São Paulo, 8 de março de 1999.

Cara Leitora,

Nesse dia internacional da mulher, convidada para escrever sobre o tema “educação”, resolvi tomar a liberdade de usar uma via menos formal, por meio desta carta, seguindo, na prática o exemplo do autor a quem dedico o artigo, que escrevia para todo o tipo de leitores de todo o mundo: eruditos e não tão eruditos; pessoas práticas e teóricas; homens, mulheres e até crianças (mesmo sem ter tido a experiência de uma paternidade imediata, ele se dava bem com crianças), revelando um profundo conhecimento do ser humano. Aliás, o colorido e a capacidade de criar imagens ricas e muito vivas é a marca registrada do autor.

Trata-se do hoje mundialmente famoso pensador britânico e professor de Oxford e Cambridge, C. S. Lewis (1898-1963), cujo centenário comemoramos há poucos meses atrás. No Brasil, é mais conhecido entre leitores cristãos, por seus livros teológicos, traduzidos pela Editora Mundo Cristão e ABU Editora (O Problema do Sofrimento, O Grande Abismo, Os Quatro Amores, O Peso da Glória, Cristianismo Puro e Simples (2).

Para dar uma idéia melhor da história deste, crítico literário e catedrático de Oxford (Magdalene College, de 1925 até  1954) e Cambridge (como professor de Literatura inglesa medieval e renascentista), recomendo a leitura de sua autobiografia Surpreendido pela Alegria (3) e o vídeo Shadowlands (Terra das Sombras), de Richard Attenborough, inspirado na obra escrita escrita por Lewis logo após a morte de Joy, sua esposa (estrelando Anthony Hopkins).

O sucesso de vendas deve-se também ao fato de ser leitura obrigatória para cristãos e estudantes universitários por todo o mundo, além de ser um ótimo meio para alcançar não-cristãos de todos os tipos, pois conta a trajetória de um ateu convicto para teísta e cristão.

Também não podemos esquecer as mais populares e amadas obras de ficção cien tífica (As Crônicas de Nárnia, Cartas do Coisa Ruim, Longe do Planeta Silencioso e Perelandra), recomendadas no currículo das escolas regulares, escolas dominicais e grupos familiares de diversas igrejas nos Estados Unidos.

Entre as razões para a celebração de sua obra por todo o mundo, está a sua própria vida, marcada pela dor desde menino. A morte da mãe, que narra como tendo sido a sua primeira “experiência religiosa”, levou-o à conclusão de que não há Deus,  dando início á sua busca por joy, a alegria (e, curiosamente, Joy viria a ser também o nome de sua futura esposa). É curioso ainda notar que nessa sua busca, Lewis sempre especulava sobre “Deus e o mundo” desde o seu primeiro poema publicado quando ainda era ateu, até a sua última carta, escrita para uma criança, que havia lido O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas.

Tudo leva a crer que o que atrai na vida desse autor é a forma simples com que encara e lida com a dor, o sofrimento e a busca pela alegria, com seu estilo inconfundível, pautado pela franqueza e abertura.

Mas é pelas milhares de cartas que escreveu que se pode melhor notar a simplicidade de sua perspectiva de vida. Os conselhos que dá aos amigos expressam essa tese fundamental da saudade que inspira toda a sua vida e obra, podem, subitamente, abrir uma portas insuspeitas no fundo do velho e abandonado guarda-roupas da nossa espiritualidade.

Essa busca pela alegria (joy, que é mais do que isso, é a busca, ou desejo por realização) também chamada de longing, fica especialmente clara em sua primeira Crônica de Nárnia, O Leão a Feiticeira e o Guarda-Roupas (2) . Ela contém, de forma resumida, todos os elementos essenciais da doutrina cristã, expressos através do uso da imaginação, como Lewis mesmo admite numa de suas cartas. É pelas cartas também que descobrimos que as Crônicas, apesar de terem sido escritas para crianças, são obras do seu “eu” amadurecido, sendo lidas e apreciadas também pelos adultos.

Pelas cartas ainda podemos ter uma melhor idéia do que Lewis entendia por educação cristã e da percepção que tinha do universo feminino. Em Letters to an American Lady (1), escritas para uma senhora americana que ele nunca conheceu pessoalmente encontramos alguns dos mais profundos insight’s de quem leva uma vida de puro cristianismo, marcada pela simplicidade e intimidade com Deus, que é condição para toda e qualquer educação cristã.

Para termos uma idéia da riqueza destes pensamentos, inspirados no cotidiano de um homem comum (e por isso mesmo notável), tomei a liberdade de traduzir alguns trechos particularmente exemplares da didática lewisiana. Graças a ela, o autor consegue comunicar-se à distância, estabelecendo uma relação de ensino-aprendizagem, marcada pela compreensão, equilíbrio, bom-senso busca do com-senso, livre de todo tipo de extremos: do preconceito ou da unanimidade acrítica.

