Mais uma vez Angola
Por Antonia Leonora van der Meer (Tonica)
Vivi pouco mais de 10 anos em Angola, no tempo da Guerra Civil Angolana. Voltei ao Brasil em agosto de 1995. Mudei-me para Viçosa, MG, para trabalhar no CEM (Centro Evangélico de Missões), e experimentei um tempo com muitos desafios e bênçãos por 17 anos. Em outubro de 2013, voltei para Carambeí, PR, minha cidade de origem para estar mais perto da família e procurar influenciar minha igreja com visão missionária transcultural, que vá além do contexto imediato de plantar igrejas no Estado e exercer ministério nas escolas. Demorou um pouco para ver frutos, mas agora estão brotando, graças a Deus.
Em setembro de 2023, fui para Angola acompanhada de Susane Biersteker, uma jovem e dinâmica fisioterapeuta, que há anos mostrou interesse em me acompanhar. Ela foi uma companhia abençoada nesta viagem.
O que me trouxe mais alegria e também dores?
Foi motivo de alegria a Associação Felicidade na Dor (FENADOR), para pessoas com deficiência física, seja por causa da guerra, que só acabou em 2002, por minas terrestres colocadas em tempos de guerra, por paralisia infantil ou outras causas. A vacina contra Pólio ainda não foi aplicada com a mesma eficiência, infelizmente. A FENADOR cresceu muito e continua crescendo, valorizando as pessoas com deficiência. A Associação tem uma cooperativa de artesanato produzindo, principalmente, a galinha do cacuaco – bastante apreciada e divulgada – que ajuda no sustento, e uma escola com classes desde a pré-escola até a 6ª classe, com pouco mais de duzentos alunos. Dos oito professores, sete são pessoas com deficiência. A liderança é quase toda formada por pessoas com deficiências. Mas a FENADOR precisa de ajuda.
O casal Simonton e Renata, ex-alunos do CEM, que viveu alguns anos em Angola e deu muito apoio à Associação, voltou ao Brasil por um período e, agora, finalmente conseguiu o visto e deve voltar ao país em novembro. Renata ajuda muito a escola e Simonton, engenheiro civil, ajudou na construção das salas de aula. Antes, só havia o “jango” (construção ligeira e com paredes baixas, circular e coberta de colmo), onde cada turma de 1ª a 4ª classe tinha duas horas de aula. Agora, há quatro salas de aula prontas e três em construção.
Sou considerada a mãe da FENADOR. Dei muito apoio ao falecido José Gomes, o tetraplégico idealizador do projeto. Os mais antigos membros e líderes são meus filhos na fé do tempo em que eu visitava o Centro de Medicina Física e Reabilitação
Na recente viagem a Angola, visitei algumas pessoas em casa. Diogo, o atual diretor de FENADOR, estava muito fraco, desnutrido e desidratado, com um problema no intestino que deixava sua barriga inchada e dolorida. Ele não conseguia engolir quase nada. Mas a grande apoiadora, Dra.Cesaltina conseguiu interna-lo no hospital Américo Boavida, onde foi submetido a mais uma cirurgia, que desobstruiu o seu intestino. Diogo tomou soro e conseguiu voltar a se alimentar com líquidos. Ele ficava muito feliz de me rever e de receber fisioterapia da Susane. Com sua voz fraca ele dizia que ela foi um anjo mandado por Deus.
Outra pessoa que visitei foi a Maria Domingas, que quando jovem mãe, na província, foi vítima de uma granada que lhe cortou as duas pernas. Também a conheci no hospital há vários anos. Na época, ela recebeu alta e por um tempo voltou para casa, mas o marido não queria mulher sem pernas e a abandonou. Os toquinhos das pernas começaram a infeccionar e Maria Domingas voltou ao hospital muito triste e desanimada. Dei muita atenção a ela, falando do amor de Deus e de como Jesus podia ajudá-la e dar nova esperança. Ela creu e tornou-se uma pessoa corajosa e dinâmica. Conseguiu uma casinha numa favela distante, um pequeno pick-up e um lote para plantar verduras e legumes. Ia para o lote com motorista e ajudantes, mas o carrinho estava com problemas, a cadeira de rodas também e Maria Domingas ficou presa a sua casa, com alguns netos. Algum tempo depois, conseguimos pagar um mecânico para consertar o carro, um irmão de grupo conseguiu consertar a cadeira de rodas, e assim ela pode continuar suas atividades, sempre animada.
Durante a viagem preguei em uma igreja diferente a cada domingo. Estive na igreja no Centro de Luanda, que frequentava quando vivi ali, e tive felizes reencontros. Em outro domingo foi a alegre celebração de 22 anos da FENADOR. E, em outro, fui, com a Susane, na igreja do Pastor Zeca, um dos primeiros filhos na fé do hospital. Era enfermeiro, viajava a serviço do governo quando aconteceu o acidente que o deixou paraplégico. O Pastor Zeca é muito ativo na FENADOR. Apesar de suas limitações, (inclusive glaucoma que limita sua visão) ele conseguiu estudar no CEM e fez muitas amizades no Brasil. Com sua esposa Alice, o Pastor Zeca e irmãs da igreja preparam panelões de alimento aos sábados para distribuir às crianças pobres do favelão Samizanga. Participei desta ação em um sábado em que houve por volta de mil crianças famintas na fila, cada uma com seu potinho na mão.
