Rua três, n. 321 – Vila Guilherme, São Paulo capital. Este foi o meu primeiro e longevo endereço. Rua de terra, em um bairro simples: de um lado da rua, moravam italianos e seus filhos; do lado oposto, os portugueses e os seus descendentes. Nós, família de origem baiana, estávamos ali entre os italianos e de frente para os portugueses. 

Foi nessa rua, nessa casa construída pelo meu pai, que iniciei meu convívio com ele, há seis décadas e meia. Eu, o primeiro de quatro filhos homens, e ele, o marinheiro de primeira viagem. Aquele que saiu de pijama, de madrugada, levando minha mãe à maternidade do Belenzinho.  Apavorado com aquela situação inédita, levou apenas o dinheiro suficiente para o táxi de ida. Imagine só a volta: ele estava sozinho, deixando sua esposa e filho recém-nascido, caminhando às três horas da manhã para casa, percorrendo aproximadamente seis quilômetros, de pijama, sem dinheiro e muito feliz. 

Ele, de nome simples e curto – Walter de Almeida, deu ao seu filho primogênito o nome de um grande ator americano da época. O tabelião não entendeu muito bem a ideia e fez uma sutil mudança. De Johnny Weissmuller de Almeida, ideia original, passei a ser chamado de Jony Wagner de Almeida. O início do convívio foi meio atabalhoado, mas pitoresco e singular em nossa história.

Ele, um homem simples, nordestino, com o terceiro ano fundamental incompleto, era um biocupacional, como chamamos hoje, na cidade grande e cosmopolita. De dia, era um pedreiro de mão cheia e, em algumas noites da semana, servia como Guarda-Civil, tornando-se depois sargento da Polícia Militar. As minhas primeiras memórias me trazem o convívio de um filho que admirava os músculos e forma atlética de um homem que trabalhava duro, apesar de já sofrer com os primeiros sintomas da esquistossomose, doença incurável naquela época, contraída na infância, quando ele nadava em um rio lindo e caudaloso de sua cidade natal, França, Bahia. 

Desse meu tempo de criança, a melhor lembrança é a de o convívio devocional. Sim, pois meus pais eram crentes em Jesus, como se dizia à época, membros da Igreja Presbiteriana de Vila Maria. Ele, um tenor de mão cheia, e minha mãe, um bonito contralto, ensinavam para gente, quando os outros filhos já haviam chegado e agregado, simples e belas canções de louvor a Deus. Desse convívio, ficou a herança espiritual de uma fé que cultivo com muito carinho até hoje. 

Cheguei à adolescência e, com ela, a questionamentos. O convívio com o meu pai não era conflituoso, mas acanhado e tímido. Eu não conseguia conversar com ele naturalmente, reproduzindo assim o convívio dele com o seu pai, meu velho avô. Acredito que, com sabedoria, ele arranjou um jeito de se relacionar comigo. Começou a me levar para fazer o que ele mais gostava em suas horas de folga e lazer, jogar futsal, numa quadra de terra, com os amigos da igreja que frequentávamos. Naquela dinâmica de esporte coletivo, o gelo em nosso relacionamento era quebrado e a gente voltava conversando muito sobre os melhores e os piores (principalmente sobre estes) momentos das partidas. 

Já na maioridade, fui aprovado no vestibular do curso de Agronomia na Universidade Federal de Viçosa, uma cidade da Zona da Mata Mineira. Meu pai foi o meu incentivador e mantenedor, coerente, assim, com o que sempre falava para os seus filhos a respeito da escolha de um ofício para viver: “Vocês podem escolher o que quiserem para estudar e se formar, menos a carreira militar”. Não cheguei a entender bem o porquê real disso, mas, em nenhum momento, pensei em seguir essa carreira, assim como os meus irmãos também não o fizeram.

Pois bem: ele que sempre me apoiou na escolha de um lugar e um curso para estudar, não conseguia se despedir de mim depois das férias, nos dias da partida para mais um semestre do curso nas terras mineiras. Ele sempre achava uma desculpa esfarrapada para não experimentar aquele momento. Isso por pura falta de condições emocionais para ver seu filho ir, com a possibilidade de não mais voltar a morar na casa paterna.  

Essa convivência foi interrompida bruscamente no primeiro semestre do ano de 1980, quando de repente, as consequências da esquistossomose se agravaram muito. Eu estava no sétimo período da Engenharia Agronômica e não soube e nem presenciei as dores, as lutas, e as deformações físicas causadas pela doença. Ele mesmo foi o responsável por esse sigilo, alegando para a minha mãe e irmãos que não queria atrapalhar os meus estudos com aqueles acontecimentos. 

Nos primeiros dez dias do mês de julho daquele ano, tudo se precipitou e o levou ao seu estado terminal. Eu estava fazendo provas finais, para finalmente ir para casa; enquanto ele, hospitalizado em estado grave, mantinha a firme resolução de não me avisar, com a convicção que venceria aquela crise e poderíamos nos encontrar depois. Só fui avisado, pela minha mãe, no dia 10 de julho de 1980 – uma quinta-feira de manhã, no momento que ele tinha entrado em coma e ficado inconsciente. Viajei imediatamente para a cidade de São Paulo, uma viagem de mais de 14 horas de duração.

Neste período, ele não resistiu e deu seu último suspiro.  Fui vê-lo inerte na madrugada do outro dia. Lembrei-me daquela madrugada do meu nascimento, em que ele me via, mas não tinha resposta daquela criança pueril. E agora, eu vou até ele, mas ele não vem até mim. Nossas histórias e nossas madrugadas.

Meu pai e eu temos uma história de relacionamento inacabado. No entanto, espero um dia vê-lo em um lugar muito especial e agradecer pessoalmente o quanto aprendi com aquela humilde sabedoria de vida que me fascina continuamente e ajuda tanto na minha essência.

 
  • Por Jony Wagner de Almeida, Pastor auxiliar pastor da Igreja Presbiteriana de Viçosa, MG.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *