A bebida “nossa” de cada dia
Por Leonizia Gama Firmo
Que Deus maravilhoso nós temos […] nos conforta e fortalece nas dificuldades e provações […] para que, quando os outros estiverem aflitos, necessitados da nossa compaixão e do nosso estímulo, possamos transmitir-lhes essa mesma ajuda e esse mesmo consolo que Deus nos deu. (2 Coríntios 1.3-4, A Bíblia Viva)
Eu nasci na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, onde a maior parte da população é indígena. Minha mãe é Tukano e meu pai, Piratapuya. Eu sou a caçula de nove irmãos. Minha mãe teve contato com o evangelho através de missionários americanos, mas meu pai, infelizmente, nunca se interessou por esse tipo de assunto. Ele causou muitos problemas para minha família devido ao uso abusivo de bebidas alcoólicas. Começou a beber ainda muito jovem, por ocasião das festas da nossa comunidade, quando eram preparadas bebidas com frutas fermentadas. A situação piorou muito quando minha família mudou-se para a cidade, onde ele tinha acesso a bebidas destiladas vendidas pelos comerciantes locais.
Na cidade, nossa vida se tornou muito difícil devido à situação de meu pai. Quando ele estava sóbrio, era trabalhador e uma boa pessoa, mas quando bebia, transformava-se em um homem violento e todos em casa sofriam com isso. Muitas vezes, ele não aparecia em casa por várias semanas, pois caía na rua e ficava por lá, junto com diversos amigos indígenas. Eu me sentia envergonhada quando, retornando da escola, encontrava-o caído na rua, como se fosse um mendigo, além de passarmos por muitas dificuldades financeiras, pois ele gastava tudo que recebia trabalhando como carpinteiro em bebidas. Até os peixes que pescava eram vendidos e o dinheiro todo gasto com bebidas. Às vezes, eu escutava minha mãe chorando baixinho, tentando esconder de nós o quanto sofria com a situação.
Apesar dos problemas, desde criança eu freqüentava a igreja junto com minha mãe. No entanto, a situação em casa só piorava. Seguindo o exemplo do meu pai, dois de meus irmãos também começaram a beber. Um deles se tornou ainda mais violento que o meu pai. Por vezes, tive que fugir para proteger a minha própria vida. As brigas nos fins de semana eram frequentes em casa. Presenciei brigas violentíssimas. Muitas vezes, os vizinhos tiveram que chamar a polícia, pois meus irmãos estavam brigando com facas ou garfos nas mãos. Uma vez, um deles machucou a testa do outro com um garfo. Quando eles bebiam, precisávamos esconder todas as facas e garfos da casa.
Comecei a trabalhar para me sustentar com 12 anos de idade, mas nunca deixei de participar ativamente dos trabalhos na igreja. Desde pequena eu convivia com missionários, e tinha curiosidade com relação ao fato de eles deixarem seu lugar de origem. Eu pensava: Por que tantos brancos missionários vêm para esta cidade morar entre nós, índios? Com o tempo, pude entender que todos precisam ouvir as Boas Novas de salvação. Comecei a achar isso interessante e desejei ser missionária. Eu orava para que meu pai e meus irmãos também conhecessem a Jesus, mudassem de vida e parassem de beber. No entanto, não vi isso acontecer. Por infelicidade, meu pai e meus dois irmãos vieram a falecer em decorrência do abuso de bebidas alcoólicas.
Quando eu estava para terminar o curso de magistério, fui convidada por missionários que trabalhavam com o povo Dâw para estagiar na escola da comunidade. Comecei, então, a dar aulas e foi aí que percebi a verdadeira razão da presença deles no meio daquele povo que era desprezado na cidade por causa da bebida: eles estavam ali por causa do amor de Deus! Comecei a ficar mais e mais na aldeia. Todas as manhãs, eu atravessava o rio para ir à escola e à tarde retornava para casa. Sempre participava das reuniões de oração dos missionários junto com as crianças da escola, pedindo pela conversão daquele povo. Mas, no fundo eu achava que não tinha jeito, que assim como meu pai e meus irmãos, eles nunca iriam abandonar o maldito álcool. Mas, aos poucos, Deus foi mudando os Dâw e mostrando que ele tem poder para transformar vidas.
