desde Romanos 13.1-7 até Constantino

 

Neste ensaio queremos refletir sobre a missão social da igreja desde a igreja primitiva até Constantino. Para realizar esta tarefa, começaremos com uma reflexão sobre Romanos 13.1-7, e depois, consideraremos como as primeiras igrejas cristãs contribuíram para a transformação do império romano até o ano 300 d.C. Em ambos os casos, sugiro uma interpretação diferente da usual. No caso da injunção de Romanos e diferente da interpretação comum de conformidade passiva, sugiro que a parênese participa duma perspectiva subjacente de transformação social, tanto pela participação nas estruturas da sociedade quanto pela subversão dos seus valores de privilégio e status. No caso do impacto do cristianismo no império romano durante seus primeiros 300 anos de vida, sugiro, contra a interpretação tradicional que não foi Constantino a razão do crescimento da igreja a custo do seu testemunho social. Pelo contrário, foi o crescimento e impacto do testemunho social da igreja que praticamente impôs o seu reconhecimento por Constantino.

Romanos 13.1-7

Uma leitura mais progressista de Romanos 13.1-7 geralmente provoca embaraço e uma tentativa de subverter as injunções práticas que Paulo faz para os cristãos em Roma. Ao mesmo tempo, uma leitura que não considere o contexto histórico e literário, corre, como sempre, igual perigo de perder a mensagem não dita, que os primeiros leitores entenderiam e que estabeleceu a postura fundamental do testemunho da igreja dentro da sociedade maior. [1]

A passagem ainda exerce um papel importante nos discursos contemporâneos sobre a missão social da igreja. As pesquisas exegéticas normalmente focalizam questões históricas e literárias: por exemplo, a estrutura e a retórica do argumento, o significado da frase “traz a espada” e a identidade das “autoridades” e o condicionamento histórico da passagem pela situação do império romano no século I. De modo geral, o ensino é entendido como conservador, apelando para a conformidade ou até mesmo a passividade social da igreja em relação ao estado e às autoridades civis.

Entretanto, dentro do contexto maior do propósito de Paulo nesta carta, e dentro do mundo de significados do mundo mediterrâneo, a passagem revela também uma perspectiva radical que subverte alguns valores fundamentais da cultura maior e opera numa trajetória de transformação social. Procederemos, portanto, da seguinte maneira: em primeiro lugar, consideraremos o contexto maior do propósito de Paulo nesta carta e a função do contexto literário imediato, capítulos 12 a 14 e 15 até versículo 13; segundo, veremos o pano de fundo cultural; terceiro, queremos destacar a adaptação teológica que Paulo faz destes temas culturais especialmente através do desenvolvimento retórico de Romanos 13.1-7, para quarto, esclarecer o conceito paulino de missão social.

Dentro da estrutura maior da carta. A intenção missionária da carta. Sem dúvida, a Carta aos Romanos representa o pensamento maduro de Paulo sobre o seu chamado, seu evangelho e sua estratégia missionários. Hoje há um reconhecimento cada vez maior do propósito missionário da carta. Isto é sinalizado logo no início pelo tema da carta anunciado em 1.16-17 e pelo resumo do todo o seu ministério missionário em 15.14-21 que prepara para o apelo em 15.22-33 de apoiar Paulo na sua campanha missionária na Espanha mais adiante e a sua “missão” imediata em Jerusalém.

Tanto o tema da carta anunciado no capítulo 1 quanto o resumo dos seus planos missionários no passado e no futuro imediato no capítulo 15 revelam a preocupação escatológica de Paulo, baseada especialmente no seu profeta predileto, Isaías, onde a salvação futura dos judeus é vinculada a salvação universal. Por motivos que não podem ser discutidos aqui, Paulo entendeu na prática do seu ministério missionário, que o ingresso de gentios no povo de Deus dispensava os sinais ou demarcações usuais do povo de Deus, tais como a circuncisão, a observância do sábado e as leis alimentícias. É por isso que Paulo elabora longamente nos capítulos 1-8 desta carta as bases teológicas e bíblicas da sua perspectiva, isto é, do seu evangelho, defendendo a salvação pela “graça” de Deus.

