O cuidado e a mulher em ministério transcultural
Por Valeska Petrelli
Falar sobre a mulher servindo em campo transcultural é uma das maiores alegrias que Deus tem compartilhado ao meu coração. Para a glória dele, tenho trabalhado na orientação, apoio e cuidado da mulher e da família missionária desde 2012, quando minha família ainda servia em Madagascar. Deixamos o Brasil no ano de 2010, vivemos na África do Sul, em Madagascar, em Uganda e atualmente moramos no Quênia.
No tempo em que servimos em Uganda, recebi uma orientação de Deus bem específica para além do trabalho na capacitação e cuidado de obreiros de nossa organização missionária, também compartilhar apoio e cuidado para missionárias de fala portuguesa servindo mundo a fora. Foi assim que nasceu o CMM, primeiramente nomeado como Confissões de uma Mãe Missionária e que, com o tempo, se tornou CMM – Confissões de uma Mulher Multicultural, expandindo sua abrangência à mulher multicultural solteira, casada, mãe: mulheres em missão transcultural ou em preparo.
Foi na solidão natural do ministério e da distância de nosso país que surgiu o desejo de compartilhar sobre os desafios da família transcultural e, com alguns vídeos, comecei publicando, em 2018. A partir daí, enquanto várias mulheres se identificavam com minhas experiências, um relacionamento de acolher e trocas foi se construindo e firmando com muitas delas. E, meses depois, em período de pandemia, Deus foi me orientando a ampliar o projeto para proporcionar uma rede de apoio mais efetiva, um espaço para trocas, mentoria e cuidado para mulheres no serviço ministerial entre culturas. E hoje, o CMM é uma comunidade on-line, que alcança obreiras em mais de 30 países.
Como resultado das minhas experiências pessoais no campo transcultural, o meu histórico como psicóloga, somados à jornada de acolhimento a mulheres mundo afora; senti-me desafiada a refletir e estudar sobre a importância do cuidado específico da mulher multicultural e sua família, especialmente enquanto brasileiras. Ao longo deste processo surgiram questões intrigantes como: Quais os principais motivos para abordar uma perspectiva específica no cuidado da mulher em ministério multicultural? Será que independente de qual seja o ministério da mulher, os desafios e as necessidades não seriam os mesmos? Quais as diferenças em relação às necessidades da mulher que serve em seu contexto de origem (o que chamamos de vivência monocultural) em relação às necessidades da mulher que serve fora de sua cultura?
Entendo que uma das primeiras diferenças com relação ao chamado monocultural X transcultural, seria os diferentes caminhos para o processo de compreensão do que de fato envolve o chamado específico e as consequências da decisão pela obediência. Deus nos chama de formas diferentes para lugares e ministérios diferentes. Todo chamado ministerial é importante e tem os seus desafios e preços, bem como os privilégios.
No caso da jornada ao ministério transcultural, como cristãos brasileiros, embora estejamos crescendo no cuidado e preparo de nossos missionários, ainda somos bastante limitados e, de forma geral, não temos oferecido capacitação específica necessária aos nossos obreiros, principalmente em áreas específicas como, por exemplo, à mulher em ministério multicultural, o que ainda está em descoberta e em processo de compreensão, especialmente no contexto brasileiro. Um processo longo e ainda desconhecido pela maioria de nossa liderança cristã evangélica brasileira.
Lembro-me de quando o Senhor me chamou, e de como Ele compartilhou comigo sobre o chamado de Abraão: “Sai da sua terra, da tua parentela, e da casa do teu pai, para a terra que eu te mostrarei” (Gn 12.1). A maior parte dos missionários transculturais recebe o chamado sem o conhecimento dos próximos passos e, sim, com apenas a disposição em obedecer, de deixar a sua terra, de partir de seu lugar de segurança, de partir de sua zona de conforto para uma terra distante, um povo desconhecido, em obediência ao Deus que nos chama às nações.
Neste ponto de partida não sabemos o que esperar e, na verdade, hoje entendo que serão anos de jornada em direção a esta compreensão, em especial quanto às renúncias que envolvem esta tomada de decisão. Junto com a paz e a alegria que nos sustentam na decisão, existe um processo de vislumbrar as perdas que vivenciamos e das que estarão por vir. Como por exemplo: o entregar dos próprios sonhos como profissional, talvez a renúncia de um casamento, o sacrifício do sonho de criar os filhos próximos a uma rede de apoio, a insegurança de viver na dependência de Deus por meio do levantamento de ofertas etc.
