História da CIência

Sobre velhinha, perícia e Juízo de Valor Comum

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© Raphael Uchôa (PUC)

 

Uma velhinha é encontrada morta em sua humilde casa num prédio da esquina da Oliveira Pena com a Joaquim Paranhos. A polícia e a perícia são chamadas para averiguação do caso. A pobre senhora foi envenenada, confirmou o estudo laboratorial feito a partir de análises intricadamente complexas das glândulas salivares da vítima e das gotas cuidadosamente colhidas da xícara trincada encontrada perto do corpo.

A investigação policial continuou a busca até descobrir as razões da morte da idosa. O resultado? Assassinato. Seu único neto havia realizado tal infâmia esperando que a única fonte de renda da avó, uma aposentadoria miúda recebida do governo, ficasse sob sua posse. Caso resolvido? Talvez sim. Mas alguém de mente intranquila e com um certo distanciamento da aparente normalidade do processo de “descoberta dos fatos” poderia atentar para os fundamentos que levaram as três conclusões básicas do episódio: de que a pobre velha foi de fato envenenada, do fato do infame neto ter realizado tal atrocidade, e se realmente foi o neto, por que, então, considerar isso uma atrocidade?

De maneira geral, a natureza das questões postas aqui não são levantadas quando lemos sobre casos semelhantes. Simplesmente 1) ‘cremos’ que a ciência ‘desvendou’ o caso; 2) que a investigação criminal ‘provou’ o homicídio; e 3) que trata-se, de fato, de uma atrocidade contra a vida humana. Mas, nosso problema mais fundamental é saber o que nos faz ter tanta certeza assim. Urge aqui uma pergunta de escopo mais geral: como sabemos o que sabemos? A partir do caso da velhinha, parece haver três ‘tipos’ de balizas para falarmos sobre a “verdade dos fatos”: a ciência, a investigação criminal, que pode utilizar métodos científicos para, por exemplo, demonstrar que o chá de fato continha veneno; e por último, o ‘juízo de valor comum’: “aquilo foi uma atrocidade”. Observe que há aqui diferentes fundamentos explicativos. No caso da ciência, apenas descritivo, pois ‘afirmar’ que as gotas adormecidas na xícara continham tais e tais propriedades químicas não ‘provam’ peremptoriamente o homicídio. No máximo acumula-se às outras evidências dispostas semioticamente na cena do crime. A investigação criminal e o ‘juízo de valor comum’ dão seus vereditos a partir de outras bases que não se reduzem ao suposto “rigoroso” método científico: interpretação dos sinais na cena do crime e a filosofia moral, por exemplo, e acabamos concordando com tais conclusões ou tomando-as por razoáveis.

O debate sobre os critérios que poderiam definir a certeza de nossas crenças é longo. Poderíamos traçar pelo menos até o medievo, para restringir a conversa ao contexto da ciência moderna. Alguns deste critérios se fundamentavam pela chamada “revelação”, ou seja, conhecimento oriundo das Escrituras, no caso judaico-cristão, a Bíblia. Outros estavam vinculados ao que a razão poderia descobrir e discernir por conta própria, sem apelo à autoridade bíblica. Esse procedimento de recorrer à razão e à revelação, tomando-as como fundamento do conhecimento, animaram discussões e investigações sobre o mundo natural e a “natureza humana”, na chamada Baixa Idade Média bem como no alvorecer da Idade Moderna.

No entanto, foi nos séculos XVIII e XIX que se estruturou com maior vigor a ideia de que o ‘verdadeiro’ conhecimento se dá unicamente por meio da pura inquirição racional aliada a experimentação guiada pelo teste através dos sentidos. Uma das figuras importantes na estruturação de tal projeto é o distinto biólogo britânico Thomas H. Huxley. Se pudéssemos submeter o caso da velhinha ao escrutínio de Mr. Huxley, a primeira constatação estaria absolutamente certa, afinal de contas a ciência desvendou! A segunda, mais ou menos, afinal, foram acrescentados aos testes científicos algumas inferências semióticas para a resolução do caso. Tal estado de dúvida descontentaria profundamente seu conterrâneo Sir Arthur Conan Doyle. O terceiro caso, se era uma atrocidade, o que implicaria um julgamento moral, de forma alguma. Não teríamos como saber com certeza!

Finalmente, aquilo que chamamos “ciência”, que anteriormente ao século XIX atendia melhor por “filosofia natural”, nem sempre foi tão exclusivista assim, quando o assunto era saber como sabemos o que sabemos. Esse é um projeto mais claramente do século XIX. Alguns autores até dão um nome pomposo: “naturalismo científico”. Como esse projeto foi pensado, escrito e executado são tópicos para outros cafés.

Ciência, religião e o Mito do Conflito

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© Raphael Uchôa

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Não é simples a abordagem histórica da relação entre ciência e religião. Longe de seguir certo padrão único de análise, como geralmente se traça a partir dos gregos até o século XIX, tal relação se apresenta muito mais matizada, cheia de peculiaridades que precisam ser pensadas dentro de contextos históricos particulares; e se chega a obedecer algum modelo prévio de análise, este é o da complexidade, ou do entrelaçamento entre ideias (científicas, teológicas, metafísicas, etc) e condições socioculturais.

O padrão ao qual me referi acima, que vou denominar “Dos Gregos Até Hoje” ou simplesmente DGAH, obedece a um modelo de pensamento gestado no século XIX, mas que ainda hoje mantém fortes raízes na compreensão comum da relação histórica entre ciência e religião. (mais…)

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