por Carlos Alberto Chaves P. Junior

Introdução

C.S. Lewis foi um dos autores mais frutíferos da língua inglesa. Um homem devotado à literatura com o mesmo grau de paixão que dedicava à sua vida religiosa. Muitos dos trabalhos de Lewis, especialmente As Crônicas de Nárnia e Cartas de um diabo a seu aprendiz, revelam que os escritos dele não podem ser interpretados apropriadamente sem se ter em mente a teologia protestante que permeava a mente deste escritor e, claramente, sem entender que a literatura, para este autor, era a maneira mais adequada de se comunicar com o público infantil. O mundo fantástico, cheio de imagens alegóricas e paisagens pitorescas, era um palco onde a moral poderia se apresentar ao público sem trajar vestes de arrogância ou presunção. Lewis considerava que “as histórias que pretendem ser “realistas” tendem muito mais a enganar as crianças” e, quanto ao uso de imagens, ele afirmava: “deixe que as imagens lhe contem a moral delas, pois sua moral intrínseca nasce naturalmente”.

Um dos pontos em que muitos desenvolvem uma crítica negativa às obras de C. S. Lewis, especialmente às Crônicas de Nárnia, é de observar que elas não se encaixam dentro de uma classificação etária, o que as torna passíveis de serem lidas por crianças e adultos. Por isso, podem tornar-se sombrias demais para jovens leitores e muito simplistas para mentes mais versadas na arte da interpretação. Convém citar Lewis mais uma vez, pois ele afirmava que “… a classificação rígida dos livros segundo faixas etárias, tão cara a nossos editores, tem uma relação muito vaga com o hábito dos leitores reais” e que “  … como regra, histórias que somente crianças gostam são histórias ruins”. As interpretações e leituras que se pode ter de uma mesma história variam, as tornando mais ricas.

Sem uma análise biográfica do autor, muito do seu trabalho torna-se, por vezes, difícil de ser entendido, notavelmente para a crítica textual, e, por tal fato, este artigo inicia-se com uma análise da vida de C. S. Lewis seguida por uma subdivisão em que trataremos, mais especificamente, da intertextualidade das obras de C.S Lewis com a Bíblia. As Crônicas de Nárnia, propriamente o conto O Leão, a feiticeira e o Guarda-Roupa, será nosso texto base.

  1. C.S Lewis e a criação de Nárnia.

 

C.S Lewis é uma personalidade literária bastante admirada e estudada dentro da literatura, crítica literária, como também da teologia. Ao longo de várias décadas, sua obra literária tem sido lida por diferentes gerações, tendo servido como inspiração e guia para muitos outros autores que surgiriam décadas depois.  Neste contexto, podemos citar a cultuada autora da série de livros sobre o jovem bruxo Harry Potter como um exemplo nítido dessa inspiração. Rowling disse que era fã das obras de C. S Lewis quando criança e mencionou a influência das Crônicas de Nárnia no trabalho dela: “Eu me peguei pensando sobre a rota do guarda-roupa para Nárnia quando é dito para Harry que ele tem que lançar-se em uma barreira na estação de Kings Cross – ela se dissolve e ele está na plataforma nove e três quartos, e há o trem para Hogwarts. ” (Renton, Jennie. “The story behind the Potter legend: JK Rowling talks about how she created the Harry Potter books and the magic of Harry Potter’s world,” Sydney Morning Herald, October 28, 2001. Disponível em  http://www.accio-quote.org/articles/2001/1001-sydney-renton.htm .Acesso em: 27 abril 2014) . Já com relação à obra teológica de C. S. Lewis, vê-se que esta é intrigante e consideravelmente complexa, em grande parte devido à maneira como foi escrita: em um inglês bastante formal com um uso forte de expressões idiomáticas. Todavia, percebe-se  como a perfeição era uma busca contínua deste autor, como bem ressalta Greggersen:

A parte difícil da tradução da obra de C. S. Lewis são as palavras refinadas, que mal se encontram em dicionários atuais, suas milhares de citações de milhares de autores totalmente desconhecidos para nós e que ele conhecia como velhos amigos de colégio.

