Ele bateu levemente no umbral da porta anunciando sua entrada no quarto da filha. Ela permaneceu onde estava, contemplando seu reflexo no espelho, penteando seus cabelos longos com movimentos bruscos. Sentada na cadeira, muito séria, sua tensão interna era palpável.

– Por que você está tão chateada? – Perguntou gentilmente.

Depois de algumas tentativas da parte do pai, ela se virou na cadeira encarando-o. Duas grandes lágrimas ameaçavam cair de seus olhos.

– Minha amiga, aquela que diz ser espírita, é egoísta demais! Ela gosta de mim porque, de acordo com ela, eu sei ouvir as pessoas. Eu, por outro lado, não posso falar nada. Primeiro, porque ela não está interessada em nada que eu digo e, segundo, porque no momento que eu toco no assunto da minha fé, ela começa a me chamar de alguma coisa. Hoje, ela passou dos limites! Disse que todo pastor é um machista homofóbico sem-vergonha!

Agora, as lágrimas desciam livremente. A menina fixou o olhar no pai buscando encontrar vestígios de que ele compreendia de fato o peso daqueles insultos.

– Pai, ela sabe que você é pastor!

“Ah, então é isto. Minha Victoria enfrenta qualquer adversidade sem problemas, menos insultos dirigidos à sua mãe, pai ou irmãos”.

Hoje, ela passou dos limites! Disse que todo pastor é…

 

– Pelo menos ela disse uma coisa que é certa, – arriscou o pai –  você realmente sabe escutar as pessoas. Acho que está na hora de te contar uma história.

 

Ele sabia que podia contar com o poder de uma boa narrativa para recalibrar o estado emocional de sua filha, até mesmo hoje, já com 15 anos. Victoria deu

 

de ombros; ele resolveu interpretar o gesto como permissão para continuar.

– Sempre que visitamos seus avós, passamos por uma comunidade que se chama Vale do Incó, um bairro pobre lá em Recife. O meu primeiro trabalho depois que me formei em engenharia foi lá. Isto aconteceu muito antes de assumir meu primeiro pastorado. Nossa equipe estava trabalhando para transformar aquela favela num lugar bom para se vi

 

ver. Tínhamos que implementar os serviços básicos como esgoto, água encanada, pavimentação daquelas ruas estreitas, eletricidade para todos e iluminação pública. Queríamos até criar uma praça, levar serviços de saúde, posto policial, escolas, etc. Era um trabalhão e nós sabíamos que o sucesso dependia da nossa habilidade para entender a situação das pessoas. Precisávamos andar pelas ruas, conversar com as pessoas, descobrir o que funcionava para elas. Foi lá que conheci a Mariana, uma moradora que tinha apenas 15 anos. Ela era evangélica e, como você, queria muito compartilhar sua fé com todo mundo. Assim, ela tentou evangelizar um rapaz que tinha como herói e inspiração o Che Guevara.

– Espera aí, – interrompeu a menina – este não é aquele guerrilheiro cubano?

– Isto mesmo, ele foi morto em uma emboscada na Bolívia em 1967 a mando dos Estados Unidos. Ele acreditava que os pobres precisavam se organizar para derrubar as elites gananciosas e opressoras. Esta era a única forma de acabar com a injustiça e a dominação de uns poucos que se apoderam de tudo, dos recursos naturais aos sistemas financeiros do mundo.

Ela acenou com a cabeça indicando reconhecer algo que aprendera na escola.

– Ou seja, o rapaz da sua história era um marxista, mais precisamente, um bicho grilo.

– Sim, – concordou o pai – mas não um ateu cabeça-dura. Ele simplesmente acreditava que o único jeito de acabar com governos corruptos e maus era por meio de uma luta organizada das camadas mais sofridas da população e em último caso, por meio da revolução armada.

O pai percebeu que sua filha já estava bem menos tensa e voltou à sua narrativa.

– O rapaz vinha de uma família de classe media, tinha acabado de sair da universidade e era seis anos mais velho que a menina. Toda vez que ela dizia alguma coisa sobre sua fé, ele dava um jeito de rir dela. Não era agressivo, mas era óbvio que não estava levando a menina a sério. E ele também deu alguns nomes para ela: alienada, ingênua, massa de manobra usada por alguns líderes que só pensavam em se engrandecer. A menina levava isto tudo numa boa. Um dia, ela deu um presente para o rapaz. Uma Bíblia. Ela tinha um zíper. Ele nunca tinha visto um livro que vinha com um zíper e achou aquilo tudo bizarro! Tratou de esconder um sorriso, aceitou o livro e agradeceu à menina; o tempo todo pensando o que ia fazer com o presente. Os amigos logo acharam um uso para as páginas do livro: eram perfeitas para enrolar uns baseados.

Victoria ficou chocada:

– Não acredito que eles queriam fumar a Bíblia!

– Claro que queriam! Lembra quando sua mãe e eu começamos um ministério no presîdio? Uma vez, pedi para um preso abrir a Bíblia numa passagem e ele logo veio com essa, “Escolhe outra aí, pastor, que esta eu já fumei”.

Desta vez o pai foi recompensado com um sorriso completo que chegou até os olhos. “É isto aí, minha filha”, pensou em sua torcida silenciosa.

– Bom, no fim das contas, o rapaz da nossa história começou, de fato, a ler o livro com zíper! E ele se apaixonou por Jesus. Viu em Jesus um homem muito mais radical que Che Guevara. Ali estava alguém que propunha uma revolução que começava de dentro para fora. Quem é o injusto que precisa ser deposto? Para Che Guevara era sempre o outro. Jesus dizia que a injustiça estava dentro de nós. Só ele era capaz de nos fazer justos. Dependendo da situação, qualquer um de nós poderia se tornar um governante corrupto e autoritário. No entanto, cada um de nós éramos, ao mesmo tempo, escravos do pecado. Seis meses depois que a menina lhe deu a Bíblia, o rapaz entregou a sua vida para Jesus Cristo como aquele que tem a verdade e pode nos libertar.

Quando parou de falar, Victoria dirigiu a ele um olhar carregado de suspeita. As peças foram se encaixando em sua mente. De repente, ela pulou da cadeira e gritou,

– Pai! Você é o tal rapaz! Você foi horrível com a menina!

Com um sorriso meio desconcertado, o pai perguntou,

– Como que você descobriu?

– Simples. Che Guevara. Suas fotos antigas. Aquele cabelo e aquela barbicha horrorosa, definitivamente Che Guevara. Mas eu já entendi, pai. Vou tentar levar as coisas numa boa. Sei lá, Deus pode estar chamando minha amiga para se tornar a próxima Madre Teresa!

Com esta, um pai feliz deixou uma filha mais serena e voltou para o seu escritório.  “Acho que acabei de receber um elogio da minha própria filha!”

A história acima é baseada em fatos reais, mas porém os nomes foram mudados de propósito. A Rede Mãos Dadas reservou um brinde especial para quem conseguir adivinhar de quem é a história. Comente em nosso post, dizendo de quem você acha que essa história pertence?! 

 

Dicas: Ele mora em Curitiba atualmente. É líder de uma das organizações parceiras da Rede Mãos Dadas.

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