que ele cria. Em Perelandra, ele transporta Ransom para outro planeta apenas para que ele descubra que os mitos do nosso mundo – Marte, Vênus, o Jardim das Hespérides – são realidades em outros mundos. Nas Crônicas, não apenas o Papai Noel aparece em Nárnia, mas também Baco e Sileno!
Obviamente, Lewis não via essas alusões como lapsos artísticos, como o fracasso de um subcriador em criar um mundo independente. Em vez disso, ele se deleitava em enfatizar a interdependência de seus mundos secundários criados e de nosso mundo primário. Na trilogia Ransom, especialmente, Lewis lembra continuamente seus leitores de que não há nada mais natural do que o sobrenatural, que seu mundo de fantasia é mais real do que supomos. Poderíamos supor, por exemplo, que os eldils interplanetários são apenas criaturas da imaginação de Lewis. Mas por que ele se apresenta, Lewis, como um personagem da trilogia? E por que ele oferece referências da Bíblia, de mitos clássicos, de estudiosos medievais obscuros, sugerindo que os eldils são algo mais do que criaturas de sua imaginação? Obviamente, Lewis quer que tenhamos uma sensação inquietante da conexão de seu mundo fictício com nosso mundo “factual”.
Essa ênfase na interpenetração dos mundos secundários e do mundo primário permitiu que Lewis escrevesse fantasia explicitamente cristã, sem ter a sensação de violar a integridade do mundo subcriado. Surpreso com o fato de poucos críticos terem notado as implicações cristãs de Longe do Planeta Silencioso, Lewis brincou com um amigo dizendo que “qualquer quantidade de teologia pode agora ser introduzida na mente das pessoas sob o disfarce do romance sem que elas saibam”. (Letters [Cartas], p. 167). Dificilmente se pode imaginar Tolkien dizendo tal coisa, mesmo em tom de brincadeira. Mas Lewis estava apenas brincando um pouco quando fez essa observação. Em sua autobiografia, Lewis descreve como a leitura de George MacDonald “batizou sua imaginação”, mostrando-lhe “a beleza da santidade”. Certamente, Lewis gostaria de prestar um serviço semelhante a seus leitores.
A obra de Tolkien não tem esse tipo de projeto didático. De fato, muitos leitores de O Senhor dos Anéis ficam surpresos ao saber que seu autor era cristão. Mas a compreensão que Tolkien tinha do papel do artista permitiu que ele cumprisse sua vocação cristã no próprio ato de subcriação de mundos secundários, sem qualquer senso de propósito didático. (De maneira semelhante, o compositor Isaac Watts cumpriu seu senso de vocação cristã escrevendo hinos, enquanto J. S. Bach cumpriu seu senso de vocação cristã simplesmente escrevendo música).
As diferentes visões de fantasia de Tolkien e Lewis são sugeridas até mesmo pelos estilos de prosa dos dois autores. Tolkien emprega um estilo deliberado de conto popular – simples, monossilábico, com imagens naturais e caseiras – e com uma porcentagem maior de palavras anglo-saxônicas do que praticamente qualquer outro escritor deste século. Além de evitar deliberadamente palavras com um toque “estrangeiro” muito óbvio, Tolkien reviveu saxonismos arcaicos, como fell (que significa “feroz, terrível”) e leechcraft (medicina). Parece que ele desejava que a linguagem de seu mundo criado tivesse um sabor próprio – pré-industrial, certamente, mas também pré-urbano, pré-histórico, quase pré-abstrato.
O vocabulário de Lewis, especialmente na trilogia Ransom, mas também nas Crônicas de Nárnia, é muito mais eclético e cosmopolita, com uma porcentagem muito maior de palavras extraídas de outros idiomas, especialmente do francês e do latim. O estilo de prosa de Lewis é, como sempre, lúcido, envolvente e urbano, mas ele faz pouco esforço para inventar novos idiomas para seus novos mundos.
