Ciência, religião e o Mito do Conflito
© Raphael Uchôa
Não é simples a abordagem histórica da relação entre ciência e religião. Longe de seguir certo padrão único de análise, como geralmente se traça a partir dos gregos até o século XIX, tal relação se apresenta muito mais matizada, cheia de peculiaridades que precisam ser pensadas dentro de contextos históricos particulares; e se chega a obedecer algum modelo prévio de análise, este é o da complexidade, ou do entrelaçamento entre ideias (científicas, teológicas, metafísicas, etc) e condições socioculturais.
O padrão ao qual me referi acima, que vou denominar “Dos Gregos Até Hoje” ou simplesmente DGAH, obedece a um modelo de pensamento gestado no século XIX, mas que ainda hoje mantém fortes raízes na compreensão comum da relação histórica entre ciência e religião. Não é raro observarmos essa estrutura narrativa em livros didáticos, revistas de divulgação científica e até muitos trabalhos acadêmicos, seguindo mais ou menos assim: a ciência estaria numa longa batalha com a religião que se arrasta desde a Grécia Clássica, quando a visão mitológica foi subvertida e passou-se a explicar o mundo através da razão; atravessando o período cristão medieval, a ciência ficou adormecida por mil anos subjugada por clérigos obscurantistas, para finalmente ressurgir no Renascimento, quando todas as amarras explicativas teístas foram quebradas de vez, fato que teria pavimentado a estrada para a chamada “revolução científica”.
Além do padrão de análise DGAH, outras ideias comuns que a princípio parecem óbvias precisam ser repensadas: a de que o “Caso Galileu” foi claramente um exemplo do conflito entre ciência e religião; de que a igreja cristã medieval suprimiu a ciência dos gregos, ou de que a revolução científica (que já é um tema complexo em si) libertou a ciência das “amarras religiosas”; de que a teoria da evolução destruiu a fé de Darwin no Cristianismo, ou de que o naturalista inglês destruiu a chamada teologia natural, ou ainda, de que a ciência moderna secularizou a cultura ocidental. São todos temas aparentemente muito bem estabelecidos e encaixados no entendimento comum do papel da ciência na construção do mundo moderno e sobretudo na sua relação com a religião; mas sugiro a revisão de todos eles.
Na verdade vários historiadores têm feito já essas revisões, e eventualmente nos deteremos numa ou noutra; mas antes, voltemos ao padrão DGAH. Há uma série de problemas de análise histórica na estrutura narrativa DGAH, mas para começar penso ser importante situarmos historicamente o contexto e os formuladores desta explicação que tem sido tomada pelos especialistas no campo da história da ciência e religião como “o mito do conflito”. Mito aqui não é tomado no entendimento acadêmico do seu papel de dar um sentido ao mundo, ou de um estudo de povos da Antiguidade Clássica ou de determinadas comunidades tradicionais. Mito aqui terá o sentido da conversação corriqueira, quando designamos alguma alegação como falsa.
Feita a ressalva, gostaria de apresentar uma ideia comum entre os especialistas no estudo histórico da relação entre ciência e religião: “o maior mito da história da ciência e da religião assegura que estes dois campos têm existido em um estado de constante conflito”. Essas são inclusive as primeiras sentenças na importante obra editada pelo historiador da ciência Ronald L. Numbers: “Galileo goes to jail and other Myths about Science and Religion”, que também possui uma versão portuguesa com o título “Galileu na Prisão e outros Mitos sobre Ciência”.
“o maior mito da história da ciência e da religião assegura que estes dois campos têm existido em um estado de constante conflito.” – Ronald Numbers, Historiador da Ciência
Por que tamanha contundência na afirmação? Minha intenção é abordar em postagens futuras alguns dos principais argumentos expostos nesta obra e ao mesmo tempo expor um pouco a complexidade da questão. Por sinal, o problema da relação entre ciência e religião parece se enquadrar na máxima de Henry L. Mencken ”Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
Vamos então a construção do mito do conflito. Por que, onde, como surge?
A questão é multifacetada; há diversas variáveis em jogo que não serão tocadas aqui, mas dois dados são importantes para começar a entender o problema.
