por Gabriele Greggersen

 

Introdução

O machismo se caracteriza pelo preconceito contra a mulher. Ele é repleto de estereótipos e atitudes discriminatórias em relação à figura feminina.

De acordo com o Dicionário online, machismo é:

Opinião ou atitudes que discriminam ou recusam a ideia de igualdade dos direitos entre homens e mulheres. Característica, comportamento ou particularidade de macho; macheza. Demonstração exagerada de valentia. [Informal] Excesso de orgulho do masculino; expressão intensa de virilidade; macheza. Fonte: https://www.dicio.com.br/machismo/

Já o dicionário Michaelis diz que machismo é a:

1 Qualidade, comportamento ou modos de macho (homem); macheza, machidão.

2 COLOQ Orgulho masculino em excesso; virilidade agressiva.

3 Ideologia da supremacia do macho que nega a igualdade de direitos para homens e mulheres. Fonte: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/machismo/

 

Finalmente, o dicionário Priberam diz que machismo são os:

  1. Modos ou atitudes de macho. = MACHEZA
  2. Comportamento ou linha de pensamento segundo a qual o homem domina socialmente a mulher e lhe nega os mesmos direitos e prerrogativas.
  3. [Informal] Orgulho masculino exagerado. Fonte: https://dicionario.priberam.org/machismo.

 

Podemos concluir que todos esses dicionários concordam que o machismo tem a ver com uma atitude de orgulho de gênero e uma crença de que o macho é superior à fêmea e nega os mesmos direitos a ela.

Bem, podemos identificar várias atitudes em Lewis que sugerem certo machismo, quando, por exemplo, a maioria das figuras do mal nas Crônicas de Nárnia são femininas. Mas, para isso, a meninas e personagens fêmeas também são heroínas, como Lúcia, Polly, Aravis, Giu, etc.

Podemos encontrar também estereótipos, de que é feio e inapropriado que elas participem ativamente de guerras e em Susana temos todos os traços típicos da vaidade feminina.

Mas em nenhum momento Lewis sugere que as mulheres sejam inferiores ou que tenham menos direitos que os homens. De fato, em vários escritos, e principalmente em suas cartas como será o foco desse artigo, vemos um esforço sincero por penetrar e compreender o universo feminino e lhe fazer jus.

Lewis perdeu a mãe na infância e nunca teve irmã ou primas de convívio próximo, só um irmão mais velho. Então o seu lar e os internatos para meninos pelos quais passou após a morte da mãe eram predominantemente masculinos. Também o ambiente de Oxford de sua época era em sua maioria masculino. Então ele teve pouco contato com mulheres.

Mas não resta dúvida de que ele valorizava as mulheres, o que pode ser visto pela devoção que tinha à sua mãe perdida precocemente, o que pode ser deduzido de sua autobiografia, Surpreendido pela alegria, e pelo respeito que tinha pela mãe e irmã de um colega de guerra que resolveu adotar em seu lar logo após a Primeira Grande Guerra.

Além disso, o pouco que tinha de atitudes machistas adquiridas pelo convívio ele mudou depois que conheceu Joy, que viria a ser a sua esposa, após os cinquenta anos, à qual dedica Os Quatro Amores e Até que tenhamos Faces. Ela era uma mulher independente, inteligente e capaz, sendo que logo cativou a simpatia de Lewis e seu irmão, Warren logo nas primeiras cartas que ela lhe escreveu.

Mas a atitude predominante que ele tinha em relação às mulheres pode ser mais bem deduzida a partir de suas obras, que vamos analisar a seguir.

 

  1. A visão da mulher nas Crônicas

Nas Crônicas temos sempre um casal de crianças que entram no mundo de Nárnia e têm suas aventuras por lá. As meninas são ordenadas a participarem das batalhas só em último caso. Elas são mais sensitivas e intuitivas do que os meninos. Lúcia e Susana não conseguem dormir na noite em que Aslan vai para o seu sacrifício. Elas sentem que algo está errado com ele e vão fazer-lhe companhia.

Lúcia é o protótipo da visão de Aslan e da fé. Ela é a verdadeira heroína de O Leão, a feiticeira e o Guarda-Roupa (LFG) e Príncipe Caspian.

Enquanto Lúcia recebe um punhal e um licor curador do Papai Noel em LGF, Susana é a que recebeu a trompa que representa a oração e é muito hábil no arco e na flecha, denotando julgamento preciso. Mas ela também quer ser adulta demais e não vai mais a Nárnia no fim das Crônicas.

Polly em O Sobrinho do Mago, prevê o perigo de Gregório tocar o sino e o aconselha sempre com sabedoria quanto a decisões que ele tem que tomar.

Aravis de O Cavalo e seu menino é a imagem da mulher independente. Ela é corajosa, sagaz e empoderada.

Em A cadeira de prata, Giu recebe os sinais do caminho a seguir na missão e divide a liderança da mesma com Eustáquio, o menino da história.

