Livro da Semana  |  História da Evangelização do Brasil

 

Entre a primeira missa católica e a primeira celebração eucarística reformada houve um espaço de apenas 57 anos.

Pouco mais de meio século depois da descoberta do Brasil, 38 anos depois da proclamação da Reforma Protestante e apenas 6 anos depois da chegada dos jesuítas à Bahia, aportou no Brasil uma caravana ecumênica procedente da França. Eram nobres, artesãos, soldados, criminosos e agricultores, alguns católicos e outros protestantes, sob o comando do navegador e aventureiro Nicolau Durand de Villegaignon, de 45 anos, ora católico ora protestante. Os três navios e os 600 tripulantes e passageiros haviam saído de Hâvre-de-Grâce no dia 22 de julho de 1555 e chegaram à Baía de Guanabara menos de quatro meses depois, em 10 de novembro.

Os franceses queriam construir aqui a França Antártica, por razões econômicas e religiosas. Em nenhum canto da França, então com 15 milhões de habitantes, havia segurança para os protestantes, lá chamados de huguenotes. Um deles, o almirante Gaspar de Coligny, de 36 anos, era muito influente e deu total apoio à empreitada de Villegaignon. Conseguiu o patrocínio da expedição com o rei Henrique II, também de 36 anos.

Sob o ponto de vista religioso, a França Antártica seria uma experiência inédita, já que católicos e protestantes participariam juntos de uma aventura caracterizada pela liberdade de culto, o que não estava sendo possível na metrópole. Para os portugueses, o empreendimento de Villegaignon nada mais era do que uma invasão de seu território por uma potência estrangeira.

No dia 7 de março de 1557, um ano e três meses depois da primeira expedição, chegou a segunda leva de franceses: cerca de 300 colonos, católicos e sem religião em sua maioria. Com eles vieram quatorze huguenotes (nome que se dá aos reformados de língua francesa) de Genebra, enviados por João Calvino, a pedido do próprio Villegaignon. Entre estes estavam o doutor em teologia Pierre Richier, de 50 anos, o pastor Guillaume Chartier, o historiador Jean de Léry e dez artesãos.

No dia 10 realizou-se o primeiro culto reformado debaixo da linha do Equador. Richier pregou em francês sobre o verso 4 do Salmo 27: “Je demande à l’Eternel et une chose, que je désire ardemment: je voudrais habiter toute ma vie dans la maison de l’Eternel, pour contempler la magnificence de l’Eternel et pour admirer son temple”. A cerimônia foi realizada no Forte Coligny, na ilha de Serijipe, hoje Villegaignon. Onze dias depois, 21 de março, foi organizada a primeira igreja evangélica do Brasil e da América do Sul. Entre os que participaram da Santa Ceia à maneira calvinista estava Villegaignon. Isto quer dizer que entre a primeira missa católica e a primeira celebração eucarística reformada houve um espaço de apenas 57 anos.

O namoro do vice-almirante com os huguenotes durou muito pouco tempo. Em outubro de 1557, sete meses depois de ter tomado a Ceia do Senhor em duas espécies (pão e vinho), Villegaignon os expulsou da ilha para um local chamado La Briqueterie, hoje Olaria, no continente. Menos de três meses depois, em janeiro de 1558, Richier e outros genebrinos foram obrigados a voltar para a Europa e lá contaram o que havia acontecido e chamaram Villegaignon de “o Caim da América”. Nesse mesmo ano, no dia 9 de fevereiro, o homem forte da França Antártica mandou estrangular e lançar ao mar os quatro signatários de uma confissão de fé reformada: Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon. Eles faziam parte da delegação de Genebra e eram leigos. Por ser o único alfaiate dos franceses e por ter voltado atrás, André la Fon, na última hora, foi poupado. Os outros três tornaram-se os primeiros mártires evangélicos do continente. Para não serem mortos, outros huguenotes fugiram para o interior, inclusive Jacques de Balleur, que foi parar em São Vicente, onde foi preso e levado para a Bahia. Em 1567, foi enforcado no Rio de Janeiro por ordem de Mem de Sá e com a assistência de José de Anchieta, de 33 anos.1

A Confissão de Fé solicitada por Villegaignon, escrita por Jean de Bourdel e assinada por ele e pelos outros três, ficou conhecida como Confissão Fluminense. É tida como a primeira confissão do gênero da América. Consta de dezessete artigos, quatro deles sobre o “Santo Sacramento da Ceia”. No artigo XVI, eles declaram: “Cremos que Jesus Cristo é o nosso único Mediador, Intercessor e Advogado, pelo qual temos acesso ao Pai, e que, justificados no seu sangue, seremos livres da morte, e por Ele já reconciliados teremos plena vitória sobre a morte”.2

Sob todos os pontos de vista, a França Antártica ou a invasão francesa foi um fracasso. A aventura de Villegaignon durou menos de 11 anos: no dia 20 de janeiro de 1567, os franceses foram expulsos do Rio de Janeiro por Mem de Sá. Villegaignon morreu em 1575, aos 65 anos, três anos depois de Coligny, que foi uma das vítimas da matança de São Bartolomeu, na França, em 24 de agosto de 1572. Tanto Coligny como Catarina de Médicis, seu maior desafeto e mentora da chacina que acabou com os huguenotes, tinham então 53 anos.

O historiador Jean de Léry, que veio da parte de Calvino para a falida França Antártica, publicou, em 1578, o livro Narrativa de uma viagem feita à terra do Brasil, também chamada América. Esta obra foi imediatamente traduzida para o latim, holandês e alemão, e até hoje é muito consultada.

Notas
1 – A história do martírio de Le Balleur foi escrita por Álvaro Reis em 1917, sob o título O Martyr Le Balleur.
2 – A Confissão Fluminense aparece por inteiro na página 65 de A tragédia de Guanabara, escrita em francês por Jean Crespin (1554) e traduzida para o português por Domingo Martins (1917), e na página 166 de The Martyres of Guanabara, de Jonh Gillies (1976).
>> Trecho retirado do capítulo 8, Composição desastrosa, do livro História da Evangelização do Brasil (Editora Ultimato).

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