Seu conhecimento poliglota de línguas, entre elas o Inglês Médio, língua mais morta do que o latim, que o tradutor tem que fazer verdadeiros malabarismos para tentar decifrar. Sem falar de citações em latim, francês, italiano, britânico saxônico e grego.

E o que mais: Lewis também erra, pelo menos para o nosso gosto: Frases longas, com uso constante do “it” (gênero inexistente no português) até se perder de vista a que ele se refere; uso de expressões idiomáticas. Todas essas dificuldades fizeram vários tradutores desistirem da ousadia de traduzir esse autor, principalmente nessas obras. (Greggersen)

 

Sir Clive Staples Lewis ficaria estupefato ao contemplar a forma com a qual sua obra inspirou tantos autores, como também vislumbrou uma infinidade de crianças e adultos. Nascido em Belfast, maior cidade e capital da Irlanda do Norte e da província do Ulster, em 29 de novembro de 1898, esse jovem teve um encontro, desde cedo, com as nobres letras, tendo crescido em meio aos livros da seleta biblioteca particular de sua família. Aí, pôde expandir sua mente lendo e se familiarizando com um mundo que o fascinaria mais e mais na medida em que crescia. Filho caçula de Albert James e Florence Augusta Lewis, Clive foi descrito como uma “criança sonhadora”. Quando tinha três anos, decidiu adotar o nome de “Jack”, pelo qual ficaria conhecido na família e no círculo de amigos próximos durante toda a vida. Tal adoção mostrava como o universo imaginário de Lewis se expandia e não estava mais tão atrelado às noções de real e ficcional.

Quando eram adolescentes, Lewis e seu irmão Warren Lewis (1895–1973), três anos mais velho que ele, passavam quase todo o seu tempo dentro de casa dedicando-se à leitura de livros clássicos, distantes da realidade materialista e tecnológica do século XX. Isso explica o quanto Lewis, em suas obras, especialmente Crônicas de Nárnia, lutaria contra o materialismo e o ceticismo anos mais tarde. Aos 10 anos, em 1908, ocorreu a morte prematura de sua mãe, fato que causou um forte impacto no jovem que fez com que ele isolasse-se ainda mais da vida comum dos garotos de sua idade, buscando refúgio no campo de suas histórias e fantasias infantis. Esse falecimento de sua progenitora foi, possivelmente, um dos motivadores do conceito da não existência de DEUS que marcaria sua juventude até o encontro com o católico J. R. R. Tolkien que, com sua fé e intelectualidade, daria uma nova perspectiva ao autor.

Na sua adolescência, encontrou a obra do compositor Richard Wagner e começou a se interessar pelas mitologias nórdica e grega, e por línguas, como o latim e o hebraico. Podemos admitir que não havia melhor mestre para introduzir o rico e maravilhoso mundo mítico do que este célebre maestro e compositor alemão, cujas obras dão nova  vida a todo um arcabouço de lendas e mitos o que, de certo modo, faria Lewis em seus livros. Mesmo depois de abraçar a fé cristã e se tornar um protestante anglicano, o mundo pagão, com suas lendas cheias de deuses imperfeitos, heróis cativantes e humanos ansiosos por uma imortalidade que nunca teriam, continuou a fascinar a mente do autor.

 

Durante a Primeira Guerra Mundial, conheceu outro soldado Irlandês, Paddy Moore, com quem teve uma profunda amizade. Os dois fizeram uma promessa: se um deles falecesse durante o conflito, o outro tomaria conta da família respectiva. Moore faleceu em 1918 e Lewis cumpriu seu compromisso, indo à procura da mãe de seu amigo e tendo com esta uma relação de amizade e admiração, o que se explica facilmente, pois, assim como a senhora Moore perdera o filho, Lewis, jovem, perdera a mãe. Como nos deixa claro Nicholi:

 

