Lições de Tacaratu: um depoimento
O ano de 1974 faz parte da história de missões. Foi quando 2.700 líderes do mundo evangélico reuniram-se em Lausanne, na Suíça, para discutirem a missão da igreja. Será que as questões sociais que afetam as pessoas deveriam preocupar a igreja? Desse encontro surgiu o Pacto de Lausanne e o começo de uma longa caminhada rumo ao resgate de um entendimento teológico mais amplo, mais completo e verdadeiramente mais “evangélico” sobre o que significa levar as “boas novas” a todos os povos.
Um outro encontro
Para mim, o ano de 1974 ficou marcado por um outro encontro, bem menor, promovido pelos meus pais e realizado debaixo de um mangueiral no município de Tacaratu, agreste pernambucano. O grupo ali reunido era composto por lideranças evangélicas sertanejas e por índios Pankararu — famílias convertidas ao evangelho por meio do trabalho missionário realizado pela Missão Novas Tribos.
Meu pai, que convivia há 11 anos com aquele grupo, tinha uma simpatia profunda pelos habitantes do semi-árido e uma grande amizade com os queridos irmãos que Deus ia nos acrescentando.
Evangelismo versus ação social
Não sei qual foi exatamente o assunto principal daquele encontro, mas tenho a impressão que temas como geração de renda, saneamento na aldeia e saúde não foram abordados. Até aí, nenhuma surpresa. Não se espera de um retiro espiritual assuntos tão mundanos!
Mas, considerando as condições precárias de vida tanto dos índios Pankararu quanto dos sertanejos da região, é uma pena que meus pais não tivessem a orientação ou os recursos de que dispomos hoje para ensinar às pessoas que Deus se importa, sim, até com a qualidade da água que bebemos.
A dificuldade de se encontrar água, a inexistência de saneamento — raras eram as casas que possuíam latrinas —, a falta de acesso a cuidados de saúde e a desnutrição constante das crianças explicavam o alto índice de mortalidade infantil. Os missionários prestavam assistência, porém de forma limitada: distribuíam roupas usadas e remédios, doados pelas igrejas do sul. Até atendimentos odontológicos foram feitos pela equipe nos idos dos anos 60.
No entanto, aos poucos a equipe foi sendo instruída a diminuir atividades de assistência e priorizar o evangelismo. Estavam ali para plantar uma igreja. Assistência social poderia, inclusive, atrapalhar esse objetivo primeiro, uma vez que atrairia pessoas interesseiras para a igreja.
Com certeza, meus pais não ignoravam as necessidades das pessoas ao redor. O problema é que a orientação teológica que haviam recebido não atribuía a um ministro do evangelho o trabalho prático de resposta às necessidades físicas das pessoas. Era preciso se policiar para não cair na tentação e se desviar do objetivo principal: pregar o evangelho.
Trinta anos depois
De fato, uma igreja indígena, com liderança própria, foi plantada. Ela continua lá, na aldeia Pankararu, reunindo-se aos domingos, resistindo à seca, à fome, às doenças e à corrupção, que nos últimos tempos trouxe para a região o cultivo de maconha e, conseqüentemente, emprego para um povo muito necessitado.
Essa igreja tem uma característica interessante: muito mais mulheres e crianças que homens. Os rapazes com freqüência migram para São Paulo deixando suas jovens esposas e seus filhinhos. Há hoje 2 mil índios Pankararu disputando metros quadrados nas superlotadas favelas de São Paulo!
O índio Eronides é lutador incansável pela sobrevivência e líder fiel da igreja evangélica entre os Pankararu. Ele se preocupa com o alto índice de deserção familiar. Muitos índios abandonam suas esposas e arrumam outras companheiras na metrópole. A situação de sobrevivência continua tão precária quanto antes, e o fato de o evangelho ter chegado àquela aldeia não parece ter melhorado muito as condições de vida do povo.
Hoje, trinta anos depois, sei que se meu pai recomeçasse repetiria muito do que fez: teria o mesmo amor, a mesma determinação, a mesma fé, o mesmo zelo pela sã doutrina e a mesma alegria. Mas acrescentaria também: construção de latrinas, abertura de poços, tratamento de água e criação de galinhas caipiras, codornas, cabras e rãs! Minha mãe traria às mulheres noções sobre amamentação e nutrição, higiene, prevenção contra verminoses e outras doenças evitáveis. Além disso, estariam abertos a parcerias com organizações que promovem o desenvolvimento comunitário.
Quando amamos aos outros como a nós mesmos, não fazemos pouco caso de suas necessidades básicas pela sobrevivência. Afinal, todos nós levamos a sério nossas próprias necessidades.
(Artigo publicado originalmente na revista Mãos Dadas nº 11)
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Elsie B. C. Gilbert é editora da revista Mãos Dadas