O primeiro diz respeito à figura do “cientista”. É relativamente recente a ideia de que cientistas são necessariamente pessoas sem religião ou sem apreço por qualquer tipo de metafísica. Ela surge mais ou menos com o próprio forjamento do termo “cientista”. Ele é cunhado por William Whewell em 1833. Curiosamente, Whewell figurava entre aqueles que consideravam seu trabalho vinculado à tradição da chamada Teologia Natural, para a qual o “Livro da Natureza” em conjunto com o “Livro das Escrituras” compunham as principais fontes de revelação do Criador para a humanidade. Mais curioso ainda é notar que Charles Darwin, que não se via propriamente como um cientista mas como um filósofo natural, utilizou uma epigrafe da obra de Whewell na primeira edição de A Origem das Espécies. Segue um recorte direto da obra no original:
Na verdade, o forjamento da figura do cientista no século XIX é acompanhado por um contexto muito particular na Inglaterra vitoriana. De acordo com John H. Brooke, nesse período também surgiram as primeiras corporações profissionais para cientistas. A British Association for the Advancement of Science (Associação Britânica para o Progresso da Ciência), por exemplo, foi estabelecida no início dos anos 1830. Com a fundação de tais associações veio um novo status para os praticantes da ciência e, acompanhando esse status, um novo conjunto de compromissos profissionais. Um desses compromissos seria a exclusão de amadores e religiosos do trabalho científico, algo de certa forma impensável antes do século XIX.
O segundo ponto importante para compreender a formação do mito do conflito diz respeito ao surgimento da biologia enquanto campo legítimo da ciência. A transformação da antiga história natural na “biologia” científica constitui uma importante variável no contexto de produção da imagem do conflito. Uma vez que a história natural tinha sido tradicionalmente dominada pelo clero anglicano, as novas disciplinas científicas da biologia e da geologia gradualmente alcançaram independência da influência clerical enquanto, ao mesmo tempo, legitimaram um novo conjunto de autoridades não eclesiásticas. Segundo Peter Harrison
“(…) essa foi, de fato, a missão explícita de personalidades como Thomas Huxley e seus colegas no ‘X-Clube’, que procuraram com certo fervor estabelecer um status científico para a história natural, livrar a disciplina das mulheres, amadores e padres, e assentar uma ciência secular no centro da vida cultural da Inglaterra vitoriana”.
John Brooke estabelece a questão nos seguintes termos:
“(…) questões de poder político, de prestígio social e de autoridade intelectual estiveram frequentemente em jogo. E a história escrita pelos seus protagonistas refletiu as suas próprias preocupações. O paladino de Darwin, T. H. Huxley, nos seus esforços para promover o perfil de um comunidade científica em rápida profissionalização, à custa da hegemonia cultural e educacional do clero, considerava conveniente um modelo de conflito.”
Nesse sentido, em larga medida, a tese do conflito não é um característica inerente à relação entre ciência e religião (DGAH, por exemplo); ela surgiu em um contexto específico e alinhada a propósitos políticos claramente dispostos a colocar uma retórica de hostilidade entre teologia e ciência, um conflito que, acreditavam seus defensores, não teria sido só do século XIX, mas haveria caracterizado uma relação contínua dos dois campos em questão.
No próximo post sobre o tema, falaremos sobre como a tese do conflito começou a ganhar maior notoriedade com as obras dos americanos John William Draper (1818 – 1882) e Andrew Dickson White (1832-1918).
Sugestões Bibliográficas:
– BARBOUR, Ian. Religion and Science: Historical and Contemporary Issues. San Francisco: Harper, 1997.
– BROOKE, John. Science and Religion: Some Historical Perspectives. UK: Cambridge University Press, 1991;
– HARRISON, Peter (org). The Cambridge Companion to Science and Religion. UK: Cambridge Universiy Press, 2010;
– NUMBERS, Ronald L. (org). Galileo Goes to Jail and Other Myths about Science and Religion. Cambridge, MA: Havard University Press, 2009.
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Mito do conflito? A abordagem histórica dessa questão só se complica porque a religião precisa se justificar. Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: a perseguição aos judeus. Portanto, nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. Contidos num cercadinho intelectual, no máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não tolera indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.
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