Alguns biógrafos especulam que Lewis e a senhora Moore tenham sido amantes, mas as evidências testificam em contrário. Em suas cartas, Lewis deixa a sua relação de mãe-filho clara, sem sombra de dúvida: “Ela é a senhora que eu chamo de mãe e com a qual convivo”; “Na verdade, ela é a mãe de um amigo”; “Minha mãe sofrida”; “Minha mãe mais velha”. Depois da morte da Senhora Moore, Lewis continuou a referir-se a ela dessa forma: “Houve uma grande mudança na minha vida em decorrência da morte da idosa senhora, a quem eu chamava de mãe. Ela morreu sem dor aparente, depois de muitos meses de existência semiconsciente, e seria uma hipocrisia dizer que isso nos trouxe muito pesar”.

George Sayer, um aluno e posteriormente um amigo chegado de Lewis, além de biógrafo, descreveu “o relacionamento de Jack com a Senhora Moore… como composto por gratidão por sua bondade maternal e hospitalidade generosa, por pena dela, por ser mãe do seu melhor amigo do tempo de guerra, e pelo compromisso de cuidar dela, se o seu amigo Paddy fosse morto”. ( Nicholi. 2005 , p. 35-36)

 

 

Esta moral intrínseca de Lewis sobre conceitos como honra e lealdade, evidenciada pelo cumprimento deste compromisso firmado em plena guerra, se refletiriam em muitos de seus trabalhos, como também o conceito de perda, restituição e mortalidade. Ele afirmou que a guerra coloca diversas mortes mais cedo e que um dos aspectos positivos da guerra é que ela nos alerta de nossa mortalidade.

Lewis, nesse momento, ainda permanecia um jovem ateu convicto com uma profunda admiração pelo trabalho de vários pensadores ateístas, como Sigmund Freud.

Sigmund Freud e C. S. Lewis possuíam muitos paralelismos e, de fato, o pai da psicanálise foi um dos pensadores que fascinaram Lewis por muito tempo, mesmo quando este aderiu ao cristianismo. Nicholi nos revela que:

 

As experiências de infância de Freud e Lewis revelam um  paralelismo considerável. Tanto Freud quanto Lewis, quando meninos, tinham dons intelectuais que permitiam antever o profundo impacto que eles provocariam como adultos. Ambos sofreram perdas significativas nos primeiros anos de vida. Ambos tinham um relacionamento difícil, cheio de conflitos com os seus pais. Ambos foram instruídos desde cedo na fé da sua família e registraram uma aceitação nominal daquela fé. Ambos rejeitaram o sistema de fé anterior e se tornaram ateus na adolescência. Ambos leram autores que os persuadiram a rejeitar as crenças nominais da infância. Freud foi fortemente influenciado por Feuerbach e os muitos cientistas que ele estudou quando estudante de medicina e Lewis, pelos seus professores, que lhe davam a impressão de que “as ideias religiosas não passavam de ilusão… uma espécie de absurdo endêmico”.( Nicholi , 2005, p.43)

 

Quando voltou a Oxford, C. S. Lewis formou-se com louvor em letras e literatura aos 22, em 1920, em Oxford. Nessa mesma cidade, conheceu vários escritores famosos, como J. R. R. Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis, de quem viria a se tornar grande amigo e quem, por meio de uma discussão , numa noite em 1931, seria fundamental para sua conversão  ao cristianismo e para que Lewis se tornasse um autor ainda mais fascinante com obras literárias, de crítica literária e de teologia.