Como mulher, compreendo que para que todo este processo aconteça de maneira saudável é necessário preparo, capacitação e apoio intencional para a mulher que serve entre culturas. Não somente para partida, como também na manutenção e no contínuo cuidado em cada fase do ciclo da vida missional (decisão de chamado, levantamento de sustento, preparo para partir, envio, adaptação, aprendizado da língua e cultura, carreira solo, maternidade e casamento entre culturas, desenvolvimento do ministério, visitas ao país de origem, retorno e aposentadoria).
Na minha experiência, passei alguns anos processando algumas das fases que já tivemos a oportunidade de viver pessoalmente. Em várias situações fomos pioneiros como brasileiros em nossa organização, em alguns casos pude buscar ajuda por meio de amigas missionárias mais experientes, e ainda assim, em vários aspectos, até hoje não encontro todas as respostas que gostaria.
A paz de Deus que excede todo entendimento, que habitou o meu coração desde o momento da decisão, tem sido suficiente para a escolha contínua por deixar minha própria cultura e lançar-me ao desconhecido. Ainda assim, quero enfatizar aqui que esta paz não exclui a necessidade do cuidado próprio, do cuidado mútuo e da responsabilidade de apoio da igreja e agências no cuidado de seus missionários; agindo como corpo de Cristo, todos ajustados, servindo para a expansão do Reino de Deus.
Entender o tempo correto para partir é um grande desafio na saída para o campo transcultural. Em 2002 Rodrigo e eu nos casamos. Logo depois ele se tornou pastor batista no Brasil e eu a esposa do pastor, enquanto também trabalhava como psicóloga. Ao compartilhar o nosso desejo de servir na África, submetemo-nos à nossa liderança para plantar e pastorear uma igreja até o período de nossa saída do Brasil para a África, como parte de nosso preparo.
No período em que aguardamos o tempo de partida, são importantes o preparo e o suporte emocional sólido. O tempo de aguardar também é um momento para compreender e para partilhar expectativas da realidade vindoura. Deve ser um tempo para explorar e conhecer um pouco do lugar e das pessoas que nos esperam, das questões burocráticas e logísticas necessárias, para fazer descobertas sobre a realidade do campo, para o estudo da história do povo que desejamos alcançar, para avaliar possibilidades de ministério.
Nesta fase de preparo, entendo que a mulher solteira e a mulher casada enfrentam desafios diferentes e bem específicos, que são legítimos e necessitam ser processados. De um lado temos aquelas que o Senhor chama para a carreira solo e que enfrentam os medos normais de um futuro desconhecido longe de sua rede de apoio, na total dependência de um chamado complexo e sobrenatural. Aceitando os riscos da missão bem como o de aumentar as chances de permanecer solteira por conta da natureza da missão. Não só a renúncia da vida próxima aos familiares, como também o risco da renúncia da construção de sua própria família. Tenho visto a graça de Deus sobre as minhas irmãs solteiras em missão transcultural, o quanto o Senhor trabalha, usa e cuida de cada uma delas. Contudo, também tenho visto alguns casos que mostram como a falta de preparo e cuidado para com elas que servem em realidade transcultural, pode trazer feridas profundas e impactar nos resultados e frutos do ministério, culminando por vezes no retorno precoce.
Também podemos falar sobre alguns dos desafios das casadas. Como o de trabalhar em unidade com o marido, por exemplo, na decisão de partir, na maneira como exercer o ministério, na educação dos filhos, no chamado e tantas decisões da caminhada missional. Inúmeros problemas podem ocorrer no campo, enraizados à falta de preparo e unidade em relação ao chamado como casal. É importante que as similaridades e renúncias sejam avaliadas antes de partir. Pois muitas vezes, a mulher missionária pode sentir-se na obrigação de se anular, ou de ser totalmente dependente da missão do marido, e isto pode parecer até romântico no início, mas nada saudável, trazendo sérias consequências futuras. A falta de uma compreensão sobre aspectos específicos da missão enquanto casal, pode ser grave para o casamento, impedindo o sucesso do ministério.