Então, nos capítulos 9-11, Paulo relaciona a salvação final de judeus e gentios, creio eu, com o objetivo de defender a sua própria estratégia missionária de anunciar o evangelho primeiro nas sinagogas e depois nas praças e escolas pagãos, também até as extremidades do império romano, porém sempre retornando para Jerusalém.

No meio da sua tentativa de defender uma perspectiva que obviamente não era o pressuposto comum do cristianismo primitivo, é importante não perder de vista o que era, de fato, o pressuposto de todos e a base para toda a carta aos Romanos, que em Cristo, Deus estava criando uma nova humanidade, que um bom judeu como era Paulo só poderia entender como composta de dois grupos, judeus e gentios. E se isto era o propósito de Deus anunciado pelo profeta Isaías e se cumprindo no ministério da igreja, a incumbência da igreja como povo de Deus implica que a unidade entre judeu e gentio caracterize o seu comportamento interno e externo. Isto nos leva a considerar a função de 12.1-15.13 dentro do pressuposto maior de Paulo e do cristianismo primitivo de modo geral, de unidade na igreja e na sociedade.

A função de 12.1-15.13 dentro do propósito maior: unidade na igreja e na sociedade. Nestes capítulos Paulo aplica pastoralmente o seu propósito missionário maior na vida da(s) congregação(ões) romana(s). O tema da salvação primeiro do judeu e também do gentio deverá resultar na unidade dos dois dentro da igreja. A metáfora do corpo fornece o ponto de partida para toda a seção de parênese que argumenta a favor duma unidade que abraça diversidade. O conhecimento pessoal que Paulo tem no capítulo 16 dos membros das igrejas romanas demonstra que as exortações de 12.1-15.6 são relevantes para a situação específica destas igrejas. A visão missionária de Paulo não é simplesmente uma questão de geografia, como se a proclamação do evangelho na Espanha cumprisse a sua missão. Ao invés disto, o alvo para Paulo é a realização das promessas escatológicas de Deus a respeito da unidade de judeus e gentios na formação dum novo povo de Deus sem divisão étnica. Suas exortações pastorais refletem uma aplicação desta realização dentro dos problemas específicos das igrejas romanas. A função pastoral da passagem não só flui do propósito missionário maior de unidade na visão escatológica, mas também contribui para a mesma. Pois uma comunidade cristã unida e estável seria uma base bem melhor para alcançar a Espanha do que uma igreja cheia de conflitos internos.

Apelo para a passividade ou para a transformação?

É dentro deste contexto maior do propósito missionário de Paulo nesta carta e da função específica de 12.1-15.6, que consideramos a 13.1-7. É um parágrafo curto dentro da parênese maior de 12.1-15.6. Esta seção maior trata do comportamento da igreja em duas direções: interno e externo, o comportamento entre outros membros da igreja e o comportamento entre os não-crentes. Ambas as direções fluem do plano universal de salvação. Romanos 13.1-7 pertence principalmente à última categoria, a ética pública. A ética pública da igreja não é um tema que domina toda a seção ética de 12.1-15.6, mas ela já aparece em 12.14 e 12.17-21, onde a instrução geral para os membros da igreja em relação aos que não são membros é de “fazer o bem perante todos os homens”, “tende paz com todos os homens, “vencer o mal com o bem” e “abençoar os que vos perseguem”.

Pano de fundo cultural: engajamento com o mundo. Há outras passagens neotestamentárias sobre a relação da igreja com o estado (O Livro de Apocalipse), inclusive passagens paulinas (Filipenses 1.27; 3.20; Efésios 1.21). Aliás, até mesmo a Carta aos Romanos, que logo afirma a poder do “evangelho” de Deus, facilmente seria entendida como uma afronta para o império romano que anunciava literalmente um “evangelho” de paz e segurança mundial, debaixo da supremacia do César, para todos os cidadãos romanos. Por isso, 13.1-7 não deve ser entendido como uma teologia universal do estado. Mas é uma parênese direcionada para circunstâncias específicas. É provável, por exemplo, que Paulo queria evitar um novo édito como aquele do Cláudio oito anos atrás em 49 d.C. que resultou na expulsão dos judeus de Roma. Paulo temia que um novo édito poderia atingir não só os judeus cristãos como a igreja toda. Além disto, ele estava ciente de que o pagamento de impostos era potencialmente uma questão sensível. Entretanto não é a situação específica ou até mesmo a aplicação do ensino à situação que explica a natureza fundamental da passagem. 13.1-7 é uma exortação que faz parte dum estrato maior de ensino ético cuja função era de exortar os cristãos a participar no mundo. Se isto for verdade, então 13.1-7 é parte duma tradição que guia a igreja no processo de transformação social do mundo e que depende de envolvimento missionário, entusiasmado e circunspeto nas estruturas da sociedade. Para Paulo, este envolvimento era o corolário ético e missiológico do plano de Deus para a salvação universal.

