Livro da Semana  | Fé Cristã e Ação Política

 

Todo o meu discurso sobre a diferença de esferas estatais e eclesiásticas poderia nos levar a um problema que julgo ser o principal obstáculo para a participação pública dos discípulos de Cristo. Dizer que estes dois âmbitos da realidade social são separados, independentes e regidos por suas próprias leis não é o mesmo que dizer que política é um assunto restrito ao âmbito jurídico, partidário e governamental, enquanto religião é restrita ao templo, ao domingo e aos cristãos. Minha crítica à tese da secularização da sociedade tem um alvo específico: questionar essa compartimentalização da vida dos indivíduos. O filósofo canadense James K. A. Smith resumiu esse alvo em uma frase simples: “existe algo de político em jogo em nosso culto e algo religioso em jogo em nossa política”.[i] Entender como acontece essa relação é a principal contribuição que pretendo deixar com esse livro.

O primeiro passo para avançarmos nossa capacidade de análise política é jogarmos no lixo o costume de pensar a ação política de maneira “espacializada”. Apesar de ser importante distinguir as esferas soberanas de nossa sociedade, não podemos achar que a esfera religiosa se limita ao “espaço das igrejas”, enquanto a esfera política se reduz ao “espaço da assembleia legislativa ou da câmara municipal”, ou mesmo ao “espaço das reuniões do Supremo Tribunal Eleitoral”. O grito que algumas igrejas acabaram repetindo de “vem pra rua” carrega consigo uma ideia muito falsa: a de que política é feita somente no “espaço da praça pública”, e que em casa, na escola, na igreja ou em outros espaços e esferas não continuamos nosso trabalho de agentes públicos. Precisamente por isso muitas pessoas fizeram questão de lembrar às igrejas que repetiram acriticamente essas palavras de ordem que: “sempre estivemos na rua”. Muito mais que ocupar determinado espaço, a presença pública fiel diz respeito a uma consciência que dirige nossas ações: estamos vivendo diante de Deus em tudo o que fazemos para o bem comum e o florescimento do ser humano.

Não pense você, caro leitor, que isso é algum tipo de argumento quietista, procurando justificar nossa ausência nas disputas cotidianas das ruas. Muito pelo contrário. O que pretendo com isso é convidá-lo a um olhar mais rigoroso das dinâmicas próprias de nossa vida pública. Quanto a esse ponto, veja o que diz James Smith:

nossas vidas “políticas” não estão sequestradas a uma esfera particular. O político não é uma praça com os portões discerníveis. Embora muitas vezes falemos da “praça” pública, a metáfora é antiquada e inútil. Não há praça ali. E certamente não é o caso de que “o político” está restrito às nossas capitais, legislaturas e cabines de votação. O político não é sinônimo ou redutível ao domínio do “governo”, mesmo que haja sobreposição significativa. O político é menos um espaço e mais um modo de vida; o político é menos um reino e mais um projeto. Quando reduzimos a política através desta dupla espacialização e racionalização, o que é perdido e esquecido é uma apreciação da forma como a polis é uma comunidade formadora de solidariedade e o fato de que a participação política exige e assume exatamente tal formação – uma cidadania com hábitos e práticas para viver em comum e para um determinado fim, orientado para um telos.[ii]

Precisamos trocar nossas metáforas políticas. Elas carregam toda nossa imaginação pública para uma direção reducionista. Enquanto insistirmos na necessidade de os “cristãos ocuparem a praça pública”, vamos reforçar o que queremos derrubar: o estereótipo de que vivemos em dois reinos distintos – o público e o privado, o sagrado e o secular, o sobrenatural e o natural. Da mesma forma que “esquerda” e “direita” são polarizações que pouco contribuem para entendermos o que acontece nas disputas políticas, o dualismo público e privado também é ultrapassado e em quase nada ajuda o pensamento político a avançar para horizontes mais promissores.

Vou falar mais sobre a obsolescência da divisão entre público e privado no próximo capítulo. Por hora, basta insistir que a ação política tem mais a ver com uma forma de vida cotidiana do que com um espaço específico de burocracia governamental. Quem coloca essa mesma ideia de maneira muito interessante é o fundador do Centro de Fé e Cultura da Universidade de Yale, Miroslav Volf, em seu livro Public Faith in Action [Fé pública em ação], em coautoria com Ryan McAnnally-Linz:

a palavra público não nomeia uma parte isolada da vida humana que pode ser descartada em uma gaveta pequena ao lado de outras gavetas para a vida familiar, a vida da igreja, a vida de balada, etc. O público não pode ser cuidadosamente separado e tratado com se estivesse além do resto da vida, como quando separarmos as roupas brancas das roupas coloridas quando lavamos roupa. Dito isto, o público não engole o resto da vida também. Não é apenas mais uma palavra para toda a vida. Pelo contrário, o público é uma dimensão ou aspecto da vida humana, aquele que envolve questões e instituições relativas ao bem de todos, o bem comum. O público é a vida vista como a “vida em comunhão” na sociedade.

 

Correspondentemente, a fé pública é a fé preocupada com a modelagem responsável da nossa vida comum e do nosso mundo comum. Cada parte da vida tem um lado público. Toda a vida é atravessada com significado público. Às vezes, esse lado público é óbvio, como quando uma pessoa vota ou concorre a um cargo. Outras vezes, é mais difícil discernir, mas ainda assim existe, como quando alguém decide se envia seus filhos para uma escola particular em vez de pública. Até mesmo a forma de nossos desejos mais íntimos diz algo sobre e faz a diferença para nossa vida comum. A vida pública não é apenas para políticos ou celebridades. Cada um de nós vive uma vida pública porque todas as vidas têm uma dimensão pública que as atravessa. Toda vida contribui, ainda que de maneira fraca, para a vida pública: governos, economias, instituições educacionais, mídia e afins.

 

Então não é só que qualquer um e todos podem se engajar na vida pública, todos nós inevitavelmente fazemos isso… Se hoje você decide desistir da “política” – parar de votar, parar de ler as manchetes, evitar atentamente conversas sobre impostos e assistência médica, humilhar-se e apenas seguir a sua própria vida da melhor maneira possível –, você não escaparia inteiramente da vida pública. Em vez disso, você estaria vivendo certo tipo de vida pública, uma vida pública limitada, em grande parte passiva e provavelmente irresponsável, mas uma vida pública, no entanto.[iii]

Fé Cristã e Ação Política foi escrito exatamente para que você não experimente este tipo de vida pública passiva e irresponsável. Ao contrário, ele apresenta a relevância pública da espiritualidade cristã, ou, ainda, como a formação espiritual do discipulado cristão é fundamental para dirigir a fisionomia política das democracias ocidentais. Trata-se de um livro sobre militância política centrada no discipulado cristão. Em síntese, com o intuito de ser um trabalho filosófico e de criar um conceito que corresponda a isso, este livro é, antes de tudo, um tratado de “militância eclesiocêntrica”.

Trecho retirado do livro Fé Cristã e Ação Política, de Pedro Dulci (Editora Ultimato).

NOTAS

[i] SMITH, James K. A. Awaiting the King: Reforming Public Theology.  Michigan: Baker Academic, 2017. p. 3.  (Cultural Liturgies, book 3).
[ii] Ibidem, p. 9.
[iii] VOLF, Miroslav; MCANNALLY-LINZ, Ryan. Public Faith in Action: How to Think Carefully, Engage Wisely, and Vote with Integrity. Michigan: Brazos Press, 2016. p. x-xi.

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