Tolkien investiu por bastante tempo no jovem amigo e, de certo modo, ficou desapontado com a ida do amigo para o protestantismo anglicano, embora deva-se ressaltar que a amizade de ambos foi marcada por uma grande admiração. Mesmo quando as diferentes perspectivas sobre a teologia e a vida cristã afetaram um pouco a amizade deles, os dois continuaram inspirando um ao outro, tendo Lewis sido uma motivação para Tolkien escrever seu célebre livro O Senhor do Anéis :

O Lewis, praticamente, foi o único que teve acesso ao manuscrito do ‘Senhor dos Anéis’. A amizade foi bastante profunda. “Lewis apreciava bastante a mitologia nórdica e o gosto por esse tipo de literatura foi o que aproximou Tolkien no começo”, conta a pedagoga Gabriele Greggersen, especialista em C.S. Lewis, e autora de livros como: “Antropologia Filosófica de C.S. Lewis”, “A Pedagogia Cristã na Obra de C.S. Lewis”, “O Senhor dos Anéis: da imaginação à ética” e “A Magia das Crônicas de Nárnia. (De Castro).

 

Chamado “apóstolo dos céticos”, sendo assim conhecido principalmente nos Estados Unidos, Lewis notabilizou-se por uma inteligência privilegiada e uma escrita cativante, um estilo espirituoso, imaginativo e estimulante. “O Regresso do Peregrino”, publicado em 1933, “O Problema do Sofrimento” (1940), “Milagres” (1947), e “Cartas de um diabo ao seu aprendiz” (1942), são provavelmente suas obras mais conhecidas por cristãos do mundo todo. O renomado evangelista Billy Graham teve o prazer de conhecer Lewis e, desde o encontro, sempre que era questionado sobre Lewis, ele afirmava ser este uma mente fascinante.

Lewis escreveu também uma trilogia de ficção científico-religiosa conhecida como a “Trilogia Espacial”: “Além do Planeta Silencioso” (1938), “Perelandra” (1943), e “Aquela Força Medonha” (1945). Para crianças, escreveu uma série de fábulas, começando com “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”, conto que é nosso texto de análise, em 1950, o que resultou no livro As Crônicas de Nárnia. Sua autobiografia, “Surpreendido pela Alegria”, foi publicada em 1955.

 

2. A construção da ficção em C.S Lewis

 

2.1 A questão da alegoria

 

Lewis foi um grande intelectual que, sem dúvida, marcou seu tempo e inspirou uma geração de autores vindouros. Todavia, As Crônicas de Nárnia sempre foram alvo de discordância entre diferentes críticos pelo fato de que alguns compreendem a série de contos como uma alegoria enquanto outros, não. Estes preferem evitar a simplicidade de entender o livro como uma alegoria bíblica, baseando-se especialmente em afirmações feitas pelo próprio Lewis, que, veementemente, negava ter escrito os contos como uma alegoria. J.R.R Tolkien foi um dos pensadores notáveis que entendia o mundo de Nárnia como uma alegoria e, por ser um árduo crítico desse tipo de recurso estilístico, não creditou ao primeiro conto de Lewis, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa,  grande valor literário:

Tolkien não gostava de alegoria tão intensamente porque ele sentia que era demasiado didático. Não deixa possibilidade para que existam outros níveis de sentido no trabalho. Tolkien percebia o artista, criado à imagem de Deus, como sendo um “sub-criador” – produzindo um trabalho de imaginação que funcionava melhor quando seguia a própria complexa ação de criação de Deus. Para fazer isso com mais sucesso, um mundo alternativo completo teve que ser criado em que a obra da redenção poderia ser jogada dentro das suas próprias limitações consistentes e lógicas. Não era suficiente criar um mundo com apontamentos simbólicos a Jesus Cristo e à cruz; esse mundo tinha de ter uma história inteira e uma dinâmica interna única que pudesse encarnar as verdades universais de uma maneira totalmente refrescante. (Longenecker)

 