Os códigos domésticos. Romanos 13.1-7 faz parte dum corpo maior de ensino no Novo Testamento estruturado e enraizado semelhantemente num elemento dominante e muito básico da cosmovisão mediterrânea antiga, isto é, a casa. Os relacionamentos mais fundamentais da cultura mediterrânea antiga eram relacionamentos de parentesco e a instituição da casa (oikos), dentro da qual a maioria destes relacionamentos ocorria. Mais ainda, as expectativas sociais da casa excediam a esfera privada. A casa antiga era considerada a pedra fundamental da sociedade. A sua estabilidade garantia a estabilidade da cidade-estado. Desde o período de Augusto, o imperador era considerado o pater patriae: ele era um pai, e o estado era a sua casa. O efeito deste contexto cultural nos escritos paulinos se evidencia no seu conceito tanto da igreja (Efésios 2.19; Gálatas 6.10; cf. 1Timóteo 3.15; 2Timóteo 2.20-21) quanto do ministério (1Coríntios 4.1; 9.17; Colossenses 1.25). Por várias vezes, Paulo usa a frase, oikonomia theou, freqüentemente traduzida como “a dispensação” ou “o serviço de Deus”, para descrever a fé em termos de “gerenciamento da casa” (Colossenses 1.25; Efésios 1.10; 3.2,9; 1Timóteo 1.4). Logo, o gerenciamento ou serviço da casa se evidencia como o pano de fundo cultural para o conceito paulino da ordem de Deus no mundo. No mundo grego-romano antigo a casa e a sociedade eram separadas apenas por uma barreira muito permeável. Para aqueles que atribuíram a um Deus criador a estrutura básica da natureza, era natural expandir a idéia do oikos humano a um oikonomia theou, que por sua vez, abrangeria toda a estrutura do universo. Isto é a idéia clara de 1Pedro 2.13 e o pensamento de Paulo em Romanos 13.1-7 é semelhante. A convergência de conceitos que ocorrem na descrição neotestamentária do povo de Deus (oikos, ekklesia, naos) reflete o mesmo remapeamento de domínios. A mesma permeabilidade existia em Romanos entre a igreja como “casa” e a sociedade.

Um exemplo desta permeabilidade é o uso das instruções para a família, conhecidos como “códigos domésticos”, especialmente nos escritos de Paulo e de Pedro (Colossenses 3.18-4.1; Efésios 5.22-33; 1Timóteo 2.8-15; 5.1-2; 6.1-2; Tito 2.1-3.8; 1Pedro 2.13-3.7). Os códigos domésticos mostram uma afinidade com a discussão secular do tema “quanto à casa” (peri oikonomos) e eram influenciados pelo mesmo, que incluia a relação da casa com as autoridades governantes (Romanos 13.1-7; Tito 3.1-2; 1Pedro 2.13-17; cf. 1Timóteo 2.1-2).

O conteúdo dos códigos domésticos neotestamentários indica o seu interesse no comportamento cristão em situações de vida típicas. Uma vez que a metáfora da casa era usada como expressão da identidade da igreja, o mesmo padrão de ensino pode ser aplicado aos relacionamentos dentro da comunidade cristã e em relação à sociedade maior. Aqueles códigos que contemplam o comportamento público da igreja, e não simplesmente preocupações “internas”, mostram a sensibilidade que os escritores do Novo Testamento tiveram em relação às expectativas da sociedade maior e parecem encorajar os cristãos a viver de acordo com padrões que eram amplamente aceitos e respeitáveis. Isto é o primeiro nível em que os códigos operam. A sua natureza “convencional” iria promover a estabilidade e facilitar a sobrevivência imediata da igreja.

