(Parte 3)

Por Dr. Samuel Escobar

logo_lausanne_40anos_medioQue Lausanne é definido como movimento evangélico está muito claro no Pacto, com as afirmações fundamentais dos parágrafos iniciais sobre o propósito de Deus e a autoridade da Bíblia. Podemos entender melhor o parágrafo 3 sobre a singularidade e a universalidade de Cristo prestando atenção à prática dos dirigentes de Lausanne. O Pacto diz: “Afirmamos que há um só Salvador e um só evangelho, embora exista uma ampla variedade de maneiras de se realizar a obra de evangelização”.  Não se pode negar a nota cristocêntrica na pregação de Graham e na docência de Stott. Como eles, os entusiastas de Lausanne podem dizer à consciência como o apóstolo Paulo: “Pregamos ao Cristo crucificado”.

Quando eu estava terminando meus estudos universitários, o livro de Stott, Cristianismo Básico (1958), me seduziu pela claridade e riqueza de sua apresentação de Jesus Cristo. E acho que é um sinal da capacidade deste autor para ir enriquecendo e aprofundando sua proclamação no fato de que, no ano 2000, nos oferecesse o seu livro O Incomparável Cristo, em diálogo com a cultura do começo do século XXI.

Agora também posso pensar em apresentações contextuais de Cristo (surgidas no âmbito de Lausanne, pelos meus amigos Vinoth Ramachandra, de Sri Lanka, Kwame Bediako, de Gana, e uma geração de pregadores e teólogos latino-americanos que redescobrimos): a humanidade de Jesus como chave para entender o que significa o seguimento nesta segunda década do século XXI.1

Um redescobrimento da missão integral
Como bem se sabe, em Lausanne 1974, a palestra de René Padilla e a deste servidor causaram muita polêmica. No caso de René, porque partindo do próprio conteúdo do evangelho fazia uma crítica severa à equiparação entre evangelho e cultura estadunidense ou “American way of life” e propunha um regresso ao conteúdo bíblico da boa nova do evangelho.  No meu caso, porque propunha que no processo evangelizador se levasse a sério a busca humana de liberdade, justiça e realização2.

No processo de congressos regionais que se seguiram Berlim 1966, na Europa, Ásia, África e América Latina, começou-se a redescobrir a importância da dimensão social do evangelho, com ideia de urgência. Isso explica a receptividade que nossas palestras encontraram. Houve pressões de setores muito conservadores, principalmente dos Estados Unidos, que queriam que a missão fosse definida principalmente como comunicação verbal do evangelho a fim de obter um rápido crescimento numérico. Mas prevaleceram as vozes que, nos países e ambientes mais variados, haviam visto a necessidade de praticar uma evangelização integral, do modo de Jesus, com uma presença transformadora da Igreja que respaldasse a comunicação verbal do evangelho.

O consenso está muito bem expresso no parágrafo 5 do Pacto de Lausanne sobre a responsabilidade social, na qual se afirma, entre outras coisas:  “Expressamos, além do nosso arrependimento, tanto por nossa negligência, como por ter concebido, às vezes, a evangelização e a preocupação social como coisas que se excluem mutuamente… Embora a reconciliação com o homem não é o mesmo que a reconciliação com Deus, nem o compromisso social é o mesmo que a evangelização, nem a liberação política é o mesmo que a salvação, não obstante, afirmamos que a evangelização e a ação social e política são parte do nosso dever cristão. Ambas são expressões necessárias da nossa doutrina de Deus e do homem, do nosso amor ao próximo e da nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo à toda forma de alienação, opressão e discriminação, e não devemos temer o denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam”.

Um renovado sentido de urgência
O parágrafo 9 do Pacto expressa bem a tomada de consciência do desafio missionário que tínhamos pela frente, e que ia acompanhada de um reconhecimento de culpa: “Mais de 2,7 bilhões de pessoas, ou seja, mais de dois terços da humanidade, não foram evangelizadas ainda. Nós temos vergonha de que tantas pessoas tenham sido ignoradas; isto é uma contínua repreensão para nós e para toda a igreja”. Aqui, o olhar se dirigiu para o futuro com uma agenda ambiciosa: “Hoje, no entanto, há muitas partes do mundo em que há uma receptividade sem precedentes diante do Senhor Jesus Cristo. Estamos convencidos de que é o momento em que as igrejas e as agências paraeclesiásticas orem fervorosamente pela salvação dos inconversos, e iniciem novos esforços para realizar a evangelização do mundo”.

A agenda incluía a sugestão de mudanças de estratégia. Naquela década de 1970, tinha surgido, especialmente na África, o pedido de uma “moratória” no envio de missionários. O Pacto o reconhece desta maneira: “A redução de missionários estrangeiros e de dinheiro num país evangelizado algumas vezes talvez seja necessária para facilitar o crescimento da igreja nacional em autonomia, e para liberar recursos para áreas ainda não evangelizadas”. Depois, reconhecendo também a presença crescente de missionários das igrejas jovens da Ásia, da África e da América Latina, o Pacto propõe: “Deve haver um fluxo cada vez mais livre de missionários entre os seis continentes num espírito de abnegação e prontidão em servir. O alvo deve ser o de conseguir por todos os meios possíveis e no menor espaço de tempo, que toda pessoa tenha a oportunidade de ouvir, de compreender e de receber as boas novas”.

Este renovado sentido de urgência leva a propor um novo estilo de vida em umas linhas do Pacto que foram muito debatidas antes de chegar ao texto final.  “Não podemos esperar atingir esse alvo sem sacrifício. Todos nós estamos chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e conturbados pelas injustiças que a provocam”. Vários líderes que tinham acesso ao comitê de redação do Pacto insistiam para que deixássemos de fora a expressão “conturbados pelas injustiças que a provocam”. Para eles, era bom que se falasse da pobreza, mas não que fosse relacionada com a injustiça. O parágrafo termina com uma proposta de mudança: “Aqueles dentre nós que vivem em meio à opulência aceitam como obrigação sua desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir mais generosamente tanto para aliviar os necessitados como para a evangelização deles”.

A ideia de adoção de um estilo de vida simples foi também objeto de debate. Uma dama muito importante, de cujo nome não quero me lembrar, comentou que achava normal que um solteirão como John Stott adotasse um estilo de vida simples, mas achava que era inadmissível que ele quisesse impor este mesmo estilo vida aos demais. São muitos aqueles dentre nós que agradecem o exemplo de Stott que, de forma explícita, adotou um estilo de vida simples. Assim, por exemplo, todos os direitos que recebia pelos seus livros foram destinados a um fundo para a produção de literatura cristã e para a formação de evangelistas e pregadores em países pobres.

Acho que, se o movimento de Lausanne mostrou a sua capacidade de adaptação e sobrevivência nos tempos mutáveis em que vivemos, se permanece guiado e motivado por estes princípios que destaquei, tem futuro no mundo e também na Espanha. Porque estamos em tempo de missão.

Notas
1. Estudei este processo no meu livro En busca de Cristo en América Latina (Editorial Kairós, 2012).
2. A palestra de Padilla pode ser lida no seu livro Missão Integral (Editora Ultimato, 2014, 2 edição) e a de Escobar em Evangelio y realidad social (Casa Bautista de Publicaciones, 1988).

 

Traduzido por Wagner Guimarães

 

• Samuel Escobar trabalhou com estudantes universitários da América Latina e Canadá durante 26 anos. É professor na Faculdade de Teologia Protestante de Madri e autor de “Santiago: La Fe Viva que Impulsa a La Misión” (Tiago — a fé que impulsiona a missão).


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