Lewis introduz o Velho Solar na trilogia Ransom como o idioma dos mundos não decaídos, mas isso parece mais uma concessão para manter a plausibilidade superficial do que uma oportunidade de se deleitar com a subcriação de idiomas. Tolkien, por outro lado, começou a desenvolver o quenya, a língua élfica, durante seus anos de graduação e, quando concluiu O Senhor dos Anéis, seu idioma inventado tinha um vocabulário de várias centenas de palavras, com declinações e etimologias consistentes. De fato, é possível “traduzir” a maioria dos nomes de lugares na Terra Média consultando o glossário de dez páginas sobre o quenya no Apêndice de O Silmarillion.
As diferentes ênfases de Lewis e Tolkien também podem ser vistas na forma como cada um retrata o papel do artista em seus mundos criados. Em Longe do Planeta Silencioso de Lewis, Augray, o sorn, comenta que se Ransom tivesse morrido tentando chegar às cavernas sorns em handramit, os hrossa, os poetas do planeta, teriam produzido um poema maravilhoso sobre sua jornada ousada. Isso sugere que o papel deles era entrelaçar a história em mitos e lendas. E o pfifltriggi em Meldilorn, que faz o retrato de Ransom, parece funcionar ao mesmo tempo como artista, historiador e mitógrafo, cujo papel não é muito diferente do que Lewis vê a si mesmo exercendo como escritor imaginativo.
Em O Senhor dos Anéis, no entanto, os poetas e músicos se concentram em seu passado heroico, seguindo as tradições germânicas dos bardos e menestréis. Os poemas que pontuam a narrativa geralmente não são um comentário direto sobre a ação enquanto ela acontece, mas sim uma comemoração da herança épica daquele povo – celebrando outra história além da que estava sendo narrada. Os artistas de Tolkien não são subcriadores no sentido literal, criando mundos terciários a partir dos materiais do mundo secundário da Terra Média; mas eles contam histórias muito distantes da ação central da narrativa.
Independentemente de os artistas imaginados por Tolkien serem ou não subcriadores, essa teoria continua sendo atraente. Ela oferece uma defesa poderosa da escrita de fantasia como um gênero literário a ser valorizado; oferece uma visão valiosa do processo criativo; e permite que ele, como escritor cristão, veja seu trabalho imaginativo como uma forma de adoração. Infelizmente, a ideia de Subcriação de Tolkien contém vários pontos fracos como paradigma da criatividade cristã.
O primeiro problema com a noção de subcriação de Tolkien é o exagero. Ao tentar encontrar um lugar respeitável para o gênero de fantasia ou história de fadas, ele acaba privilegiando esse gênero em relação a todas as outras formas de escrita de ficção. Tolkien argumenta que a capacidade de criar “imagens de coisas que não estão no mundo primário (se isso for de fato possível) é uma virtude e não um vício. A fantasia, penso eu, não é inferior, mas uma forma superior de Arte, de fato a forma mais quase pura e, portanto, (quando alcançada) mais potente” (Ensaios, p. 67). Tolkien ilustra seu argumento dizendo que é possível dizer a frase “o sol verde” e até mesmo imaginá-lo em nossa mente. Mas é muito mais difícil imaginar um universo no qual essa esfera estivesse em seu lugar natural: “Criar um mundo secundário no qual o sol verde seja crível, comandando a Crença Secundária, provavelmente exigirá trabalho e reflexão, e certamente demandará uma habilidade especial e um ofício élfico. Poucos tentam realizar tarefas tão difíceis. Mas quando elas são tentadas e de alguma forma realizadas, então temos uma rara conquista da arte: de fato, arte narrativa, criação de histórias em sua modalidade primária e mais poderosa” (Ensaios, p. 68).
Quando Tolkien afirma que a fantasia não é uma forma de arte inferior, mas superior, ele precisa ir além da ideia de que criar mundos é um trabalho mais árduo do que de criar personagens ou histórias. É difícil fazer tais julgamentos quantitativos sobre criatividade. Hesitaríamos em dizer que a realização de Flaubert em Madame Bovary é inferior à de Dickens em Oliver Twist, porque o primeiro contribui com um personagem imortal para a literatura mundial, enquanto o segundo sugere uma cidade inteira cheia de personagens. E, sem dúvida, recusaríamos a ideia de que Júlio Verne seja superior a Flaubert ou Dickens, porque ele cria mundos totalmente novos em seus livros. Obviamente, fatores de profundidade psicológica, estrutura narrativa, profundidade moral etc. devem ser levados em conta nessa avaliação.
