e brincando que se aprendeO momento mais alegre de qualquer ambiente cheio de crianças é o da recreação. Pedimos a Luis Cesari*, psicólogo social e diretor de Juventude para Cristo no Uruguai, que nos falasse mais sobre a brincadeira e o seu papel na formação das crianças. Ele, sua esposa, a psiquiatra Alícia Casas Gorgal, e sua equipe criaram a metodologia Claves para ajudar as crianças a se defenderem de situações de maus tratos e violência. Um dos pilares da metodologia é a brincadeira.

MD – O que a brincadeira tem de diferente das outras formas de comunicação? Por que ela é importante?
CESARI – Creio que a brincadeira sintetiza e integra diferentes formas de comunicação. Tem o potencial de trabalhar com todos os nossos sentidos, emoções e pensamentos. Ela é inerente ao ser humano. Somos homo ludens, “brincalhões”. Desde a mais tenra infância nos integramos ao mundo que nos rodeia por meio da brincadeira. Mas é também por meio dela que criamos outros mundos possíveis.
A brincadeira é um fator fundamental de desenvolvimento do ser humano ajudando no desenvolvimento social, emocional e espiritual. Quando uma criança não brinca, acende-se uma luz vermelha: estamos diante de um problema de saúde, de desenvolvimento inadequado, de crise ou de sofrimento. Diante de tais circunstâncias, a brincadeira é uma ferramenta poderosa nas mãos de profissionais, educadores e familiares tanto para o diagnóstico, como para a terapia.

MD – Pensando assim, Deus brinca conosco ou com a sua criação?
CESARI – Gosto de pensar que essa capacidade dos seres humanos para brincar vem de Deus, que ele é um Deus criador, que brinca, se diverte, ri, canta, desenha, colore, corre, nada e caminha conosco. Sim, creio que Deus não mudou. Ele é um Deus que brinca. 

MD – A brincadeira é mais importante ainda quando trabalhamos com crianças mais vulneráveis?
CESARI – É isso mesmo. Devemos integrar a brincadeira em nossa prática educativa, já que esta é a ferramenta educativa mais poderosa, capaz de ajudar essas crianças. Muitas situações roubam delas o tempo que deveria ser dedicado para brincar. Tem aquelas que trabalham fora, outras são cheias de “obrigações” em casa, e ainda muitas cujos contextos familiares e comunitários não proporcionam um espaço adequado para brincarem. É brincando que nos divertimos e prendemos. As brincadeiras são portadoras de valores, de códigos de convivência. Brincando eu aprendo a compartilhar com os outros, a respeitar normas, a conhecer minhas habilidades, a descobrir do que gosto e do que não gosto. Aprendo a ser paciente, a esperar a minha vez, a trocar de papéis. Irrito-me quando o outro passa na minha frente e aprendo a lidar com a irritação. Aprendo a resolver conflitos, a ceder e a reivindicar justiça. É brincando que me animo a comunicar coisas que não podem ser ditas de nenhuma outra forma. Envolvo-me de corpo e alma e isso me marca. A brincadeira gera o riso, o bom humor e outros fatores protetores que nos ajudam frente a situações mais complexas; ela nos faz mais resilientes.

MD – O que tem na brincadeira que beneficia não somente as crianças, mas também os adultos?
CESARI – Com certeza ela beneficia tanto adultos como crianças, no entanto há brincadeiras para diferentes etapas e momentos da vida. Um aspecto importante a destacar é essa capacidade que a brincadeira tem de integrar, de construir espaços em que várias gerações diferentes podem interagir de forma prazerosa e divertida.

MD – Você acha que os adultos resistem à brincadeira em suas interações com as crianças? Por quê?
CESARI – Creio que muitos adultos vão perdendo a capacidade de brincar. Tenho a impressão que o mundo adulto tem cada vez menos tempo para a recreação. A vida gira em torno da produção. Perdemos a prática. Certas situações ou condições que a brincadeira nos impõe começam a nos incomodar. Mesmo assim, ela continua sendo uma forma privilegiada e muitas vezes única de relacionamento e comunicação com as crianças. A brincadeira é uma oportunidade de reencontro entre as gerações.

MD – Em nossas conversas com educadores sociais percebemos uma dúvida em relação ao tempo para brincar livremente e ao tempo de brincadeira dirigida. É importante ter as duas coisas?
CESARI – Sim. Ambas são fundamentais e devem ter espaços garantidos na prática educativa. Usamos a brincadeira dirigida como uma ferramenta que nos permite perseguir um alvo. Podemos brincar para apresentar um conceito, para refletir sobre nossas reações, para aumentar a confiança do grupo etc. Nesse sentido a brincadeira não é neutra, transmite nossos objetivos educacionais e valores. Um objetivo da brincadeira dirigida pode ser inclusive o próprio prazer de se brincar, como também a descoberta de outras formas de se relacionar, de novas habilidades etc.
A brincadeira dirigida tem de ser também livre e prazerosa. É preciso que a criança queira e aceite brincar. Não se deve obrigá-la! Com relação ao tempo livre, não podemos deixar vinte meninos “soltos” em um pátio por duas horas, sem materiais, opções e um contexto adequado que os inspire. A presença do educador nesses espaços é fundamental. Não é tempo livre para os educadores. Nesse espaço o educador precisa mudar de papel; tornar-se um moderador para que o brincar se enquadre dentro das regras da não-violência e dos bons tratos. E é durante esse período que o educador pode conhecer melhor o grupo, observando-o atentamente.

MD – Por onde se deve começar?
CESARI – Fazendo uma nova Reforma. Uma das coisas boas que a Reforma Protestante nos trouxe foi a tradução da Bíblia para a linguagem do povo. Poder ler a Palavra de Deus em linguagem compreensível foi fundamental para aquele tempo e suas conseqüências positivas continuam até hoje por toda a humanidade. Brincar nas igrejas, nas escolas, nas organizações sociais, na família é a chave para a Reforma que se faz necessária hoje.

Se já não sabemos brincar, então o primeiro passo é pedir para as crianças que nos rodeiam que nos ensinem. Acho que encontraremos grandes mestres e mestras no meio delas.


* Com o apoio de Luciana Noya e Lucas Cesari, arte-educadores e recreadores integrantes da JPC do Uruguai.

Artigo publicado originalmente na Revista Mãos Dadas, Edição 18, em novembro de 2007.

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