Falando em relação à família transcultural e à maternidade, percebo que duas coisas são consideradas como uma das principais fontes de preocupação e estresse: as transições e a educação dos filhos. É preciso conhecer antecipadamente e definir as possibilidades como a escola (local ou internacional) e ou educação domiciliar. Além das questões de linguística de alfabetização, e a influência da cultura local na educação dos filhos. Estes são conhecimentos importantes que vão auxiliar os pais no apoio aos filhos nestes processos difíceis e nas suas diferentes fases. É relevante que a mãe entre culturas, considere as questões de desenvolvimento e identidade em relação à educação transcultural. É preciso tomar conhecimento e se preparar para a realidade de que levar um filho para se desenvolver fora de sua cultura por anos significativos de sua infância e/ou adolescência, também exigirá dos pais um conhecimento específico quanto a formação deste filho que terá características e desafios bem específicos consequentes da vida transcultural, e que por isso são chamados de filhos de terceira cultura.
Cheguei no campo e, pela falta de preparo, cometi erros sérios, como o de, no primeiro ano fora do Brasil, focar prioritariamente no “ministério” e para isso deixar meus filhos na escolinha. Minha cabeça ainda não pensava transculturalmente e eu não poderia avaliar o fato de que no primeiro ano a mãe precisa estar 100% presente para auxiliar os filhos na transição enquanto ela e toda a família também estão em fase de adaptação. Precisamos estar cientes e sem culpa de que este deve ser o nosso primeiro ministério.
Quando aceitamos o chamado, o romantizamos como que apaixonados, agimos como se o “trabalho” em si fosse o mais importante, e que porque estamos na missão, Deus cuidará de nossos filhos, o que é de fato verdade, contudo, Ele mesmo nos delega responsabilidades como pais que são intransferíveis, e devemos assumir o nosso papel diante Dele. O cuidado dos filhos é também nosso ministério e deve ser exercido com amor e excelência.
Exaustivamente falando da importância do preparo como parte do cuidado missionário, vejo ainda que não dá para ficarmos nos preparando para o resto da vida e que, na cultura brasileira, acabamos perdendo o timing de jovens que poderiam ser enviados, sabendo que precisamos sim de uma base, mas que o nosso maior aprendizado vai acontecer na prática. Precisamos reconhecer que jamais estaremos completamente preparadas e que a experiência transcultural de cada uma de nós é e será única, singular, ao mesmo tempo que comum. Perceber esta realidade nos ajuda no apoio e no cuidado mútuo.
Lançar-nos a viver em uma nova cultura é recomeçar, é lançar -se a uma vida de riscos e incertezas em vários aspectos, ainda mais nos primeiros anos, até que haja maior aprendizagem da língua, da cultura e do compreender de como agir e viver naquele local. O fundamento mais sólido que podemos ter rumo à obediência ao chamado transcultural é estarmos seguras no Senhor que nos chama e nos capacita. Ele é fiel e jamais nos abandona. O seu amor perfeito lança fora o medo, e por isso Nele podemos prosseguir e frutificar, mesmo em meio às nossas limitações e desafios.
Neste propósito de capacitação, cuidado e apoio, o CMM tem trabalhado acolhendo e abraçando mulheres multiculturais ao redor do mundo. Conectando tantas mulheres que servem em contexto transcultural (ou em preparo), promovendo oportunidades de troca e cuidado mútuo de forma orgânica e efetiva, por meio de nossos pequenos grupos, do compartilhar, da produção de conteúdos e do caminhar em mentoria em várias áreas de necessidades específicas no apoio desta mulher.
Deus tem usado esta ferramenta para auxiliar centenas de mulheres missionárias enviadas ao campo por diferentes denominações, servindo por meio de diversas agências. Para a glória de Deus, no CMM, encontramos um lugar seguro e neutro para compartilhar realidades desafiadoras, e que também traz conteúdos relevantes que capacitam a perseverar em meio ao serviço entre culturas. Sabemos que isso vem impactando não somente no apoio da mulher multicultural, como também o de suas famílias e ministério. Porque o nosso lema é: Mulher Multicultural saudável, família relevante, ministério eficaz!
- Valeska Petrelli, idealizadora e gestora do Confissões de uma Mulher Multicultural (CMM). Brasileira, sul-mato-grossense, casada com Rodrigo desde 2002, mãe de João Pedro e de Asafe. Deixou o Brasil em 2010 e vive no continente africano desde então. Morou na África do Sul, em Madagascar, Uganda e, atualmente, mora no Quênia. Serve com a MIAF (Missão Para o Interior da África) no cuidado integral de missionários transculturais. É psicóloga especialista em gestão de pessoas. @confissoes.mulhermulticultural.
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