Mesmo assim, nenhum dos códigos domésticos do Novo Testamento reflete aceitação taxativa e sem crítica da ética vigente da cultura maior. Tanto a sua fundamentação teológica quanto a sua ênfase na justiça revelam um segundo nível mais fundamental de propósito. Este segundo nível de intenção revela uma preocupação pela igreja de ser uma influência de transformação dentro da sociedade. A sua fundamentação teológica revela a crença num Deus que abraça o mundo inteiro para os seus propósitos. A oikonomia de Deus desenvolve a vida toda, e por isso, a vida cristã terá que ser vivida dentro da cultura. De modo geral, os códigos domésticos buscavam um meio termo entre a conformidade à vida secular e o desengajamento do mundo. Em todos os casos, a entrada de alvos e valores cristãos para dentro de estruturas seculares produz tensão (e.g., Romanos 12.14, 17-18). Paradoxalmente, os códigos domésticos procuram aplacar o efeito desta tensão enquanto também a sustém.

Romanos 13.1-7 deve ser visto dentro dum programa social-ético e missiológico semelhante. Seu próprio contexto literário está totalmente dedicado à mensagem que o povo de Deus deve viver consciente de ser o povo de Deus no mundo. Também a passagem possui todas as marcas da tradição dos códigos domésticos que inclui o ensino sobre a relação com o estado. As circunstâncias específicas em Roma, que ocasionaram a escolha parenética de Paulo, determinaram a forma da aplicação específica (vv. 1,5,6,7), mas o alvo mais fundamental era direcionar as congregações para participar proativamente na vida pública. A ligação com a tradição dos códigos domésticos sugere que mais que um conservadorismo seguro ou uma aderência a uma doutrina teológica está em jogo, e os temas desenvolvidos em Romanos corroboram com esta sugestão.

A intenção transformadora de 13.1-7 transparece mais na maneira como a passagem convoca a igreja à ação. Estudos recentes da estrutura retórica da passagem sugerem que o v.3 expressa a ação central na parênese através da frase, “fazer o bem”. Mais duas observações literárias confirmam que “fazer o bem” é a ação central na parênese: 1) a mudança para o estilo da diatribe no v.3, que focaliza a atenção neste imperativo central, e 2) o fato que “fazer o bem” continua o tema que é central em 12.1-15.13 e é proeminente em toda a carta. É neste imperativo de “fazer o bem” que Paulo “coopta” a convenção cultural conhecida como “benfeitoria” para equipar a igreja para a transformação da sociedade. A prática de “benfeitoria” (euergesía) existia para garantir o bem-estar da sociedade através das contribuições dos cidadãos de maior recurso, semelhante ao padrinho ou o coronel na sociedade brasileira colonial, sem ser pejorativo. O termo, “a boa obra” (tò agathón; vv.3-4) e a ordem, “fazer a boa obra” (tò agathòv poieïn; v.4) aparecem freqüentemente nas descrições de benfeitoria, e o termo, “louvor” (épainos), como galardão de goverantes para bons cidadãos e befeitores, pertencem ao domínio semântico desta convenção cultural. Dentro de tal discussão de responsabilidade pública, as congregações romanas certamente teriam entendido esta referência.

O importante é reparar como a convenção de benfeitoria era empregada pelos escritores cristãos. Estes, por um lado, enfatizam a continuação da obrigação dos benfeitores cristãos para a politeia. Mas também expandiram a convenção pela sua fundamentação teológica, aplicando-a a toda a comunidade cristã. O mesmo ocorre em Romanos 13.1-7 e é neste ponto que as injunções desta passagem adquirem uma conotação radical de transformação. “Fazer o bem” se torna a obrigação de todos, não apenas os poderosos de maiores recursos. O conceito de benfeitoria efetivamente é contextualizado para abranger a igreja toda. A benfeitoria é subvertida e transformada em serviço humilde, um exercício que coloca o escravo espiritualmente no papel do mestre (cf. 1Timóteo 6.1-2). Na oikonomia surpreendente de Deus escravos servem humildemente da posição de poder; de fato, a nobreza e a honra, galardões da benfeitoria, são atribuídas aos escravos.

