Um nerd, sem perder a ternura: das histórias em quadrinhos aos autores “malditos” da teologia
Na varanda com o autor | Carlos Caldas
Míope, ele fazia o estereótipo do nerd: trocava a hora do recreio pela leitura na biblioteca. As leituras obrigatórias da escola, então, ele adorava. Deu no que deu.
Na Varanda com o Autor recebe Carlos Ribeiro Caldas Filho, colunista do portal e cinéfilo, que navega pela teologia e pela literatura e vez ou outra escreve também para a revista Ultimato. Carlos Caldas é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde lidera o Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte (GPPRA).
Alguma pessoa ou livro, em especial, influenciou sua aproximação da leitura e da escrita?
Minha mãe, com toda certeza. A primeira pessoa que me influenciou e me incentivou a ler foi minha mãe, de abençoada memória, que nos deixou em 2014. Desde que aprendi, comecei a ler e nunca mais parei. Eu era o estereótipo do nerd clássico, que, por conta de uma miopia, no recreio na escola estadual onde estudava, ao invés de correr e brincar no pátio da escola como os outros meninos faziam, ia para a biblioteca pegar uma revista ou um livro para ler. A leitura sempre foi, segue sendo, e espero que nunca deixe de ser um prazer. Lia a Bíblia, na versão Revista e Atualizada de João Ferreira de Almeida, e, a despeito dos arcaísmos e palavras de uso raro desta versão, não tive dificuldade de me adaptar a ela. Mesmo contra a vontade do meu pai, lia histórias em quadrinhos – naquele tempo a gente as chamava de “gibis”. Adorava na escola quando a gente tinha que ler um livro ou um texto qualquer como exigência acadêmica. Com 18 anos fui para o Seminário Presbiteriano do Sul em Campinas, e tive contato com a literatura teológica. Minha relação com a literatura teológica é a mesma que com a não teológica, ou seja, desde que comecei, não mais parei.
Quanto à produção de textos, sempre tive uma facilidade inata para redação na escola. Depois, no exercício do pastorado, tinha que semanalmente produzir um pequeno texto para a primeira página do boletim dominical da igreja. Quando fui pastor na Igreja Presbiteriana de Caratinga, região leste de Minas tive por uns sete ou oito anos uma coluna em um jornal local. Depois, por questões profissionais – no caso, a docência – comecei a escrever livros e artigos para periódicos acadêmicos. E por fim, gostaria de mencionar a experiência com tradução de textos. Traduzir um texto é uma responsabilidade imensa, e é uma espécie de co-autoria. Resumindo: ler e escrever, escrever e ler, são na minha história de vida responsabilidade e lazer ao mesmo tempo.
Quando a inspiração para escrever não vem…
Não adianta forçar a barra. A “musa” vem quando quer… Quando estou cansado ou sem inspiração, paro, assisto a um vídeo curto no YouTube, levanto, ando um pouco, e quando volto para a frente do computador, vejo que a tarefa de escrever fica mais fácil.
O que os adultos devem ler para as crianças?
Narrativas, sem dúvida. Crianças têm uma facilidade de “entrar” no mundo das narrativas, e esta imaginação deve ser incentivada. Adultos também devem ler poesia para a criançada. Vai depender evidentemente da faixa etária das crianças. Mas elas devem ter contato com poesia o mais cedo possível. As crianças devem ser incentivadas a ler por seus pais, e, claro, estes devem dar exemplo de leitura. Em outras palavras: crianças precisam ver que a leitura é importante na vida de seus pais.
Que conselho você gostaria de ter recebido na sua juventude?
O tempo passa. O futuro vai chegar. Prepare-se para sua aposentadoria.
Como você lida com o envelhecer?
Por enquanto, de maneira muito tranquila. Sem crise até o momento. Mas vejo que estou percebendo o tempo passar mais depressa. Parece que décadas atrás o tempo passava mais devagar. Ultimamente tenho tido a impressão que o tempo está mais acelerado. A percepção da passagem do tempo tem me levado cada vez mais a dar valor às coisas pequenas e simples do cotidiano. Não que antes eu não valorizasse. Sei que sempre reconheci a importância de tudo que pode parecer como não sendo grande coisa. Esta percepção tem se tornado cada vez mais intensa em minha vida.
O que mais o anima e o que mais o incomoda no meio evangélico?
O que mais anima é ver pessoas que têm um amor sincero pelo Evangelho, que vivem uma piedade verdadeira, sem ostentação, sem fanatismo, gente que leva o seguimento de Jesus a sério na vida. Tenho sido abençoado pelo contato e convivência com pessoas assim que são das mais diferentes tradições evangélicas, protestantes tradicionais e pentecostais, gente que valoriza a leitura bíblica e que tem vida de oração.
Agora, o que mais me incomoda não está no que os evangélicos em geral fazem – sem generalização, claro – mas no que deixam de fazer. Muitos não compreendem que o envolvimento com questões de natureza sociopolítica também faz parte do discipulado cristão. Lamentavelmente isto está muito evidente no Brasil nestes últimos poucos anos. Considerável parte dos evangélicos do país pensa que é errado ter envolvimento com questões de natureza sociopolítica, ou a luta pela preservação e defesa do meio ambiente, ou dos direitos dos povos originários, ou das crianças em situação de vulnerabilidade e risco ou dos mais pobres que vivem no limite da cidadania, em situação de fragilidade em todos os sentidos. Isto porque grande parte destes evangélicos raciocina de maneira que é mais platônica que bíblica, o que os leva a pensar que a única coisa que importa é a salvação da “alma”. Isto tem sido um contratestemunho evangélico no Brasil.
Outra coisa que me aborrece e me desanima profundamente é a maneira como muitos evangélicos lidam com seus irmãos e irmãs que têm posicionamentos doutrinários diferentes. Não raro há entre evangélicos de diferentes tradições doutrinárias pronunciamentos de anátemas contra quem é desta ou daquela corrente teológica. Não raro quem gosta de um determinado autor tido como “maldito” por sua denominação eclesiástica é mal visto e desprezado. A construção do pensamento teológico e a formulação doutrinária são importantes, mas nunca a ponto de amaldiçoar quem pensa diferente, como se vê com muita frequência no Brasil. Jesus não morreu por doutrinas, mas por pessoas.
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