Considerando a atual divisão que há entre os cristãos, penso que os que se colocam no centro de cada tendência estão muito mais próximos uns dos outros do que os que estão nos extremos. Esse princípio é aplicável para além até mesmo das fronteiras do cristianismo: quanta coisa não temos em comum com o judeu ou muçulmano, mais do que com aquele tipo de sujeitinho mesquinho, liberalizado e ocidentalizado da nossa própria cultura… (11-12, 10.11.52)

Para manter essa postura, Lewis usa um só e bem definido modelo, que é Cristo mesmo: “Ele dignou-se a compartilhar nossa humanidade, presumo que, em parte, porque toda criatura está mais próxima do seu criador do que pode estar de qualquer outra criatura superior.” (13, 4,3,53)

Por mais decaído que esteja o homem, Lewis nunca recai no extremo ceticismo, ignorando o fato de ter sido criado à imagem e semelhança do próprio Deus. Por isso, o fato da queda traz consigo uma surpresa: a encarnação, que abriu a possibilidade da reconciliação com Deus, que é o que, no fundo, estamos buscando todo o tempo. É esse fato: de sermos criaturas e criaturas perdidas é que nos une a todos, independente de raça, cor, gênero, etc.

A perspectiva de ser humano como criatura também muda toda a postura diante do sobrenatural e do relacionamento com Deus, que se expressa numa atitude completamente contrária à egocêntrica. Trata-se de uma perspectiva autenticamente centrada em Cristo, como você poderá observar no trecho a seguir:

Nossas orações muitas vezes dão errado, porque nós insistimos em tentar falar com Deus quando, na verdade, ele é que está querendo falar conosco. Joy contou-me que, certa vez, anos atrás, foi surpreendida de manhã pela impressão de que Deus queria algo dela, até tornar-se uma pressão persistente, como o peso de um dever negligenciado. E até tarde da manhã continuou perguntando-se o que era. Mas, no momento em que parou de se preocupar, a resposta surgiu tão clara quanto em viva-voz. `Não quero que faça nada. Quero é dar-lhe algo ‘; e imediatamente seu coração encheu-se de paz e luz. Santo Agostinho diz que ‘ Deus dá a quem tem as mãos vazias’. Ninguém que está com as mãos cheias de pacotes pode receber um presente. (73, 31,3,58)

Não é preciso lembrá-lo de que essas são, precisamente as palavras do Mestre, quando diz que somente perdendo nossa vida, podemos ganhá-la (Lucas 9: 23-24) e quando diz que a cada dia basta o seu  próprio mal (Mat. 6:34). Trata-se, isso mesmo, de um “plágio”, de uma imitação santa, daquele que é nosso modelo:

suponho que viver a vida a cada dia (…) é precisamente o que nós temos que aprender – mesmo quando o velho Adão em mim às vezes alega que, se Deus quisesse me fazer viver como os lírios do campo, por  que não me dá a mesma dose de nervos e imaginação que eles! Ou será esse precisamente o ponto, o propósito exato deste paradoxo divino e audacioso chamado ser humano – fazer, dotado de razão, tudo aquilo que outros seres fazem sem ela? (79, de 30,10,58)

A simplicidade desses pensamentos do autor, que é a marca registrada dos “clássicos”, dá a Lewis o equilíbrio necessário para “considerar todas as coisas e reter o que é bom” (cf. I Tess. 5:21), como vemos no trecho a seguir:  “Nós que ainda apreciamos os contos de fada temos menos razão para realmente desejarmos voltar à infância. Conservamos seus prazeres, acrescidos de certos prazeres adultos. ” (16, 22,6,53)

Esta postura equilibrada diante das expressões “pagãs” desta busca, pela via da imaginação (que não se confunde absolutamente com o fingimento, a enganação, a alienação, nem mesmo para a criança) permite-lhe dar um tratamento aberto e honesto às pessoas: “medo é uma sensação horrível, mas isso não é razão para vergonha. Nosso Senhor sentiu-se atemorizado (…) no Getsêmani. Essa lembrança sempre me parece um fato muito confortante.” (41, 2,4,55)

Quando Lewis fala em sensações, não se refere aquele tipo de subjetivismo que considera “cada cabeça, uma sentença”, mas a sentimentos que se referem a coisas reais. E o que temos que aprender é de lidar com as coisas concretas, muito mais do que com as sensações: “É para a presença real, e não, para a mera sensação de presença do Espírito Santo que Cristo apela em nós “(38, 20,2,55)

Lewis adverte contra todo o tipo de extremismo que nos distrai dessa presença real, como, por exemplo, o ativismo:

lembre-se de que acreditar na virtude do ‘fazer pelo fazer’ é um traço do caráter feminino, do americano e do moderno: o sentimento de cuidado pode não passar de inquietação ou oscilações auto-lisonjeiras da nossa auto-estima. Como Mac Donald já dizia ‘o sagrado pode conter avidez profana’. E, ao nos empenharmos em cumprir deveres desnecessários, podemos estar nos tornando menos dispostos para cumprir com os verdadeiros deveres, cometendo, assim, um tipo de injustiça. Por que não dá uma só chance à Maria4, e também à Marta! (53, 19,3,56).