Em Romanos 13.1-7, uma convenção cultural associada com os poderosos e os ricos é atribuída também aos fracos e pobres. De qualquer maneira, “fazer o bem” deve ser entendido como o serviço a favor dos outros e é integral a missão da igreja na oikonomia salvífica de Deus de unir gentios e judeus. Esta base teológica da parênese capacita a igreja para ministério difícil e sacrificial (8.31-19) e chama a igreja para se engajar plenamente no mundo a fim de transformar os seus caminhos e os seus valores.

Resta-nos ver como esta incumbência se realizava na vida da igreja nos primeiros séculos da sua convivência com o império romano.

O testemunho social da igreja no império romano até Constantino

Um sociólogo norte-americano, Rodney Stark, escreveu em 1996 um livro importante sobre o cristianismo, desde seu surgimento até Constantino. O livro é significante porque representa a primeira tentativa por um sociólogo (e não um historiador da academia teológica que procure empregar alguns conceitos ou teorias da sociologia) de analisa o impacto do cristianismo no império romano. O livro, The Rise of Christianity. A Sociologist Reconsiders History [2], em português seria, O surgimento do cristianismo. Um sociólogo reconsidera a história. Sua tese é simples e controvertida, desafiando o relato tradicional das histórias eclesiásticas. Ele afirma que o Édito de Milão em 313 d.C., não era a causa do triunfo do cristianismo no império romano. Pelo contrário, era uma resposta astuta de Constantino para o crescimento rápido dos cristãos que já representava uma força política principal (p.2).

Para provar sua tese, Stark emprega o conhecimento sociológico do processo pelo que as pessoas se convertem a religiões novas [3]. O resultado é surpreendente e demonstra com altíssimo grau de probabilidade que a comunidade cristã entendeu e grandemente exerceu a dimensão social do seu chamado missionário. Com isso, ocasionou transformações significantes na sociedade romana. No que se segue, vou resumir o resultado da sua pesquisa para depois, considerar as implicações para a nossa discussão da missão social da igreja.

O crescimento da igreja até 300 ou 350 d.C.

Citando diversas fontes históricas, e começando com um total de apenas 1.000 no ano 40 d.C., e terminando com pouco mais de 6.000.000 no ano 300 d.C., Stark chega numa taxa de crescimento de 40% por década. Com esta taxa de crescimento, a população cristã cresceu em porcentagem da população (estimada em 60 milhões) de 0.0017% no ano 40 d.C. até 10,5% no ano 300 d.C. e 56,5% no ano 350 d.C. Esta projeção coincide com o testemunho de vários historiadores e também com dados arqueológicos.

É importante reparar que o crescimento da comunidade cristã deve ter parecido muito rápido durante a primeira metade do quarto século. Entretanto, em termos de taxa de crescimento, não era o caso. Mas por causa das características extraordinárias de curvas exponenciais, este era um período de crescimento que deve ter parecido “milagroso” em termos de números absolutos enquanto o avanço em números absolutos durante as primeiras décadas deve ter parecido muito pequeno.

Tabela 1:
O crescimento cristão projetado para 40% por década

Ano

No. decristãos

% dapopulação

40

1.000

 0,0017

50

1.400

 0,0023

100

7.530

 0,126

150

40.496

 0,07

200

217.795

 0,36

250

1.171.356

 1,9

300

6.299.832

10,5

350

33.882.008

56,5

Stark não apresenta a projeção como fato, mas como uma média muito provável do crescimento. Sem dúvida havia períodos de maior e menor taxa de crescimento, mas a média sugerida é confirmada por diversas fontes históricas, estudos comparativos e, como já dissemos, dados arqueológicos. Também se baseia em observações verificáveis durante as últimas décadas que afiliação a novos grupos religiosos depende de vínculos a novas redes interpessoais de interação, e só secundariamente ao apelo apologético. Um fator que contribuiu grandemente para a afiliação duma porcentagem cada vez maior de “pagãos” ao cristianismo eram duas epidemias e a resposta que elas provocaram na comunidade cristã.