Foi Lewis quem reclamou que os escritores populares frequentemente criavam novos mundos e depois não faziam bom uso deles: “[Com muita frequência] o autor salta para um futuro imaginado quando as viagens planetárias, siderais ou mesmo galácticas se tornaram comuns. Contra esse enorme pano de fundo, ele passa a desenvolver uma história de amor, de espionagem, de naufrágio ou de crime comum. Isso me parece de mau gosto. Tudo o que não é usado em uma obra de arte a está prejudicando. A cena e as propriedades superficialmente imaginadas apenas obscurecem o tema real e nos distraem de qualquer interesse que ele possa ter tido” (Sobre histórias, p. 57).
Essa discussão sobre o sucesso dos escritores na criação de outros mundos genuínos aborda um segundo problema com a teoria da subcriação: até que ponto é possível criar mundos realmente secundários, não dependentes deste? C. S. Lewis abordou essa questão em uma carta à irmã Penelope: “‘Criação’ aplicada à autoria humana me parece um termo totalmente enganoso. Nós reorganizamos os elementos que Ele forneceu. Não há um vestígio de verdadeira criatividade de novo em nós. Tente imaginar uma nova cor primária, um terceiro sexo, uma quarta dimensão ou até mesmo um monstro que não seja composto de pedaços e partes de animais existentes colados uns aos outros. Nada acontece. E certamente é por isso que nossas obras (como você disse) nunca significam para os outros exatamente o que pretendíamos: porque estamos recombinando elementos feitos por Ele e que já contêm Seus significados” (Cartas, p. 203).
Aqui Lewis expressa grande ceticismo sobre o quanto a obra do autor cristão realmente se assemelha à criação ex nihilo de seu Criador. Em sua resenha de O Senhor dos Anéis, Lewis faz alusão à ideia de subcriação de Tolkien e faz um elogio pródigo a Tolkien não apenas como criador de uma história, mas de um mundo. Lewis explica que Tolkien tentou deliberadamente manter sua dívida direta com o mundo real que conhecemos em um nível mínimo, acrescentando em um parêntese perspicaz: “é claro que há tipos mais sutis de dívida” (Sobre histórias, p. 84).
Tolkien enfatizou tanto a importância de criar mundos independentes que alguns leitores têm a impressão de que sua Terra Média é uma criação totalmente original. No entanto, Tolkien confessou que ela é em grande parte derivada de suas caminhadas de infância no interior da Inglaterra, nos condados menos afetados pelo industrialismo. O clima, a topografia e os costumes locais do Condado e de outras partes da Terra Média são inconfundivelmente ingleses.
Tolkien não fez alusões literárias e mitológicas óbvias como Lewis fez, mas sua dívida com os textos predecessores talvez não seja menor. Todo o Senhor dos Anéis está impregnado de mitos, lendas e folclore nórdicos. A própria Terra Média é uma tradução do nórdico antigo “midgard”. E toda a panóplia de magos, elfos, anões e dragões é familiar aos leitores da tradição germânica. Nomes como Gandalf e Thorin Oakenshield vêm diretamente dos Elder Eddas, e a palavra “orques” pode ser encontrada em Beowulf.
Os nomes e o idioma dos Cavaleiros de Rohan são indisfarçavelmente anglo-saxões. E os principais temas, como anéis dourados de poder, talismãs de invisibilidade e espadas quebradas a serem consertadas quando o herói retornasse, podem ser encontrados na literatura teutônica que Tolkien tanto amava.