O mundo criado por Tolkien em O Senhor dos Anéis é bem mais complexo e vasto que o de As Crônicas de Nárnia, sem dúvida, porém, vale ressaltar que a vastidão de uma obra ou o uso de certo elemento estilístico por si só não tornam tal escrito mais grandioso que outro. Muitas obras usaram a alegoria como recurso literário. Algumas das histórias mais populares da literatura são alegóricas. Em A Divina Comédia, de Dante Alighieri, por exemplo, Dante representa a humanidade que viaja através do Inferno, Purgatório e Paraíso. Já em O Peregrino, de John Bunyan, conceitos como esperança e misericórdia se tornam personagens da vida real em sua saga de um homem (chamado Christian) em busca de salvação. Assim, também, o primeiro livro de Lewis escrito depois de sua conversão cristã denominava-se O Regresso do Peregrino, uma alegoria onde Lewis descreve o seu caminho rumo à fé cristã de modo similar ao realizado por Bunyan. Lewis já havia utilizado a alegoria antes e é entendível que muitos críticos creiam que ele a utilizou mais uma vez em As Crônicas de Nárnia. Entretanto, Lewis deixou claro o que havia escrito:

Embora Lewis deixasse claro que As Crônicas de Nárnia não seja uma alegoria, ele não nega que algum simbolismo foi escrito para a série. Mas, para compreender a sua abordagem, é preciso reconhecer que Lewis diferencia alegoria a partir de algo que ele chama suposição. Em uma carta de 1959 a uma jovem garota chamada Sophia Storr, ele explica a diferença ( grifo meu):

Eu não digo. ‘ Vamos representar Cristo como Aslan . ‘ Eu digo, ‘ Supondo que houve um mundo como Nárnia, e supondo, que como o nosso, precisava de redenção, vamos imaginar que tipo de Encarnação e Paixão e Ressurreição de Cristo haveria lá. ”

Alegoria e suposição não são dispositivos idênticos, de acordo com Lewis , porque eles lidam com o que é real e o que é irreal de forma bastante diferente . Em uma alegoria, as ideias, os conceitos e até mesmo as pessoas que estão sendo expressas são verdadeiras, mas os personagens são de faz de conta. Eles sempre se comportam de uma maneira reflexiva dos conceitos subjacentes que eles estão representando. Uma suposição é muito diferente; o personagem de ficção torna-se “real” no mundo imaginário, assumindo uma vida própria e adaptando-se ao mundo de faz-de-conta, se necessário. Se, por exemplo, você aceita a suposição de Aslam como verdade, então Lewis diz: “Ele realmente tem sido um objeto físico em que o mundo como ele era na Palestina, e Sua morte na Mesa de Pedra teria sido um evento físico não menos do que a sua morte no Calvário “(Allegory and Symbolism: Deciphering the Chronicles)

 

 

 

Lewis criou sua série de contos partindo de uma simples ideia: se há outros mundos dimensionalmente paralelos ao nosso, como Cristo se apresentaria neles? Ora, num mundo como Nárnia, onde animais falam, seres mitológicos vivem e a presença do homem é como um mito, uma lenda transmitida por antepassados durante gerações, claro que, neste mundo, a figura do redentor cristão não poderia ser personificada em um homem; a figura do Leão o representaria melhor, já que concebemos a imagem deste animal como um ser nobre e soberano e, ao longo de nossa história, leões foram símbolos de poder e majestade usados como insígnias de reis e estandartes de guerra. O rei da Inglaterra Ricardo I, conhecido como Ricardo Coração de Leão entre súditos e inimigos, devido à sua fama de grande guerreiro e estrategista militar é uma evidência de como atribuímos tanto poder à imagem do leão e como, na cultura ocidental e oriental, tal imagem vincula-se aos adjetivos previamente citados.

Lewis optou pelos contos por crer que suas limitações reforçariam sua criatividade e cuidado com o uso de vocábulos. Tolkien optou por um gênero que o permitisse descrever em minúcias o mundo que criara e, da mesma forma, cada um de seus personagens é explicado página após página, de acordo com a origem geográfica de cada um, cultura, história e, mesmo, de acordo com a língua. Lewis viu nos contos de fadas o desafio que buscava como também as possibilidades que ansiava como escritor

 

Mas a Forma que exclui essas coisas é o conto de fadas. E no momento que pensei sobre isso, eu me apaixonei pela Forma: sua brevidade, suas restrições severas à descrição, seu tradicionalismo flexível, sua hostilidade inflexível a toda análise, digressão, reflexão e “conversa fiada”. Fiquei apaixonada por ela. Suas próprias limitações de vocabulário tornaram-se uma atração, como a dureza da pedra agrada ao escultor ou a dificuldade do soneto deleita aquele que o escreve.