Duas epidemias

Duas epidemias devastadoras varreram o império romano em 165 e 251 d.C., dando oportunidades inesperadas, mas cruciais, para a expansão do cristianismo principalmente através dum compromisso sacrificial com a dimensão social da sua vocação missionária. Alguns historiadores médicos suspeitam que a primeira epidemia fosse a primeira ocorrência de varíola no Ocidente. Seja qual fosse, era letal, pois durante seus 15 anos de duração a epidemia matou entre um quarto e um terço da população do império, inclusive o próprio Marco Aurélio em 180 d.C. em Viena.

Depois, em 251 d.C., uma segunda e nova epidemia, igualmente violenta, correu pelo império, atingindo tanto as áreas rurais quanto as cidades. Esta vez poderia ter sido de rubéola. Tanto a varíola quanto a rubéola podem produzir grandes taxas de mortalidade ao atingirem populações pela primeira vez. Embora estes desastres demográficos tenham sido relatados por escritores contemporâneos o papel que exerceram no declínio de Roma foi ignorado por historiadores até os tempos modernos. Hoje, entretanto, sabemos que a despopulação aguda foi responsável por políticas antes atribuídas à degeneração moral. Por exemplo, antes os historiadores atribuíam o povoamento em massa dos “bárbaros” como proprietários dentro do império e a sua indução nas legiões romanas à decadência do império. Mas hoje sabemos que estas eram medidas políticas racionais implementadas por um estado com uma abundância de terras esvaziadas, onde faltava mão de obra (semelhante à imigração italiana no Brasil no final do século XIX e a japonesa e alemã no início do século XX).

Através da pesquisa de dados históricos primários e suas observações sociológicas sobre o desenvolvimento de movimentos de revitalização e de novos movimentos religiosos, Stark consegue sustentar de maneira admirável, três teses. Primeiro, as epidemias sabotaram as capacidades confortantes e explanatórias do paganismo e das filosofias helênicas que não viam propósito em desastres naturais. Ao contrário disto, o cristianismo, já muito acostumado com o sofrimento, ofereceu uma explicação muito mais satisfatória de por que estes desastres ocorriam, e projetou uma visão esperançosa, e até entusiasmada, do futuro. Os escritos de Cipriano, bispo de Cartago, confirmam esta primeira tese.

A segunda tese se encontra na carta pascoal de Dionísio, bispo de Alexandria. Os valores cristãos de amor e caridade, desde o início (isto foi a nossa observação anterior baseada em Romanos 13.1-7), foram traduzidos em normas de serviço social e de solidariedade comunitária. Por exemplo, Dionísio notou extensivamente os esforços de enfermagem realizados heroicamente pelos cristãos, muitas vezes a custo das suas próprias vidas. E cuidavam não só dos seus irmãos e irmãs em Cristo, como da população em geral, enquanto a resposta pagã à epidemia era tipicamente de fuga.

Quando os desastres chegavam, os cristãos eram mais capazes de lidar com a situação e isto resultou em taxas de sobrevivência substancialmente mais altas. Isto significava que no final de cada epidemia, os cristãos eram uma porcentagem maior da população, mesmo sem levar em conta, novos convertidos. Estas primeiras duas teses têm um pedigree social científico elevado, como elementos comuns na análise de “movimentos de revitalização” e o surgimento de novas religiões como resposta a crises sociais (cf. os estudos do surgimento de umbanda nos centros urbanos brasileiros no século XX).

A terceira tese é uma aplicação de teorias de controle de conformidade. Quando uma epidemia destrói uma grande proporção da população, ela interrompe as redes interpessoais que antes ligavam as pessoas à ordem moral convencional. À medida que a mortalidade crescia durante cada uma das epidemias, um grande número de pessoas, especialmente pagãos, teria perdido os vínculos que antes dificultavam sua conversão ao cristianismo. Ao mesmo tempo, as taxas superiores de sobrevivência das redes sociais de cristãos teriam fornecido para os pagãos uma probabilidade maior de substituir os seus vínculos perdidos com novos vínculos cristãos.