Toda essa ênfase nas fontes não tem a intenção de desvalorizar a realização imaginativa de Tolkien em O Senhor dos Anéis, onde seu entrelaçamento de diversos motivos e povos é nada menos que brilhante. Entretanto, isso questiona se a doutrina da subcriação, com sua ênfase na criatividade divina do autor, não faz parte do culto romântico da originalidade. Lewis, por outro lado, enfatizou que um autor cristão deve sentir a liberdade de não ser descaradamente original. Em seu discurso “Christianity and Literature” (“Cristianismo e literatura”), Lewis observa que os termos mais comuns de valorização têm a ver com criatividade, espontaneidade, rompendo os limites das tradições existentes. Ele resume o pressuposto existente da seguinte forma: “Grandes autores são inovadores, pioneiros, exploradores; autores ruins se agrupam em escolas e seguem modelos” (Reflexões, p. 3). Ele contrasta isso com uma visão clássica e cristã de que “um autor nunca deve se conceber como alguém que traz à existência beleza ou sabedoria que não existia antes, mas simplesmente e unicamente um reflexo da Beleza e Sabedoria Eternas” (Reflexões, p. 7). Em sua leitura do Novo Testamento, Lewis descobre que a “‘originalidade’ é claramente uma prerrogativa exclusiva de Deus”, concluindo que “de cada ideia e de cada método, o escritor cristão perguntará não ‘Isso é meu?’, mas ‘Isso é bom?'”. (Reflexões, p. 9)
A justaposição da criatividade humana com a criatividade divina levanta uma terceira preocupação sobre a teoria da subcriação de Tolkien. Embora ele toque levemente na ideia, Tolkien sugere que o engajamento da criatividade de alguém é uma imitação de Deus e uma forma de adoração. Dorothy Sayers levou a analogia muito mais longe em The Mind of the Maker [A mente do criador], onde ela argumenta que o deo imago nos seres humanos é a criatividade. Ao tentar definir o que significa ser feito à imagem de Deus, Sayer examina as narrativas bíblicas relevantes: “Será que o autor de Gênesis tinha algo específico em mente quando escreveu? Na passagem que leva à declaração sobre o homem, ele não deu nenhuma informação detalhada sobre Deus. Olhando para o homem, ele vê nele algo essencialmente divino, mas quando voltamos para ver o que ele diz sobre o original no qual a ‘imagem’ de Deus foi modelada, encontramos apenas a única afirmação: ‘Deus criou’. A característica comum a Deus e ao homem é aparentemente essa: o desejo e a capacidade de fazer coisas” (p. 34). Sayers afirma que “é o artista que, mais do que os outros homens, é capaz de criar algo a partir do nada” (p. 39). Ela continua a desenvolver a analogia entre os criadores humanos e seu Criador, observando que a ideia original ou o motivo para escrever é como o Pai; a energia ou a atividade ou o desenvolvimento da ideia em palavras é como o Filho; e a recepção ou a energia devolvida por uma comunidade de leitores é como o Espírito.
Esse é um paralelo sugestivo, mas potencialmente perigoso, se não for contrabalançado por outras verdades cristãs. A criatividade humana é, de fato, uma característica semelhante a Deus. Mas, como Lewis observa em The Four Loves [Os Quatro Amores], é possível ser como Deus sem nunca se aproximar de Deus. Muitas características divinas são apenas bens instrumentais. Elas podem trazer grandes males se não forem corrigidas pela característica divina mais indispensável: a bondade. Hitler era semelhante a um deus em seu poder sobre os outros, mas era um poder semelhante ao do anticristo. A inteligência, a beleza e até mesmo a coragem fazem parte da natureza de Deus, mas podem ser pervertidas para os fins mais diabólicos.
A criatividade em geral, ou a subcriação de mundos em particular, é praticamente a mesma coisa. Satanás, de Milton, é um subcriador quando cria Pandemonium, mas isso obviamente não é um ato de adoração nem de fidelidade. E quantos outros artistas poderiam ser citados, cujo trabalho é tecnicamente esplêndido e imaginativamente vasto, mas cuja visão moral está em violenta oposição a uma visão que os leitores cristãos poderiam apoiar?
Esse problema pode ser visto nas atitudes mistas de C. S. Lewis em relação a David Lindsay, autor de Voyage to Arcturus [Viagem a Arcturus] Por um lado, Lewis disse: “Ele é o primeiro escritor a descobrir para que servem realmente os outros planetas na ficção. Nenhuma mera estranheza física ou mera distância espacial realizará a ideia de alteridade, que é o que estamos sempre tentando compreender em uma história sobre viagens pelo espaço: é preciso entrar em outra dimensão. Para construir ‘outros mundos’ plausíveis e comoventes, é preciso recorrer ao único ‘outro mundo’ real que conhecemos, o do espírito” (Of Other Worlds [Sobre outros mundos], p. 12). Por outro lado, Lewis não se sentiu nem um pouco atraído pelo tema de Viagem a Arcturus. Ele declarou que o livro estava “no limite do diabólico [e] era tão maniqueísta que era quase satânico” (citado em SAYER, p. 153).