Por esse aspecto, como Autor, escrevi contos de fadas porque o conto de fadas parecia a Forma ideal para as coisas que eu tinha de dizer.

(Lewis, C.S. Sobre Histórias)

 

 

Ora, como vemos, embora não possamos negar que uma leitura de Nárnia como uma alegoria seja possível, seria mais coerente entender a sua criação como um universo novo com paralelos com a história da humanidade e seu próprio redentor espiritual. Se lermos os contos de acordo como a ideia de que são uma suposição (Lewis, 1982) podemos ver que, de fato, As Crônicas de Nárnia funcionam como mito. Lewis explica que uma alegoria é uma história com um sentido único, mas um mito é uma história que pode ter muitos significados para diferentes leitores em diferentes gerações.

 

Um Olhar sobre o mundo mágico de Lewis- A intertextualidade bíblica em as crônicas de Nárnia

 

E ele disse-lhes: A vós vos é dado saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas coisas se dizem por parábolas,

Para que, vendo, vejam, e não percebam; e, ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados.

Marcos 4:11-12

 

Desde seu lançamento, O leão, A feiticeira e o Guarda-Roupa e, consequentemente , os outros contos, várias análises tem sido realizadas sobre a forte intertextualidade bíblica presente neles. Desejamos deixar claro que, quando um autor faz uso do termo “bíblico” deve-se ter cuidado, pois C. S. Lewis não se atrelou somente aos textos canonizados pela igreja católica ou protestante, mas buscou em textos não canônicos, apócrifos, certas ideias e inspirações; a ideia de a bruxa ser filha de Adão com Lilith é um exemplo, pois Lilith se encontra nos textos hebraicos da Bíblia, porém, esse nome foi retirado de todas as traduções bíblicas e representa, segundo a mitologia judaica, a primeira mulher de Adão, que fora expulsa por DEUS por tentar ser superior ao cônjuge. Exploraremos esse ponto um pouco mais adiante, contudo, fiquemos, por ora, com a parte mais clássica do estudo da intertextualidade bíblica presente em Nárnia.

O primeiro ponto a se tratar é que, pedagogicamente, Crônicas de Nárnia se assemelha a uma parábola. Dentro da Bíblia, as parábolas eram utilizadas para transmitir conceitos morais e éticos de um modo mais atrativo e que alcançasse um público bastante heterogêneo. Um doutor em teologia leria as parábolas de JESUS de um modo muito mais complexo do que um analfabeto, todavia, ambos teriam a compreensão do princípio moral abordado na parábola. Lewis trata seus contos como uma maneira de passar ensinamentos morais sem ter que limitar o público ao qual se destinaria. As Crônicas de Nárnia segue esse mesmo principio didático. Botelho, muito pontualmente, declara:

Ressaltamos a intertextualidade entre As Crônicas de Nárnia e a Bíblia, ou seja, os temas, as figuras, as ideias bíblicas retomadas nas Crônicas são apresentadas de maneira a serem reforçadas e não contestadas ou questionadas. Alguns temas teológicos polêmicos, cuja posição bíblica não é clara, são de fato discutidos, como no caso da eleição dos justos e do gentio virtuoso.

Temas como a graça e a colaboração humana estão presentes no livro O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa. Graça é a ação gratuita de Deus da qual o homem é beneficiário. Assim como no conto de fadas as coisas acontecem (happen) por acaso às personagens, assim também a graça divina proporciona uma experiência gratuita. (Botelho, 2005)

 

Da mesma forma que Nárnia acontece quando não se procura por ela a Graça redentora de DEUS se manifesta de forma semelhante; Graça acontece e não há razão ou lógica que possa explicar o que de fato ela é ou como se relaciona com o plano da salvação.