Já em A Última Batalha, Giu é a mais sensível aos sofrimentos do burro e lidera o resgate do rei, levando à solução de toda a trama.

 

  1. A visão da mulher nas demais obras de ficção

A mulher aparece com proeminência nas obras de ficção Até que tenhamos rostos (ATR), e da trilogia espacial, Perelandra e Aquela fortaleza medonha (AFM). Sem querer fazer spoiler das obras, vamos apenas pincelar algumas ideias que podem esclarecer a visão que Lewis tem das mulheres nessas obras.

Em ATR, como no mito, Psiqué é uma mulher marcada para ser sacrificada a um deus, descobre a sua identidade e não o delata. Em missão de salvar o seu povo, ela acaba descobrindo a sua própria identidade.

Orual, sua irmã feia, herdeira do trono, narra a história e descobre o seu verdadeiro valor. A narrativa é feita em primeira pessoa, sendo que Lewis se coloca explicitamente no lugar de uma mulher.

Nessa obra, o universo feminino é retratado como muito rico, cheio de contradições, auto-descobertas e insights a respeito da vida. Lewis descreve a essência da mulher para além de sua aparência física e seu poder.

Já em Perelandra, o segundo episódio da viagem espacial de um filólogo, Ramson, ele vai parar num planeta ainda não decaído e topa com o Adão e Eva de lá.

O mal, representado por um cientista que está interessado apenas em enriquecer, não afeta Eva, por mais que ele procure tentá-la. Ela responde a cada uma das tentações com sabedoria, simplicidade e sensatez.

Finalmente, em AFM, esse terceiro episódio da Trilogia Espacial, que se dá todo na Terra, há uma personagem que é esposa do protagonista principal e está fazendo doutorado. Ela é inteligente, independente e sábia, ajudando a solucionar a trama de um instituto de experimentos genéticos que quer dominar o mundo e está influenciando o seu marido. Ela se envolve com a resistência e tem experiências místicas que ajudam a salvar o mundo do apocalipse.

 

  1. A visão da mulher em Cartas a uma senhora americana

Nessas cartas, que foram trocadas por décadas entre os dois amigos íntimos de sexo oposto, Lewis se mostra sempre sensível aos sofrimentos de sua interlocutora, que nunca conheceu pessoalmente e cujo nome desconhecemos, solidarizando-se com ela e compartilhando as suas próprias dores e aflições com ela. Ele tem insights que refletem simplicidade e intimidade com Deus.

No final das cartas ele sempre diz que está orando por ela e espera as suas orações em troca, estabelecendo uma reciprocidade que evoca a igualdade de direitos.

Lewis estabelece uma relação de ensino-aprendizagem com ela, marcada pela compreensão, equilíbrio, bom-senso, que é livre de todo preconceito. Ele está sempre em busca do diálogo, como se pode inferir do seguinte trecho sobre o ecumenismo e diálogo interreligioso:

Considerando a atual divisão que há entre os cristãos, penso que os que se colocam no centro de cada tendência estão muito mais próximos uns dos outros do que os que estão nos extremos. Esse princípio é aplicável para além até mesmo das fronteiras do cristianismo: quanta coisa não temos em comum com o judeu ou muçulmano, mais do que com aquele tipo de sujeitinho mesquinho, liberalizado e ocidentalizado da nossa própria cultura… (p. 11-12, 10.11.52).

Ele valoriza o ser humano enquanto criatura, que é o que homens e mulheres têm em comum, além de tantas outras coisas, e busca a intimidade com Deus, como demonstra nessas palavras: “Ele dignou-se a compartilhar nossa humanidade, presumo que, em parte, porque toda criatura está mais próxima do seu criador do que pode estar de qualquer outra criatura superior.” (p. 13, 4.3.53)

Em outra carta sobre a prática da oração, Lewis valoriza a abertura, gratidão e abnegação:

Nossas orações muitas vezes dão errado, porque nós insistimos em tentar falar com Deus quando, na verdade, ele é que está querendo falar conosco. Joy contou-me que, certa vez, anos atrás, foi surpreendida de manhã pela impressão de que Deus queria algo dela, até tornar-se uma pressão persistente, como o peso de um dever negligenciado. E até tarde da manhã continuou perguntando-se o que era. Mas, no momento em que parou de se preocupar, a resposta surgiu tão clara quanto em viva-voz. ‘Não quero que faça nada. Quero é dar-lhe algo ‘; e imediatamente seu coração encheu-se de paz e luz. Santo Agostinho diz que ‘ Deus dá a quem tem as mãos vazias’. Ninguém que está com as mãos cheias de pacotes pode receber um presente. (p. 73, 31.3.58)

 