>>EU, UM MISSIONÁRIO?<<
Dei aulas em dois sábados, 10 horas-aula por sábado no CETEMIS – um centro de treinamento bíblico e missionário para líderes de pequenas igrejas da periferia, localizado em uma grande favela. O líder é o pastor Manzaíla, que estudou no Brasil e fez o mestrado no CEM. Ele é um homem com visão e coração pronto para servir, junto com sua esposa Rosana, que é brasileira. Além dos cursos de treinamento bíblico e missionário, o CETEMIS oferece complemento e ajuda no contraturno das escolas. Sempre há lista de espera. E a Rosana dá vários cursos de prendas domésticas para as mulheres. Que alegria testemunhar esse ministério abençoado.
Susane conseguiu treinar moças e mulheres, a maioria com deficiência física, a fazer massagem umas nas outras. Com isso, elas podem oferecer seus serviços a outros e conseguir mais um ganho financeiro. Susane ensinou o sobrinho do pastor Zeca a fazer fisioterapia no tio e deu assistência a um bebê que sofreu de convulsões poucos dias após o nascimento, e estava bem limitado no desenvolvimento motor. Susane ensinou a mãe da criança a fazer fisioterapia no seu filho. Depois de quatro sessões a melhora já era visível. Susane também ajudou professoras da Escola Dominical, e deu aula às crianças. Foi muito útil e o povo gostou muito dela.
Na década de 1980, fui a Angola enviada pela ABU (Aliança Bíblica Universitária) e comecei o trabalho entre estudantes, com apoio do Dr. Filipe Matuba. O trabalho cresceu pouco a pouco e surgiram bons líderes nacionais, um deles, o Paulo Mandavela, um líder muito dinâmico, morreu inesperadamente. Depois houve a pandemia da Covid-19 e por anos tudo permaneceu fechado. Nas províncias ainda aconteciam algumas atividades, mas em Luanda tudo parou, o que foi muito triste. Mas um jovem médico, Adalberto, que estudou e participou ativamente em Huambo, foi aprovado em concurso para trabalhar em um hospital de Luanda e foi com o firme propósito de reativar o trabalho do GBECA (grupo bíblico de estudantes cristãos em Angola, o governo não permitia nenhum nome que incluísse a palavra Universidade) nas Universidades. Na viagem de setembro, tive boa conversa com ele, vou apoiá-lo à distância. Coloquei Adalberto em contato com a ABUB, e com o professor Santareno Miranda, o organizador do curso Perspectivas em Angola.
Falando em Santareno, conheci-o em Luanda, quando tinha 16 anos. Ele se interessou pela missão depois de ouvir uma palestra minha. Ainda jovem, foi forçado a entrar no exército, e o carro militar em que estava com várias pessoas passou sobre uma mina e explodiu. Houve mortos e ele ficou com problemas no pé. Santareno conseguiu vir ao Brasil, onde tratou o pé, estudou, casou com uma angolana, e tornou-se um professor muito respeitado nos colégios franciscanos. Hoje é também pastor, e um dos palestrantes preferidos do curso Perspectivas da Missão da Igreja, no Brasil. Embora a vida estivesse indo bem, Santareno sempre quis abençoar a igreja em Angola. Certa vez, apresentou o curso Perspectivas em várias igrejas e seminários e conseguiu levá-lo para Angola. No primeiro ano, houve por volta de 80 alunos, agora já são centenas, e essa experiência mudou a perspectiva de missão nas igrejas de Angola. Antes missão era algo que estrangeiros traziam, agora eles entendem que podem e devem se envolver. Que alegria!
Fui professora por muitos anos no ISTEL (Instituto Superior de Teologia Evangélica do Lubango). O ISTEL organizou o segundo Congresso de Missões, sob o tema “A Angola que Deus quer”, com pouco mais de 300 participantes de muitas denominações e de quase todas as províncias nos dias 15 a 19 de setembro, pudemos participar. Esse Congresso mostra mais uma vez a mudança de visão da igreja. E havia mais participação pública de mulheres.
A pobreza é muito aguda em Angola. Muitas famílias só conseguem uma refeição por dia, que muitas vezes é um prato de arroz. Há algum tempo, quase não conseguiam leite para as crianças, aí davam chá, mas agora o açúcar ficou muito caro. Assim, a miséria aumenta, há muita malária e com os corpos debilitados há muita morte. Isso é muito triste!
Assim, apesar do muito cansaço, devido a longas distâncias em avenidas engarrafadas, a viagem foi um tempo que trouxe muita alegria, e também lágrimas. Louvado seja o Senhor, e que ele tenha misericórdia do povo angolano.
Saiba mais:
» Um tributo a Tonica – 50 anos de ministério
» Eu, Um Missionário? – Quando o jovem cristão leva a sério o seu chamado, Antonia Leonora van der Meer
» A Missão da Igreja Hoje – A Bíblia, a história e as questões contemporâneas, Michael W. Goheen
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