 

Atualmente, quase todos os teólogos, protestantes ou católicos romanos, concordam quanto à premissa fundamental da necessidade da graça para a recuperação espiritual do homem. A queda do homem no pecado foi por demais radical e profunda para que ele possa retornar sozinho a Deus, para ele

…voltar à vereda espiritual e, finalmente, à. salvação. Onde os teólogos não encontram terreno comum é sobre quanto da vontade humana está envolvida na questão. Alguns mestres falam em monergismo, dando a entender que somente Deus mostra-se ativo como uma força na salvação do homem, mediante a graça. Mas outros ensinam o sinergismo, dizendo que a vontade do homem é uma realidade, podendo responder, positivamente, à graça divina, devendo fazer parte daquilo que a graça divina realiza. ( Champlin, 1995, p. 953) ( Grifo meu).

 

 

A Bíblia refere-se a essa questão relacionando a GRAÇA com a própria pessoa de Cristo, especialmente nos versículos achados nos evangelhos de Lucas, capítulo 12, verso 40, onde se lê: “Ficais vós também apercebidos porque a hora em que não cuidais, o Filho do Homem virá.”, em Mateus 24:50, lê-se “Virá o senhor daquele servo em dia que não espera e em hora que não sabe.” (A BÍBLIA SAGRADA, 1993). Comparemos o dito nos versículos com o que afirma a própria obra de Lewis.  O primeiro livro da série, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, termina com o seguinte aviso: Não tentem seguir o mesmo caminho duas vezes.  (2009, p. 166). Da mesma forma, em A Cadeira de Prata, Aslam deixa claro para Gilda que foi Ele quem a chamou. Botelho explica tal questão:

Em síntese, Lewis propõe que a reconciliação da humanidade com Deus, de Nárnia com Aslam se dê por meio da graça em primeiro lugar, porém sem desprezar a colaboração humana que, para tal colaboração, faz uso de todo conhecimento da ciência e da arte que o homem acumulou na Terra. Quanto à teologia da redenção, como bem assinala Gabriele Greggersen, Lewis está de acordo com a linha teológica de Tomás de Aquino que afirma a liberdade do agir de Deus. Ambos afirmam a liberdade divina que se contrapõe a uma teologia racionalista, mas que ao mesmo tempo não é arbitrária. O filósofo Joseph (sic) Pieper discorre sobre esse assunto comentando a posição equilibrada de Tomás de Aquino, cuja afirmação é de que a liberdade de Deus e suas razões são reservadas a ele mesmo.( Botelho, 2005)

 

Os personagens presentes em Lewis não são perfeitos em caráter, o que explica a necessidade que eles têm de redenção e perdão. Edmundo deveria ser sentenciado à morte na mesa de pedra, mas foi poupado por causa do sacrifício de Aslam da mesma maneira que CRISTO sacrificou a si mesmo pela humanidade. Embora devamos ser cautelosos com nossas comparações e seguirmos a ideia de que Aslam foi concebido como uma grande suposição e , portanto, tudo que ocorre dentro de Nárnia se assemelha à narrativa bíblica quanto às suas questões morais e teológicas mais profundas, podemos, nessa linha, ver que Aslam, em sua decisão de se sacrificar no lugar do irmão traidor, Edmundo, conecta-se com o sacrifício de Cristo, assim, tanto na Bíblia como na obra de Lewis, o amor e o perdão levam o justo ao sacrifício. A magia mais profunda ,que é mencionada várias vezes por Aslam, possui o típico caráter misterioso e redentor da Graça. Teologicamente, a lei escrita por DEUS na Torah condena a humanidade à morte e destruição e somente um sacrifício maior e melhor do que o estabelecido na Torah, o qual é feito através do sangue de novilhos, poderia redimir a humanidade. A magia profunda condena Edmundo à morte:

Débil mental! – disse a feiticeira, com um riso de fúria que era quase um grunhido. – Está tão convencido assim de que o seu senhor me pode privar dos meus direitos pela força? Ele conhece bem demais a Magia Profunda para atrever-se a isso. Sabe que, a não ser que eu receba o sangue a que a lei me dá direito, toda a terra de Nárnia será subvertida e perecerá em água e fogo.

