Parece que é em nossa função como servos que encontramos a síntese correta entre evangelismo e ação social. Pois ambos deveriam ser para nós, como indubitavelmente foram para Cristo, expressões autênticas do amor que serve.

Isso nos leva a uma consideração dos termos da Grande Comissão. Qual foi a comissão que o Senhor Jesus deu ao seu povo? Não pode haver dúvida de que a maioria de suas versões (pois parece que ele repetiu a comissão de várias formas e em várias ocasiões) dá ênfase ao evangelismo. “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” é o mandamento familiar da “longa conclusão” do Evangelho de Marcos que parece ter sido adicionada mais tarde por outra pessoa, após a conclusão original ter sido perdida (Mc 16.15). “Ide […] fazei discípulos de todas as nações, batizando-os […], ensinando-os” é a forma que Mateus escolheu (Mt 28.19-20), enquanto Lucas registra, no final de seu evangelho, as palavras de Cristo de que “em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações” e no início de Atos, de que seu povo receberia poder para se tornar testemunha até os confins da terra (Lc 24.47; At 1.8). A ênfase cumulativa parece clara. Ela é colocada na pregação, testemunho e discipulado, e muitos deduzem disso que a missão da igreja, de acordo com as especificações do Senhor ressurreto, seja exclusivamente uma missão de pregação, conversão e ensino. Realmente, confesso que defendi essa posição no Congresso Mundial de Evangelização em Berlim, em 1966, quando tentava expor as três versões principais da Grande Comissão.

Entretanto, hoje me expressaria de forma diferente. Não significa apenas que a Comissão inclui a tarefa de ensinar aos convertidos tudo o que Jesus havia ordenado previamente (Mt 28.20), e que a responsabilidade social está entre as coisas que Jesus ordenou. Agora vejo mais claramente que, não apenas as consequências da Comissão, mas também a própria Comissão inclui em si a responsabilidade social assim como a evangelística, a menos que queiramos ser acusados de distorcer as palavras de Jesus.

A forma crucial como a Grande Comissão foi entregue a nós (apesar de ser a mais negligenciada, por ser a mais custosa), é a joanina. Jesus havia antecipado isso em sua oração no cenáculo quando disse ao Pai: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18). Agora, provavelmente no mesmo cenáculo, mas depois de sua morte e ressurreição, ele transforma sua oração-declaração em uma ordem e diz: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20.21). Nessas duas sentenças, Jesus fez mais do que traçar um paralelo vago entre sua missão e a nossa. Precisa e deliberadamente, ele fez de sua missão um modelo para a nossa, dizendo: “assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Portanto, nossa compreensão da missão da igreja deve ser deduzida da nossa compreensão da missão do Filho. Por que e como o Pai enviou o Filho?

É claro que o propósito principal da vinda do Filho ao mundo foi singular. Talvez seja parcialmente por essa razão que os cristãos hesitam em pensar a respeito de sua missão como comparável à dele em qualquer sentido. Pois o Pai enviou o Filho para ser o Salvador do mundo, e, com esse propósito, fazer expiação pelos nossos pecados e nos dar a vida eterna (1Jo 4.9-10, 14). Na verdade, ele mesmo disse que havia vindo para “buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10). Não podemos copiá-lo nessas coisas. Não somos salvadores. Todavia, tudo isso ainda é uma declaração inadequada para explicar por que ele veio.

É melhor começar com algo mais geral e dizer que ele veio para servir. Seus contemporâneos estavam familiarizados com a visão apocalíptica de Daniel sobre o Filho do Homem recebendo domínio e sendo servido por todos os povos (Dn 7.14). Porém, Jesus sabia que ele tinha de servir antes de ser servido e enfrentar o sofrimento antes de receber o domínio. Assim, ele fundiu duas imagens do Antigo Testamento aparentemente incompatíveis — a do Filho do Homem em Daniel, e a do Servo Sofredor em Isaías — e disse: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45). A oferta redentora pelo pecado era um sacrifício que somente ele poderia oferecer; isso seria o clímax de uma vida de serviço e por isso nós também devemos servir. “No meio de vós”, ele disse em outra ocasião, “eu sou como quem serve” (Lc 22.27). Assim, ele entregou-se a si mesmo em um serviço abnegado pelos outros e seu serviço teve uma ampla variedade de formas segundo as necessidades dos homens. Certamente ele pregou, proclamando as boas novas do reino de Deus e ensinando sobre a vinda e a natureza do reino, como entrar nele e como este reino seria espalhado. Porém, ele serviu por meio de obras, assim como por palavras, e seria impossível, no ministério de Jesus, separar suas obras de suas palavras. Ele alimentou bocas famintas, lavou pés sujos, curou os enfermos, confortou os abatidos e até ressuscitou os mortos.

Agora ele diz que nos envia como o Pai o enviou. Logo, nossa missão, como a dele, deve ser de serviço. Ele se esvaziou do status e assumiu a forma de servo; e seu espírito humilde deve estar em nós (Fp 2.5-8). Ele nos fornece o modelo perfeito de serviço e envia sua igreja ao mundo para ser uma igreja serva. Não é essencial descobrirmos sua ênfase bíblica? Em muitas de nossas atitudes e empreendimentos cristãos, temos a tendência (especialmente aqueles dentre nós que vivem na Europa e na América do Norte) de sermos patrões em vez de servos. Contudo, parece que é em nossa função como servos que encontramos a síntese correta entre evangelismo e ação social. Pois ambos deveriam ser para nós, como indubitavelmente foram para Cristo, expressões autênticas do amor que serve.

Dessa forma, há outro aspecto da missão do Filho que deve ser comparado com a missão da igreja: ele foi enviado ao mundo a fim de servir. Ele não desceu como visitante de outro planeta nem chegou como estrangeiro trazendo consigo sua própria cultura. Ele tomou sobre si nossa humanidade, nossa carne e sangue, nossa cultura. Na verdade, ele se tornou um de nós e experimentou nossa fragilidade, nosso sofrimento e nossas tentações. Ele até assumiu nosso pecado e morreu nossa morte. Agora ele nos envia “ao mundo” para nos identificarmos com os outros assim como ele se identificou conosco (ainda que sem perder nossa identidade cristã), para nos tornarmos vulneráveis assim como ele se tornou. Certamente, essa é uma das falhas mais características que temos como cristãos, especialmente os que se chamam cristãos evangélicos — raramente parecemos levar a sério esse princípio da encarnação. “Assim como nosso Senhor assumiu nossa carne”, discorre o relatório da Cidade do México em 1963, “ele também chama sua Igreja para se envolver com o mundo secular. Isso é ao mesmo tempo fácil de dizer e sacrificial de se fazer”.1 Para nós, é mais natural gritarmos o evangelho às pessoas a certa distância do que nos envolvermos com elas de forma profunda, pensarmos dentro de sua cultura e de seus problemas e sentirmos suas dores com elas. Entretanto, essa implicação do exemplo do nosso Senhor é inescapável. Como o Pacto de Lausanne declara: “Nós afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo como o Pai o enviou e isto conclama para um envolvimento profundo e dispendioso no mundo” (parágrafo 6).

Nota
1. Witness in Six Continents, p. 151.
Trecho originalmente publicado no livro A Missão Cristã no Mundo Moderno.

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