Dois tipos de espiritualidade
Semana 66: Lucas 18.9-14
Jesus também contou esta parábola para os que achavam que eram muito bons e desprezavam os outros: — Dois homens foram ao Templo para orar. Um era fariseu, e o outro, cobrador de impostos. O fariseu ficou de pé e orou sozinho, assim: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou avarento, nem desonesto, nem imoral como as outras pessoas. Agradeço-te também porque não sou como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e te dou a décima parte de tudo o que ganho.” — Mas o cobrador de impostos ficou de longe e nem levantava o rosto para o céu. Batia no peito e dizia: “Ó Deus, tem pena de mim, pois sou pecador!”E Jesus terminou, dizendo: — Eu afirmo a vocês que foi este homem, e não o outro, que voltou para casa em paz com Deus. Porque quem se engrandece será humilhado, e quem se humilha será engrandecido.
Uma das características mais belas da vida cristã é o desejo de se aproximar cada vez mais de Deus, refletir mais nitidamente a imagem de Cristo e andar na plenitude do Espírito. Estas três maneiras de falar a mesma coisa podem ser resumidas como uma busca por uma espiritualidade autêntica. Por meio deste relato sobre a oração do fariseu e do cobrador de impostos, Jesus trata esta questão. Ao primeiro olhar o assunto parece ser simplesmente uma instrução de como devemos orar. Mas na introdução (v.9) e na conclusão (v.14) da parábola, Jesus deixa claro que o assunto não é meramente como devemos orar, mas a justiça, mais especificamente a “justiça própria”. Isto é o que nós chamamos hoje de espiritualidade. Nestes seis versículos, Jesus distingue entre uma espiritualidade que agrada a Deus e uma espiritualidade que não agrada a Deus. Esta mensagem se destina somente àqueles discípulos que procurem se aproxima de Deus. Tanto o fariseu quanto o cobrador de impostos estava procurando uma espiritualidade. Nem todos procuram. Algumas pessoas, até mesmo entre nós, são satisfeitas com a sua vida do jeito que está. Não está procurando mais. Esta mensagem não é para eles. Destina-se apenas àqueles que, de um jeito ou outro, queiram viver uma vida de consagração, de espiritualidade. A distinção é importante. Não é entre pessoas comprometidas com a fé e pessoas não comprometidas. Trata de dois tipos de pessoas, ambos comprometidos com a fé, entretanto, de maneira muito diferente. Queremos ver o que Jesus diz para eles, mas antes, como é do nosso costume, vale à pena prestar atenção para alguns detalhes nesta parábola. Por isso, dividimos a reflexão em duas partes.
DETALHES:
A parábola começa com dois homens subindo ao templo (v.10) e termina com os mesmos dois descendo, porém por ordem inversa (v.14).
O fato de estarem no Templo para orar (v.10) claramente nos esclarece, que nesta parábola, a oração é feita em público no contexto de outros adoradores. O fato do cobrador de impostos pedir especificamente expiação (“sê propício a mim”, v.13) também indica o contexto da oração pública ou no período da manhã ou à tarde quando o sacerdote fazia o sacrifício diariamente no Templo normalmente na presença de toda a congregação. Nesta ocasião, quando o sacerdote queimava o incenso, as pessoas que estavam presentes faziam as suas orações pessoais. Esta era a hora apropriada para orações pessoais porque nesta altura do culto os sacerdotes já teriam sacrificado o cordeiro que cobria os pecados de Israel e assim abria o caminho para as pessoas se aproximarem de Deus. O incenso subia diante de Deus e então os fiéis faziam os seus pedidos particulares de oração. Este foi o contexto em que os dois homens da parábola faziam as suas orações. Isto, eles têm em comum, os dois permanecendo “de pé” enquanto oravam. Isto, eles tinham em comum. Entretanto, havia profundas diferenças entre os dois.
