Mas tu, ó Israel, servo meu, tu, Jacó, a quem elegi, descendente de Abraão, meu amigo, (Is 41:8).
Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer. (Jo 15:15)

O que nos dizem esses dois versículos, onde a amizade é focalizada? É objeto de muita imaginação, e também de especulação, o que Deus teria visto em Abraão; o que teria feito o Patriarca para merecer essa proximidade de Deus; o que teriam conversado, que revelações lhe teriam sido feitas, em conversas íntimas, no silêncio do deserto. Porque amigos conversam sobre coisas particulares, pessoais e até íntimas: “Prostrou-se Abrão, rosto em terra, e Deus lhe falou” (Gn 17:3). Ai, eu queria ser um mosquitinho, voando ali por perto. O que sabemos é que Abraão nunca mais foi o mesmo.

Um princípio de interpretação bíblica que pode nos ajudar a imaginar com mais segurança (sem garantias) é o seguinte: “a Bíblia lança luz sobre a própria Bíblia”. E é comparando texto com texto que percebemos que, nos dois casos, o senhor se faz amigo dos seus servos. Dito de outro modo, o maior se faz da altura do menor; ou, ainda: coloca-se à altura do menor, de modo a tornar possível uma relação muito especial. Especial para o Criador e inimaginável para a criatura. Uma relação em que cada um tem liberdade de falar das suas coisas.

De fato, como jamais havia acontecido satisfatoriamente “aos pais, pelos profetas” (Hb 1), nestes últimos dias Deus nos propôs uma relação de amizade. Aquele que, chegando de viagem de madrugada, bate de surpresa à porta, entra sem cerimônia e se senta à nossa mesa para comer (Lc 11:6). Problema nenhum; ele vai comer e se regalar com o que eu tiver jantado. É amigo!

Semelhantemente, há quem especule sobre o que teriam visto e ouvido os amigos de Jesus. E aqui socorro-me novamente da Bíblia para justificar minha curiosidade. Lembro-me de Paulo, outro amigo de Deus, dizendo que ouviu “palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir” (2Co 12:4). O que terá ele visto e ouvido? De uma coisa sabemos: também Paulo nunca mais foi o mesmo, depois desse episódio. Ele passou a nos exortar a prestar atenção nas “coisas que se não veem” (2Co 4:18), ou a “buscar as coisas lá do alto, onde Cristo vive” (Cl 3:1), doidinho pra partir.

Penso nessas coisas quando olho para aquela manjedoura. Inevitável concluir que o que ali estava acontecendo era a execução de um plano inconcebível a nós; um projeto de intimidade. Não desejando mais a distância dos homens — porque o amor quer encurtar as distâncias, o amor quer estar perto —, Deus partiu para a aproximação; para a “operação amizade”. Naquela manjedoura Deus estava se fazendo do nosso tamanho e colocando-se à nossa altura. E passaria a sua vida terrena a bater em nossa porta, propondo-nos sentarmos à mesa para comer e beber, como fez com Zaqueu, com a mulher samaritana, com Lázaro, Maria e Marta, entre tantos outros. E depois de ressurreto, ele passaria os séculos a nos convidar: “quer ser meu amigo?”

Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele, comigo (Ap 3:20).

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