Em tudo, para nossos propósitos, é importante notar o papel que os cristãos exerceram numa transformação significante do império romano, e isto devido ao seu reconhecimento e o exercício da dimensão social da sua missão em prol da oikonomia de Deus para o mundo. Cabe citar extensivamente uma observação de Stark:

Algo distintivo veio ao mundo com o desenvolvimento do pensamento judeu-cristão: a ligação dum código ético altamente social com a religião. Não há nenhuma novidade na idéia de que o sobrenatural faz demandas comportamentais sobre os seres humanos—os deuses sempre queriam sacrifícios e culto. Também não há novidade na noção de que o sobrenatural responderia a sacrifícios—que os deuses podem ser induzidos a realizar serviços em troca de sacrifícios. O que era novo era a noção de que relacionamentos de troca que visavam mais que interesses próprios eram possíveis entre os seres humanos e o sobrenatural. O ensino cristão de que Deus ama aqueles que o amam era estranho para as crenças pagãs… da perspectiva pagã ‘o que importava era…o serviço que a divindade poderia fornecer, já que uma divindade (como Aristóteles há muito ensinou) não poderia sentir amor como resposta ao sacrifício’. Igualmente estranho ao paganismo era a noção de que, porque Deus ama a humanidade, os cristãos não podem agradar Deus a não ser que amem uns aos outros. De fato, como Deus demonstra o seu amor através do sacrifício, também os seres humanos devem demonstrar o seu amor através de sacrifício a favor dos outros. Além disto, tais responsabilidades devem se estender para além dos vínculos de família e tribo…Estas eram idéias revolucionárias. (p. 86)

Além da reação dos cristãos e dos pagãos às duas grandes epidemias, Stark aponta para outros elementos da dimensão social da missão da igreja que contribuíram para uma transformação do império romano. Aqui mencionamos dois: primeiro, o papel e status das mulheres dentro das comunidades cristãs, que era muito superior ao papel e status dentro da cultura grego-romana de modo geral; e segundo, e a resposta cristã ao caos e à miséria urbanos crescentes. O tempo não nos permite entrar em detalhes sobre mais estes dois exemplos da dimensão social da igreja e como eles também contribuíram significantemente à transformação do império. Basta dizer que o cristianismo influenciou os padrões convencionais de liderança do império romano através do status e do papel que as mulheres cristãs exerceram e novamente pela criação de novas redes interpessoais entre os pagãos que experimentavam uma escassez de mulheres na população. Também o fornecimento de novas normas e novos tipos de relacionamentos sociais, capazes de lidar com muitos problemas urbanos urgentes, revitalizou a vida nas cidades grego-romanos.

Conclusão

Seria um erro grosseiro sugerir que o testemunho da igreja era uniforme e sempre altruísta. Entretanto, há indícios históricos, fortemente confirmados por observações sociológicas sobre o surgimento e desenvolvimento de novos movimentos religiosos, de que a comunidade cristã, de modo geral, compreendeu e exerceu a dimensão social da sua missão dentro da sociedade maior, e que este exercício multifacetado efetuou grandes transformações durante os primeiros 300 anos da sua vida. Esta observação corrobora com nosso estudo anterior sobre a função transformadora, mesmo mesclada com instruções práticas conservadoras e conformistas, da parênese em Romanos 13.1-7 sobre a ética pública da igreja.



[1] Muitas das observações desta primeira parte foram extraídas do estudo por TOWNER, Philip H., “Romans 13.1-7 and Paul’s Missiological Perspective: A Call to Political Quietism or Transformation? Em SODERLUND, Sven, e WRIGHT, N. T., (eds.) Romans and the people of God. Essays in Honor of Gordon D. Fee.Grand Rapids: Eerdmans, 1999, pp. 149-169.

[2] Princeton: PrincetonUniversity Press, 1996.

[3] Eu explorei alguns destes princípios anteriormente no seguinte trabalho: “Mecanismos sociais de desconversão”. Educação, v. 9, pp. 97-129, 1984 e Simpósio, v. 29, pp. 71-84, 1985.

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