Quando terminei meu curso de magistério recebi o desafio de estudar a Bíblia por um ano no Seminário Bíblico Palavra da Vida, em Atibaia, no interior de São Paulo, e depois voltar para trabalhar com meu povo, em São Gabriel da Cachoeira. Até hoje não sei como aceitei, mas sei que foi Deus que me levou e me guardou. Eu nunca tinha saído do lugar em que morava, a não ser uma vez quando fui a Manaus. Mas agora eu iria para bem longe de casa. Nessa situação, de maneira especial, desfrutei da graça e da misericórdia de Deus, para conseguir o sustento e ficar por lá não apenas um, mas cinco anos. Certamente, não foi um tempo fácil, pois tudo era muito desafiador — a comida era diferente, o clima era outro e até o jeito das pessoas era diferente. Mas, foi durante esse tempo que senti a confirmação do chamado para missões e me lembrei que aos nove anos, sem nem entender direito das coisas, eu havia dito que queria ser missionária.
Depois de formada e de ter assistido a um curso de Lingüística em Brasília, na missão ALEM, recebi um convite para servir a Deus no Timor Leste. Os dois anos e meio que passei no Timor foram uma escola, onde aprendi muito com meus erros. Lá, Deus me quebrantou e me fez amadurecer. Durante esse tempo no deserto, Deus me preparou e me treinou para voltar a São Gabriel da Cachoeira. Retornei ao Brasil sentindo a mão de Deus presente na minha existência, me restaurando e fortalecendo a cada dia. Depois de um ano, desafiada novamente por Deus, resolvi continuar no ministério, mas agora, desenvolvendo um trabalho no Amazonas, meu primeiro desejo e chamado.
Em 2005, retornei para São Gabriel da Cachoeira. Depois de dez anos, pude comprovar as grandes transformações que o evangelho é capaz de produzir na vida de um povo que resolve seguir a Jesus. Muitos membros do povo Dâw que foram meus alunos no passado e que, na época, eu considerava como “casos perdidos”, foram transformados pelo poder das Boas Novas de Jesus. Notei que havia uma igreja evangélica entre eles, e que as pessoas não andavam mais embriagadas pelas ruas da cidade. Agora, elas seguiam com singeleza o caminho de Jesus, trazendo Cristo na cabeça, como eles gostam de contar e cantar (em português seria no coração).
Hoje meu ministério é no Projeto Amanajé, no Amazonas, com a Missão de Evangelização Mundial (AMEM), e tenho o desafio de trabalhar com crianças e adolescentes de diversas etnias que frequentam a Igreja Evangélica Indígena Tukano. Durante as reuniões de oração, os pedidos são sempre os mesmos: “Que o meu pai, tio ou irmão pare de beber!”. Tenho me visto naquelas crianças e adolescentes, pois a maioria tem problemas na família, como eu tinha, e enfrenta as mesmas situações que eu já enfrentei. Muitas vêm chorando me contar que tiveram que dormir no meio do mato porque o pai havia bebido e posto todos para fora de casa. Choro junto com elas quando vejo muitas situações que eu vivi no passado se repetindo, como se eu estivesse assistindo a um filme de mau gosto. Eu me identifico com essas crianças e consigo entender o sofrimento que elas têm passado.
Recentemente, uma menina veio me procurar dizendo que tinha uma coisa para me contar. Chamou-me no canto e disse que seu pai havia aceitado a Jesus e que não bebia mais desde então. Ela me contou isso com os olhinhos cheios de lágrimas, lembrando-me que nas nossas reuniões ela sempre pedia a Deus para que seu pai parasse de beber, e agora ele havia respondido às suas orações. Histórias assim nos fazem perceber que Jesus ainda se interessa pelas criancinhas e pelos seus lares.
O desafio é grande! O alcoolismo entre indígenas é enorme. De acordo com informações da Funasa, o álcool é uma das maiores doenças presentes nas aldeias atualmente. Mas a Palavra de Deus é poderosa e pode, sim, transformar vidas!
Nota: Texto retirado do livro A Questão Indígena – Uma Luta Desigual.
• Leonízia Gama Firmo é missionária da Missão AMEM entre povos indígenas no Amazonas.
Jean
Que história!