Educadora do Projeto Calçada da Lifewords conta sua experiência com adolescentes em Fortaleza
Por Raila Freitas
Respeito e compreendo a dor daqueles que perderam entes queridos ou viram seus direitos usurpados pela ação de adolescentes. Em situação semelhante, sentir-me-ia igualmente indignada, perplexa e impotente. Acredito, porém, que as questões que envolvem o futuro de uma geração não devam ser resolvidas à luz de premissas emocionais, mas com base em princípios universais, no caso, justiça social.
Sou educadora de adolescentes desde agosto de 1981. Nove anos antes da publicação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que se deu em 16.07.90. Posso falar da crise vivenciada por mim com o advento desta lei: acreditava que transformaria em caos nosso trabalho, e não seríamos mais respeitados pelos adolescentes. Mas as mudanças provocadas pelo ECA aconteceram de forma tão sutil que se tornaram quase imperceptíveis para mim. Vi que poderia “ficar tranquila”, pois quase nada havia mudado exceto que as crianças foram separadas dos adolescentes, e os adolescentes infratores separados dos adolescentes em situação de abandono ou vítimas de violência ou negligência. Isso era o suficiente para mim, até porque sempre trabalhei em unidades cuja direção e equipe de apoio não aceitavam qualquer forma de violência ou desrespeito a dignidade humana.
O tempo passou, conheci melhor a nova lei e descobri, aos poucos, seu valor. Despertei para o fato de os abrigos parecerem “arranjos” e não lugares de preservação dos direitos das crianças e adolescentes. Exceto a mudança que citei, nada mais havia mudado e não via perspectiva disso ocorrer.
Programa SOS Criança de Fortaleza
Surge, então, a oportunidade de compor o quadro de profissionais do recém-criado Programa SOS Criança de Fortaleza. Aqui trabalhei por oito anos consecutivos, tempo suficiente para ver um sem número de crianças e adolescentes ser retirado das mãos de opressores cruéis e de pais desassistidos. Vi crianças mutiladas pelas agressões sofridas, vítimas de assédio e violência sexual praticados por pessoas de todas as idades e de diferentes classes sociais. Vi também famílias vivendo em situação de miséria tal, que não dispunham do mínimo necessário para sobreviver por um dia sequer. Porém, ainda mais marcante foi presenciar o nascimento das favelas que hoje rodeiam nossa cidade sem entender o porquê de ninguém considerar a gravidade desse fato.
Lembro-me de tentar conversar com diversas pessoas sobre a situação, mas sempre restava aquela sensação interior de não estar sendo entendida. Sentia-me um E.T., falando uma linguagem indecifrável. Realizava visitas noturnas em ruelas sem saneamento básico, e andava por entre casebres escuros e fétidos, esbarrando em pessoas embriagadas, drogadas, doentes e famintas. Chegava ali para atender alguma denúncia envolvendo crianças ou adolescentes em situação de risco. Deparava-me com crianças morrendo com crises de asma ou desidratada pela febre, enquanto a mãe drogava-se com o companheiro. Outras vezes precisava retirar de casa um recémnascido ferido por ter sido jogado pelos pais contra a parede, e o encaminhava para o hospital mais próximo. Estes não eram casos isolados, fazia parte de nossa rotina. Diuturnamente, eu e os demais membros da equipe vivenciávamos casos semelhantes. Hoje, muitos desses lugares que eu visitava, acompanhada apenas pelo motorista de plantão, são regiões que a polícia teme adentrar, segundo os noticiários local.
Medida socioeducativa de semiliberdade
Atualmente, trabalho numa unidade de atendimento a adolescentes do sexo masculino cumprindo medida socioeducativa de semiliberdade. Coincidência? É da periferia de Fortaleza ou das periferias das cidades da zona metropolitana que eles procedem, em quase sua totalidade. Também advêm de lares marcados pela violência, pelo uso de álcool ou drogas ilícitas. Vivenciam desde cedo a violência e a carência de valores éticos. Estão fora da escola e engodados pelo tráfico como meio mais fácil de adquirir dinheiro. Pergunto-me se estes adolescentes foram gerados nos ambientes que eu visitava há cerca de dez anos ou apareceram pelo processo de geração espontânea. Com tempo de serviço para aposentar-me, vivo o dilema de sair ou permanecer no ambiente que sempre sonhei para trabalhar com os adolescentes.
Abrigo que segue as diretrizes do SINASE
Fui agraciada por Deus ao proporcionar-me trabalhar num abrigo que segue todas as diretrizes do SINASE, desde a estrutura física da casa, até a proposta pedagógica (é, tem proposta pedagógica!). Também, deparei-me com um grupo de pessoas que, liderados por uma gestora que acredita na lei e em seu sistema de gerenciamento, tentam levá-la a sério apesar das grandes dificuldades relacionadas às questões salariais de seus poucos servidores e dos vários “prestadores de serviços”.
Nesta unidade, os adolescentes conhecem cada um dos seus direitos e, diferente do que eu pensava anteriormente, não abusam de nenhum deles. Nas reuniões chamadas “assembleias”, eles discutem seus direitos e deveres e participam da programação da unidade, como também podem avaliar o trabalho dos educadores diante desses, ouvindo da mesma forma sobre seus comportamentos. Muitos adolescentes, quando desligados, frequentam a unidade nos dias das reuniões das famílias, onde ocorrem palestras educativas, apresentações teatrais, etc. e um almoço especial. Ainda não vivenciamos nenhuma rebelião. Digo ainda porque não estamos imunes a elas, mas com certeza será um caso isolado e não rotineiro, se vier a acontecer. Acredito que a verdadeira mudança acontece a partir de posicionamentos pessoais. Mas nunca saberemos qual adolescente adotará uma nova postura diante da vida.
O que cabe a nós, educadores?
A nós educadores, cabe a tarefa de proporcionar um ambiente favorável a esse desabrochar da consciência para o bem. Se não aprenderem assim, aprenderão nos presídios superlotados, com leis mais duras? Será que não seria mais justo se, em vez dos discursos de redução da maioridade penal, fossem discutidas formas rápidas de cumprir as orientações do SINASE em todas as unidades de atendimento dos direitos das crianças e adolescentes? Ou ainda, se discutissem melhorias na educação de forma que crianças e adolescentes, das diversas classes sociais, pudessem desfrutar de uma educação de qualidade que inclui o respeito pela forma de aprendizagem de cada um e de suas capacidades cognitivas? Porque muitos dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas abandonaram a escola, ou para trabalhar na economia informal ou devido a dificuldades de aprendizagens nunca diagnosticadas.
Muitos, com a autoestima marcada, acreditam serem incapazes de aprender ou que não gostam de estudar. Se o ser humano é um ser pensante e estudar é pensar, vale refletir o que leva uma criança ou adolescente a abrir mão de um processo tão inerente ao humano. Estas, e muitas outras questões deveriam anteceder qualquer discussão sobre mudanças no ECA que, a meu ver, é uma das poucas coisas justas em nosso país.” Raila Freitas
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Antonia Leonora van der Meer
Parabéns a Raila Freitas e a esse trabalho feito com amor e com perseverança, a favor dos adolescentes, que precisam descobrir seu valor e a oportunidade de ter uma vida útil e feliz. Que surjam outras tantas pessoas dispostas a amar e servir adolescentes com histórias e lutas semelhantes.