Por Vanessa Santos e Jessica Grant (ABU)

Imagem ilustrativa (Foto: Eunice Caetano/SEE)

“Enfrentei as mesmas dificuldades que todo aquele que é de família simples do interior, de baixa renda ou que estudou em escola pública. Mas, além disso tudo, ainda tinha as barreiras culturais e do preconceito que me desafiava a cada dia.” Essa é a experiência de Samara Carvalho, indígena Pataxó da ABU Salvador (BA), que pode nos ensinar sobre a vivência dos indígenas no ensino superior brasileiro.

Em 2017 a Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) lançou o projeto “Igreja, universidade e racismo: respondendo aos desafios de uma juventude silenciada e exterminada”, apelidado de “ABUB Contra o Racismo”. Para além da população negra, o racismo atinge outros grupos que compõem nossa sociedade, como os indígenas. Eles enfrentam desafios geográficos, econômicos, emocionais etc. em larga proporção para conseguir chegar à universidade e mais ainda para se manter lá.

Como Glycya Ribeiro[1], que é do povo Macuxi e participa da ABU Boa Vista (RR), relata: “As pessoas caçoam da nossa forma de ser, de falar, de pensar… Da infância à adolescência, ser índio era motivo de vergonha. (…) Até a minha entrada na universidade, eu nunca havia pensado na educação como um instrumento que me daria voz”. Foi na universidade em que ela abraçou sua identidade e desafiou o preconceito que vem do desconhecimento da cultura indígena.

Essa juventude indígena, que juntamente com seus povos vem sendo silenciada (não lhes dão espaço para falar ou ignoram e deslegitimam suas reivindicações) e exterminada (leia sobre as taxas e as razões de suicídios de jovens indígenas aqui e aqui) por interesses políticos e econômicos e pelo preconceito, deve receber nosso olhar. Devemos nos questionar como responder a essa situação. Conhecer um pouco dessa realidade pode ser um bom começo, ouvir quem é sujeito é um exercício de empatia, assim como Jesus perguntava: “O que você quer que eu lhe faça?”. Duas estudantes compartilham conosco como é ser, em seus contextos, estudante, mulher, cristã e indígena (não necessariamente nessa ordem) no ambiente universitário.

Samara é bacharela em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Me chamo Samara[2], sou do povo Pataxó, da Aldeia Indígena Pataxó de Coroa Vermelha, localizada entre os municípios de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, no sul da Bahia. Em 2016 me tornei bacharela em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sou advogada, militante, defensora e pesquisadora dos direitos dos indígenas.

Falar da minha experiência como estudante indígena na UFBA é falar de uma história de luta, superação e conquista. Não só minha, mas também do meu povo. O peso dessa representatividade foi o fator determinante para que eu pudesse nortear os meus rumos nos espaços por onde andei fora da minha comunidade, em especial na universidade. Enfrentei as mesmas dificuldades que todo aquele que é de família simples do interior, de baixa renda ou que estudou em escola pública. Mas, além disso tudo, ainda tinha as barreiras culturais e do preconceito que me desafiava a cada dia.

No entanto, posso dizer que não dei espaço para que a visão colonialista e preconceituosa da sociedade se disseminasse sobre mim. Pelo contrário, a todo momento no meu percurso acadêmico busquei de alguma forma descolonizar o pensamento da sociedade e da comunidade acadêmica sobre as populações indígenas. Para, desse modo, poder fazer valer na prática uma emblemática frase dita em uma certa feita por uma importante liderança indígena, Marcos Terena: ‘Posso ser quem você é, sem deixar de ser o que sou’.

Não posso deixar de lembrar que a ABU também foi um marco importante na minha passagem pela universidade. Pois encontrei amigos que respeitaram os meus valores étnicos-culturais sem qualquer preconceito, mas que também acrescentaram em minha vida valores e princípios eternos de amor e compaixão mesmo em meio às diferenças.

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Glycya é indígena Macuxi e estudante de psicologia na Universidade Federal de Roraima (UFRR)

Durante toda a minha trajetória de vida, sempre tive medo de assumir a minha identidade étnica porque, apesar de ser um estado com uma população indígena bastante significativa, há muito preconceito. As pessoas caçoam da nossa forma de ser, de falar, de pensar… Da infância à adolescência, ser índio era motivo de vergonha, pelo menos na escola onde estudei, uma das melhores do estado. Meus pais sempre fizeram questão de que eu estudasse na cidade, para que um dia eu também pudesse defender os direitos dos nossos povos através dela, e isso me custou muitas noites de choro.

Até a minha entrada na universidade, eu nunca havia pensado na educação como um instrumento que me daria voz. Na primeira aula, enquanto nos apresentávamos, três dos meus colegas apresentaram-se assim: ‘Sou fulano/fulana, indígena, da etnia tal…’. Naquele momento eu soube que não estaria sozinha, que mesmo que sofresse algum tipo de preconceito, teríamos uns aos outros numa turma de 34 alunos. Finalmente me senti parte de algo. Estou no nono semestre do curso de psicologia, e, ao longo de toda a graduação, fui trabalhando as questões referentes aos povos indígenas, tanto em mim como na minha turma. Hoje eles respeitam e admiram esse nosso posicionamento de assumir a identidade, como se disséssemos: ‘Sou índia sim, e se me atacar eu vou atacar’ (risos). Acredito que o curso nos proporcionou esse espaço, é lindo encontrar os colegas de turmas diferentes e falar do forró das nossas comunidades indígenas, falar de coisas da nossa cultura abertamente num ambiente carregado de preconceito.

A tristeza é não termos disciplinas na grade obrigatória, a única que tem é “Psicologia e povos indígenas”, eletiva, que foi dada uma vez desde que entrei. Há uma falta tremenda de professores que trabalhem nessa vertente, temos sempre que buscar em outras instituições ou cursos. A tristeza é não sermos respeitados nos ambientes comuns da universidade, como o Restaurante Universitário, sempre vítimas de piadinhas. Eu vivi praticamente só no meu bloco (de psicologia) e ele é composto majoritariamente por mulheres. Somos respeitadas e acolhidas. Mas, quando saio do bloco, somos só um pedaço de carne mesmo. No campus não importa o quanto sejamos inteligentes, sempre vão nos olhar nesse sentido, se tem beleza ou não. Eu sou quase um fetiche: ‘Sempre quis namorar/ficar com uma índia’.

Mas olhando para o meu curso, para a minha turma, acredito que me fizeram sentir parte de alguma coisa importante, me deram segurança para ir em busca do meu direito como indígena. Sinto que estou abrindo um caminho para outros que virão.

Notas:
[1] Glycya é indígena Macuxi e estudante de psicologia na Universidade Federal de Roraima (UFRR).
[2] Samara é bacharela em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrou a ABU Salvador (BA) durante sua graduação.
Conteúdo publicado originalmente no site da ABU. Reproduzido com permissão. A Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB) é uma organização missionária evangélica que existe para compartilhar o evangelho de Jesus Cristo nas escolas e universidades brasileiras através da iniciativa dos próprios estudantes. O treinamento e a formação de estudantes e profissionais, visando o testemunho cristão e o serviço à igreja e à sociedade, completam a missão do movimento. O projeto ABUB Contra o Racismo foi realizado em parceria com a Tearfund para levantar o debate sobre este pecado vivenciado por muitos de nossos estudantes.

 

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