Nos versos 11-13, Jesus nos dar três informações sobre cada homem. Primeiro, nos informa da postura de cada um, depois, o seu comportamento, e no fim, o conteúdo da sua oração…
O fariseu (vv.11-12)
A postura: o fariseu estava de pé sozinho e orou (diferente da RA e NTLH), isto é, separado dos outros adoradores (e não “de si para si mesmo,” RA). Ele ficou à parte porque se considerava “muito bom” (“justo” RA) e “desprezava os outros” (v.9). Os fariseus eram conhecidos pelos seus opositores como ferisim (“separados”), mas por eles mesmos como haberim (“associados”, isto é, associados com a lei a fim de observá-lo com afinco em contraposição à expansão da cultura pagã ao seu redor). Todos os judeus evitavam contato físico com os não judeus para evitar contaminação. Além disto, os fariseus também evitavam contato físico com os não fariseus, inclusive outros judeus que não fossem fariseus e que eles consideravam am-haaretz, “gente da terra” porque não observavam as regras de pureza e impureza e nem separavam os dízimos da sua renda. Era importante que o fariseu mantivesse a sua distância dos outros adoradores, especialmente o cobrador de impostos para não correr o risco de se contaminar. Esta era a sua postura, semelhante àquela que exemplificamos quando afirmamos “nós não somos deste mundo” para evitar contato com o incrédulo.
O comportamento: Embora a nossa passagem não diga, é bem provável que o fariseu estava orando em voz alta. Pelo menos, isto era a prática comum na época e era atestada em outras passagens dos Evangelhos. Se foi assim aqui, então o fariseu estava aproveitando da oportunidade para dar uma instrução para os “menos justos”, os judeus que eram “gente da terra” e não judeus de bom pedigree.
O conteúdo: O conteúdo da oração do fariseu é revelador porque a oração na vida piedosa judaica sempre começava com agradecimentos e louvor a Deus pelo que Ele é e pelas coisas boas que faz nas nossas vidas e depois, pedidos sobre as necessidades de quem está orando. O fariseu não fez nenhuma destas duas coisas. Não deu graças e louvores a Deus pelos Seus atributos e dons que dá, e não reconheceu nenhuma necessidade pessoal. Desta forma, a fala do fariseu nem sequer constituiu em oração, mas degenerou-se em simples elogio e propaganda de si mesmo. Assim, a sua “oração” descamba cada vez mais quando ele se distingue do “avarento e desonesto” (NTLH), ou mais ao pé da letra, os “velhacos” e “trapaceiros”, claramente se referindo ao cobrador de impostos, o que o fariseu afirma logo em seguida: “Agradeço-te também porque não sou como este cobrador de impostos,” um rude ataque contra um companheiro de adoração diante do mais distinto altar.
Em seguida, o fariseu nos apresenta o seu pedigree, um resumo da sua espiritualidade. Vejamos…
A Lei exige um jejum para o dia da expiação (Lv 25.29; Nm 39.7), mas o fariseu vai além. Ele jejua duas vezes cada semana. Também a Lei exigia o pagamento do dízimo dos cereais, do vinho e do óleo (Lv 27.30; Nm 18.27; Dt 12.17; 14.13). Mais tarde isto foi estendido para incluir tudo que era alimento, com algumas exceções, mas esta lei nunca foi generalizada e se limitou aos fiéis especialmente mais severos. Mas o fariseu, ele dava o dízimo de tudo, e assim se orgulhava da sua observância mais que perfeita! Ou seja, nestas duas práticas religiosas, o fariseu superou toda expectativa e como Paulo, deve ter se visto como um “fariseu dos fariseus”, um dos mais fiéis entre os fiéis, um modelo para ninguém botar defeito e certamente um exemplo para os outros adoradores, especialmente o cobrador de impostos.
Este era o fariseu: sua postura, seu comportamento e o conteúdo da sua oração. E o cobrador de impostos.
O cobrador de impostos (v.13)
Primeiro, observamos que Jesus descreve a espiritualidade do cobrador de impostos com metade das palavras usadas para descrever o fariseu. Acredito que isto é significante. A espiritualidade deste homem era bem mais simples que do fariseu. Não exige muita elaboração. Enquanto nós temos a forte de tendência de enfatizar a prática da fé, ou melhor, diversas práticas da fé, Jesus enfatiza aqui e em muitos outros lugares, a atitude.