Ele enfatiza a confiança em Deus e o combate à ansiedade, que é um pecado que ambos têm em comum e compartilham de suas consequências dolorosas:

suponho que viver a vida a cada dia (…) é precisamente o que nós temos que aprender – mesmo quando o velho Adão em mim às vezes alega que, se Deus quisesse me fazer viver como os lírios do campo, por que não me dá a mesma dose de nervos e imaginação que eles! Ou será esse precisamente o ponto, o propósito exato deste paradoxo divino e audacioso chamado ser humano – fazer, dotado de razão, tudo aquilo que outros seres fazem sem ela? (p. 79, 30.10.58)

Como se pode ver, a partir dos trechos acima, Lewis se solidariza com os sentimentos dela e dá um tratamento bíblico a eles. Não é pecado sentir medo, por exemplo: “medo é uma sensação horrível, mas isso não é razão para vergonha. Nosso Senhor sentiu-se atemorizado (…) no Getsêmani. Essa lembrança sempre me parece um fato muito confortante.” (p. 41, 2.4.55)

Além disso, Lewis combate todo tipo de subjetivismo e sensacionalismo, apelando para a realidade: “É para a presença real, e não, para a mera sensação de presença do Espírito Santo que Cristo apela em nós”. (p. 38, 20.2.55)

Conhecendo o espírito inquieto de sua amiga e das mulheres em geral, ele a exorta e se opõe ainda a todo o tipo de ativismo:

lembre-se de que acreditar na virtude do ‘fazer pelo fazer’ é um traço do caráter feminino, do americano e do moderno: o sentimento de cuidado pode não passar de inquietação ou oscilações auto-lisonjeiras da nossa auto-estima. Como Mac Donald já dizia ‘o sagrado pode conter avidez profana’. E, ao nos empenharmos em cumprir deveres desnecessários, podemos estar nos tornando menos dispostos para cumprir com os verdadeiros deveres, cometendo, assim, um tipo de injustiça. Por que não dá uma só chance à Maria, e também à Marta! (p. 53, 19.3.56).

Sobre o sofrimento, Lewis diz: “é lógico que fomos instruídos em como lidar com o sofrimento – oferecendo-o a Deus em Cristo, como muito singela, modesta mesmo, participação do sofrimento de Cristo – contudo: como é duro praticá-lo, não?” (p. 55, 26.4.56).

O nível de intimidade dos dois pode ser medido pelo fato de ele ter compartilhado com ela o seu drama com sua esposa, Joy. Diante do câncer dela, ele comenta:

se nós realmente acreditamos naquilo em que dizemos acreditar – se realmente cremos que o nosso lar está em outro lugar e que esta vida é uma ‘peregrinação em sua busca’, por que não olhamos para frente, rumo à chegada? (p. 84, 7.6.59)

 

A respeito da morte de Joy, ele é bem sincero:

Joy morreu no dia 13. A aparente virtualidade da minha vida desde então é simplesmente indescritível. Ela foi absolvida, morreu na santa paz, está com Deus. Tentarei escrever outro dia, quando tiver maior autocontrole. No momento, sinto-me como um sonâmbulo. Deus te abençoe (p. 91, 15.7.60).

 

Mas apesar do seu sofrimento, Lewis guarda uma perspectiva esperançosa da vida, que faz questão de compartilhar com a senhora americana:

as coisas que se encontram adiante são muito melhores do que qualquer uma que deixamos para trás. Lembre-se: quanto mais lutamos contra as coisas das quais temos medo, mais experimentamos o que tememos: ficamos com medo pelo simples fato de estar lutando. Você está lutando, resistindo? Você não percebe que o nosso Senhor está lhe dizendo ‘Paz, filha, paz. Relaxe. Deixe acontecer. Embaixo de você encontram-se braços eternos. Pode soltar-se, que eu te pego. Será que você poderia confiar um pouco em mim? (p. 117, 17.6.63).

 

Quanto às últimas coisas a se fazer na vida, ele confessa, em uma carta que antecede poucos meses a sua morte, o seu fracasso em perdoar:

… você sabe, há algumas semanas atrás somente, eu me dei conta, de repente, de que finalmente tinha perdoado o cruel diretor que tanto obscureceu minha infância. Estava tentando há anos; e, como no seu caso, toda vez que eu pensava ter conseguido, percebia, depois de mais ou menos uma semana, que precisava começar tudo de novo. (p. 120, 6.7.63)

 

Considerações finais

Apesar de Lewis ter sido acusado de machismo, entre outras coisas, porque tinha um clube frequentado apenas por homens, ele se mostra sensível ao universo feminino, procurando compreendê-lo, principalmente depois de conhecer Joy, sua companheira de labuta.

Assim, seus insights são significativos para orientar as mulheres de seu tempo e até hoje em seu cotidiano e lutas diárias.

Voltando à definição de machismo do início do artigo, podemos, sim, identificar certa distinção que Lewis faz entre homens e mulheres, mas que não significa que haja privilégio dado a um ou a outro. Não vemos nenhum orgulho da parte de Lewis pelo fato de ele ser homem. E definitivamente, ele trata as mulheres como de igual valor diante de Deus e do mundo, como fica claro nas suas Cartas à senhora americana e nas suas demais obras.

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