Gostaria de comentar um filme Netflix bem recente, dando o mínimo de spoiler possível. Seu título é “O Diário de Noel”, no qual Raquel, uma mulher com seus 30 anos, procura por sua mãe biológica, que a abandonara ao nascer. Ela vive um drama existencial, um vazio de amor que condiciona as suas memórias, sua personalidade, sua vida profissional e seus relacionamentos, por conta de uma consciente necessidade de segurança e significado.

Raquel procura por respostas. Quem sabe as terá ao confrontar sua mãe? Estará viva? Por que a deixou, ainda tão pequena? Por que nunca a procurou?

Em sua busca, ela encontra Jacob, um romancista bem-sucedido, famoso… e só. Raquel sabia que sua mãe havia sido babá na família de Jacob. Encontra-o arrumando a casa de sua mãe, recém-falecida. Ele também tem seus problemas de infância. Mas, diferentemente da Raquel, ele acha que sabe todas as respostas.

Entre os objetos pessoais de sua mãe, Jacob encontra um diário. Era o diário da sua babá, mãe de Raquel, chamada Noel Ellis.

A busca de Raquel é agora iluminada pela leitura do diário de Noel, onde encontra solilóquios, orações, diálogos imaginários e temores de uma moça grávida e sozinha no mundo.

As revelações do diário vão trazendo novas possibilidades de interpretação do passado de Raquel. Se os dois partilham um passado marcado pelo desamparo, à medida em que Raquel percebe o amor aflito de sua mãe, Jacob vê suas certezas perderem força. Em ambos os casos, o que aconteceu foi real; mas a percepção dos fatos estava mudando. E a chave para essa mudança “hermenêutica” foi a descoberta do amor e do drama de Noel.

Aquele diário falava, repetia, insistia, lamentava e sonhava sobre um único tema: o amor de Noel por sua filha.

Esse filme me levou a pensar na leitura que fazemos dos fatos da nossa própria vida, quando abrimos a Bíblia. Os fatos, bíblicos e nossos, estão lá; aconteceram, um dia. Mas o que sabemos, com certeza, sobre eles? Muito pouco. Sabemos muito pouco, também, sobre a nossa própria existência, familiar e pessoal.

Mas eu estava falando de hermenêutica. Sim, as dores de Raquel e Jacob tinham mais a ver com sua “hermenêutica existencial” do que com os fatos. A compreensão dos mesmos poderia ser influenciada por motivos, razões e circunstâncias da vida da mãe de Raquel. Jacob achava que conhecia tanto os fatos quanto motivos, razões e circunstâncias das agressões e do abandono sofrido. Como estava errado!

Ao compreenderem essas circunstâncias, foram levados a uma completa releitura de suas próprias vidas. E aqueles mesmos fatos acabaram por ser interpretados sob perspectivas diametralmente opostas. Até mesmo os próprios eventos e acontecimentos agora tinham explicações diferentes. Inimagináveis, se compreendidos a partir da “chave hermenêutica” de que dispunham: o abandono. E a palavra “abandono” não era sequer questionada. Na verdade, abandono era a “chave hermenêutica” que iluminava as poucas linhas de texto existencial que podiam ler.

Aquelas anotações os conduzem a uma nova chave de interpretação dos tristes fatos de suas existências. E o amor de Noel Ellis, substitui, agora, a chave “abandono”. Mesmo que nem todas as circunstâncias tenham ainda sido elucidadas, seriam, agora, iluminadas por uma nova chave: o amor. E é assim que Jacob decide procurar seu pai.

Quero pensar nas Escrituras como um diário de Deus, no qual ele se declara pai afetuoso, que deseja o nosso bem; um diário repleto de verdade e amor; que pode iluminar nossas vidas: somos filhos desejados e amados, em quem ele tem prazer.

Entretanto, a depender do coração com o qual lemos seu diário, podemos permanecer em nossas dores, lendo suas palavras sob a chave do desamparo. Ou então, se em cada palavra descobrirmos sinais de seu imenso amor por nós, toda a compreensão desse mesmo diário, e também daquilo que ele fala sobre nós, será cheia de amor, vida e luz.

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