Pode-se ver que, por mais bem-sucedido que Lindsay possa ser como um subcriador, sua conquista deve ser medida – pelo menos pelos cristãos – por outros critérios além de sua habilidade como criador de mundos secundários imaginados. Tolkien parece ter reconhecido esse problema quando anexou um epílogo ao seu ensaio sobre contos de fadas. Nessa, sua última palavra sobre o assunto, seu parentesco com Lewis surge novamente em sua discussão sobre a “subcriação santificada”:
“Provavelmente, todo escritor que cria um mundo secundário, uma fantasia, todo subcriador, deseja, em alguma medida, ser um criador real, ou espera estar se baseando na realidade. Não é apenas um ‘consolo’ para a tristeza deste mundo, mas uma satisfação e uma resposta à pergunta ‘Isso é verdade?’. A resposta a essa pergunta que eu dei no início foi: ‘Se você construiu o seu pequeno mundo adequadamente, sim: isso é verdadeiro naquele mundo’. Isso é suficiente para o artista (ou para a parte artística do artista). Mas na ‘eucatástrofe’ [final feliz] vemos que a resposta pode ser ainda maior, que pode ser um brilho distante ou um eco do evangelium no mundo real.
Os evangelhos contêm uma história de fadas, ou uma história de um tipo maior, que abrange toda a essência das histórias de fadas. O nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história humana. A ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação. Essa história começa e termina em alegria.
A alegria cristã, a Glória, é preeminentemente elevada e alegre. Porque essa história é suprema; e é verdadeira. A arte foi verificada. Deus é o Senhor, dos anjos e dos homens – e dos elfos. A lenda e a história se encontraram e se fundiram” (Ensaios, pp. 83-84).
TRABALHOS CITADOS
Carpenter, Humphrey. Tolkien: A Biography [Tolkien: uma biografia]. Nova York: Ballantine, 1977.
Carter, Lin. A Look Behind the Lord of the Rings [Um olhar por trás do Senhor dos Anéis]. Nova York: Ballantine, 1969.
Essays Presented to Charles Williams [Ensaios apresentados a Charles Williams]. Ed. por C. S. Lewis. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1970.
Glover, Donald E. C. S. Lewis: The Art of Enchantment [C.S. Lewis: A Arte do Encantamento]. Athens, OH: Ohio UP, 1981.
Lewis, C. S. On Stories and Other Essays on Literature [Sobre Histórias e Outros Ensaios sobre Literatura]. Ed. por Walter Hooper. Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1982.
Sayer, George. Jack: C. S. Lewis and His Times [Jack: C. S. Lewis e sua época]. São Francisco: Harper and Row, 1988.
Sayers, Dorothy. The Mind of the Maker [A Mente do Criador]. Cleveland: World, 1964.
David C. Downing
Autor
David C. Downing, autor, é codiretor do Marion E. Wade Center no Wheaton College, em Illinois. Obteve seu doutorado na UCLA e escreveu quatro livros acadêmicos sobre C.S. Lewis: Planets in Peril [Planetas em perigo] (1992), The Most Reluctant Convert [O mais relutante dos convertidos] (2002), Into the Wardrobe [Entrando no guarda-roupa] (2005) e Into the Region of Awe [Entrando na região do temor] (2005). Downing também forneceu uma introdução crítica e mais de 400 notas explicativas para a nova edição de The Pilgrim’s Regress [O Regresso do Peregrino] de C.S. Lewis, publicado originalmente em 1933 e reeditado pela Eerdmans na Wade Center Annotated Edition (2014). Downing é palestrante e consultor de C.S. Lewis para a associação Publications of the Modern Languages Association (PMLA), bem como para as revistas Christian Scholars Review e a Religion and Literature.
Fonte: C. S. Lewis: The official website of C. S. Lewis. Disponível em: https://www.cslewis.com/tolkien-vs-lewis-on-faith-and-fantasy/. Acesso em 10 jun. 2024.