 

A lei expressa na Torah, a representação maior do Antigo Testamento, não pode ser quebrada, como o próprio Cristo afirma em Mateus 5: 17-18 :

Porque em verdade vos digo: Enquanto não passar o céu e a terra, de modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, sem que tudo se cumpra.

Aquele, pois, que violar um destes mínimos mandamentos, e assim ensinar aos homens, será chamado mínimo no reino dos céus; mas aquele que os observar e ensinar, esse será chamado grande no reino dos céus.

 

Da mesma maneira, Aslam reconhece que a magia profunda não pode ser quebrada:

É verdade! – disse Aslam. – Não posso negá-lo.

– Oh! Aslam! – sussurrou Susana, ao ouvido do Leão. – Não

podemos nós… quer dizer, isto é, não vai acontecer nada, não é? Não se pode dar um jeito nessa Magia Profunda?

– Enfrentar o poder mágico do Imperador?

Aslam voltou-se para ela, com o rosto ligeiramente carregado. E ninguém mais tocou naquele assunto.

 

 

 

Aslam se oferece no lugar de Edmundo e a atitude da feiticeira mostra que ela acredita ser essa decisão uma grande tolice e uma chance de ela dominar Nárnia de modo definitivo:

Quem venceu, afinal? Louco! Pensava com isso poder redimir a

traição da criatura humana?!

Vou matá-lo, no lugar do humano, como combinamos, para sossegar a Magia Profunda. Mas, quando estiver morto, poderei matá-lo também.

Quem me impedirá? Quem poderá arrancá-lo de minhas mãos?

Compreenda que você me entregou Nárnia para sempre, que perdeu a própria vida sem ter salvo a vida da criatura humana. Consciente disso, desespere e morra.

 

Aslam morre, todavia uma magia mais profunda, concebida muito antes da magia profunda, traz Aslam de volta à vida:

Não! Você está vivo! Oh, Aslam! – gritou Lúcia, e as duas meninas

atiraram-se sobre ele com mil beijos.

– Mas explique tudo isso, por favor – disse Susana, ao recuperar um

pouco da calma.

– Explico: a feiticeira pode conhecer a Magia Profunda, mas não

sabe que há outra magia ainda mais profunda. O que ela sabe não vai além da aurora do tempo. Mas, se tivesse sido capaz de ver um pouco mais longe, de penetrar na escuridão e no silêncio que reinam antes da aurora do tempo, teria aprendido outro sortilégio. Saberia que, se uma vítima voluntária, inocente de traição, fosse executada no lugar de um traidor, a mesa estalaria e a própria morte começaria a andar para trás…

 

 

O paralelo com a ressurreição de Cristo , segundo a linha tradicional da cristandade, é claro, mesmo para um ouvinte dominical de sermões e liturgias. Aslam, ao longo da obra, faz alusão a outro “eu (JESUS)” que reside no mundo humano e que deveria ser encontrado lá. O modo como a obra termina com o conto “A Última Batalha”, o apocalipse de Nárnia, considerando o Sobrinho do Mago como o gênesis, apresenta o fim de Nárnia e do mundo humano e através de seus personagens vemos lutas que marcam a caminhada cristã como a dúvida versus a fé e o engano versus a verdade transcendental. Lewis apresenta ao leitor uma obra que traz a mística da cristandade sem o peso da racionalidade teológica e, talvez, seja este tipo de abordagem que mais necessitamos nos dias de hoje.

 

Bibliografia:

 

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CHAMPLIN, R. N. e BENTES, J. M. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e. Filosofia. 6 volumes. São Paulo: candeia, 1995.

 

CHAMPLIN, R. N. e BENTES, J. M. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e. Filosofia. 5 volumes. HAGNOS, 2008.

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LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa. Tradução de Paulo Mendes Campos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

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