Segunda observação: esta parábola nos lembra de outra parábola em Lucas 7.36-50 que já tratamos este ano sobre um fariseu chamado Simão que também se orgulhava da sua própria justiça e desprezava a prostituta que levou os pés de Jesus. O cobrador de impostos é visto da mesma maneira pelo fariseu que a prostituta foi vista por Simão, com desprezo e desdém e com um sentimento de superioridade espiritual, uma atitude que aparece inclusive no nosso próprio meio. E como a prostituta, o cobrador expressava profunda contrição.
Agora, vejamos a postura, o comportamento e o conteúdo da oração deste cobrador de impostos.
A postura: como o fariseu, ele estava em pé (RA traduz corretamente “estando em pé”). Assim, ele respeita as convenções culturais diante da instituição religiosa. Segundo, ele fica “longe” (NTLH, RA), de quem, o texto não diz, mas provavelmente do fariseu que, por sua vez, se separava de todos.
O comportamento: quando começa a se dirigir a Deus, a expressão do cobrador de impostos é intensa e dramática, como aconteceu com a prostituta aos pés de Jesus. Humildemente ele nem levanta os seus olhos, mas começa a bater no seu peito. Costumeiramente as pessoas oravam com os braços cruzados sobre o peito e os olhos abaixados. Mas os braços do cobrador de impostos não param quietos. Ele bate no peito, um gesto dramático que ocorre até os dias de hoje no Oriente Médio. Esta era a maneira que se expressa ou extrema angústia ou intensa ira. Toda a Bíblia este gesto é registrado apenas mais uma vez, e isto também no Evangelho de Lucas ao pé da cruz (23.48). É importante ressaltar que este gesto é característico das mulheres e não dos homens. As mulheres batem no peito durante funerais, mas os homens não. Somente em casos extremos um homem bate no peito, casos mais extremos que a morte dum amigo ou parente.
E porque no peito? Porque para o judeu o coração é a fonte de anseio pelo mal. Em Mateus 5.19, lemos que “é do coração que vêm os maus pensamentos, os crimes de morte, os adultérios, etc.” E porque o cobrador de impostos se comporta desta maneira? Qual é o conteúdo da sua oração?
O conteúdo: Ele ora literalmente, “Deus, faças uma expiação em favor de mim, o pecador!” (NTLH = “tenha pena”; RA = “sê propício”) Ele não está fazendo uma oração genérica pedindo a misericórdia ou graça de Deus. Mas no momento do sacrifício de expiação no Templo, quando o incenso queimado sobre a Deus, o pecado, em profundo remorso, bate o peito e junta o seu pedido ao incenso pede que a expiação já realizada se aplique a ele. Sua oração é feita com apenas seis palavras na língua grega. O fariseu gastou 29 palavras, quase cinco vezes as palavras do pecador.
Interpretação de Jesus (v.14)
Jesus disse que o cobrador de impostos voltou para casa “em paz com Deus” (NTLH) ou “justificado” (RA), e não o fariseu. Diante do sacrifício do cordeiro somente os quebrantados de coração, os maiores dos pecadores, aqueles que se reconhecem como totalmente indignos e que confiam na expiação por Deus, só estes saem bem. E isto, com base no princípio espiritual, “quem se engrandece será humilhado, e quem se humilha será engradecido” (também Mt 18.4; 23.12; Lc 14.11; 1Pe 5.6). A palavra “engrandecido” ou “exaltado” (RA) é usada também para a exaltação do nome de Jesus. “Exaltação”significa aproximação de Deus e é ato exclusivo de Deus.
Agora, o que podemos aprender desta parábola?
Qual é a postura da espiritualidade autêntica?
Qual é o comportamento da espiritualidade autêntica?
Qual é o conteúdo da espiritualidade autêntica?