Como você pode ver a partir desse exemplo, sempre que exorta sua amiga, Lewis o faz com uma atitude de amor, nunca de forma soberba ou de pouco caso pela dificuldade e sofrimento que estão em jogo (atitude à qual alude até com ironia). Pois, como bons cristãos: “é lógico que fomos instruídos em como lidar com o sofrimento – oferecendo-o a Deus em Cristo, como muito singela, modesta mesmo, participação do sofrimento de Cristo – contudo: como é duro praticá-lo, não?” (55, 26,4,56).

A mesma simplicidade honesta, combinada com seu bom-humor, é aplicada também no seguinte trecho, referente ao seu casamento:

não há nenhum mistério quanto à minha união. Eu já a conhecia há muito tempo: ninguém pode definir o momento exato em que a amizade se transformou em amor. Você deve imaginar também, que a doença – o fato de que ela estava enfrentando dor e morte e preocupação com o futuro de seus filhos – tornou-se uma razão a mais para eu casar-me com ela ou pelo menos, uma razão para casar logo.

Ao falar do seu sofrimento, de ver Joy morrendo e de suas próprias dores, decorrentes do câncer, Lewis admite quase para si mesmo: “se nós realmente acreditamos naquilo em que dizemos acreditar – se realmente cremos que o nosso lar está em outro lugar e que esta vida é uma ‘peregrinação em sua busca’, por que não olhamos para frente, rumo à chegada?” (84, 7,6,59)

Com isso Lewis faz uma crítica contra toda espécie de imediatismo materialista (como a teoria de prosperidade), endereçada aos próprios cristãos, a quem ama como irmãos. Esta postura crítica pode ser observada também na sua reação, extremamente consciente e sincera, à morte de Joy: “Joy morreu no dia 13. A aparente virtualidade da minha vida desde então é simplesmente indescritível. Ela foi absolvida, morreu na santa paz, está com Deus. Tentarei escrever outro dia, quando tiver maior autocontrole. No momento, sinto-me como um sonâmbulo. Deus te abençoe” (91, 15,7,60).

Não fica claro, nesse trecho, que a consciência da dor, longe de torná-lo um cético, por extrema que seja, vem sempre acompanhada de um prenúncio cheio de esperança, de um ser que saber que não é perfeito mas que se sabe “a caminho” de um lugar maior:

as coisas que se encontram adiante são muito melhores do que qualquer uma que deixamos para trás. Lembre-se: quanto mais lutamos contra as coisas das quais temos medo, mais experimentamos o que tememos: ficamos com medo pelo simples fato de estar lutando. Você está lutando, resistindo? Você não percebe que o nosso Senhor está lhe dizendo ‘Paz, filha, paz. Relaxe. Deixe acontecer. Embaixo de você encontram-se braços eternos. Pode soltar-se, que eu te pego. Será que você poderia confiar um pouco em mim? (117, 17,6,63).

É esta perspectiva sobrenatural, aberta para o que transcende “aqui e agora”, que motiva o autor , nos últimos dias antes de sua morte, a superar-se, chegando ao ponto de resolver um problema que carregava no coração desde a sua infância: “.. você sabe, há algumas semanas atrás somente, eu me dei conta, de repente, de que finalmente tinha perdoado o cruel diretor que tanto obscureceu minha infância. Estava tentando há anos; e, como no seu caso, toda vez que eu pensava ter conseguido, percebia, depois de mais ou menos uma semana, que precisava começar tudo de novo. ” (120, 6,7,63)

Aqui você pode ver, a enorme importância que o autor atribui à educação. Sua mágoa contra o sistema britânico, carregada de liberalismo e elitismo, não o impede repensar e refletir sobre a escola.

Certamente ainda haveria muito a escrever a respeito deste importante autor, procurando traduzir suas idéias para a nossa realidade, como mulheres. Que tal você mesma contribuir, mencionando como foi que Deus usou estas breves reflexões no seu dia-a-dia?

Fico no aguardo da sua resposta

Um abraço

Gabriele Greggersen

Notas:

(1) Hoje, traduzido para  Cartas a uma Senhora Americana – Ed. Vida.

(2) Cf. tradução da Editora Mundo Cristão, 1998.

(3) Apesar de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupas ter sido cronologicamente a primeira das sete Crônicas de Nárnia, a atual editora (Martins Fontes), que lançou nova revisão na bienal do Rio em 1997, segue a ordem lógica, começando por O Sobrinho do Mago.

  1. Parabéns pelo texto! Muito edificante…
    A parte que fala sobre Deus tentando nos ensinar a relaxar e a não sermos dominadas pelo medo falou muito comigo.
    Acredito que todas as mulheres enfrentem o drama da ansiedade e do excesso de responsabilidade rsrsrr
    Não é maravilhoso ver que Deus se dirige a nós para nos ajudar, mesmo em pequenos embaraços do dia a dia?
    Palavras como as que você escreveu me dão um melhor ânimo =) Ele não nos trata como nós nos tratamos a nós mesmos..

    Saudades de vocẽ. Quando volta por aqui?
    Abraços

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