O “Príncipe Moderno” e a Visão Cristã do Estado
No último dia 03 de Novembro a comissão executiva do PT produziu uma resolução política sobre os rumos do partido a partir das eleições 2014. Observei, nas redes sociais, que ali se desenha uma radicalização da militância “sabendo que pouco tempo lhe resta” (ou muito, sob outro aspecto). Mas a radicalização na verdade é um retorno aos fundamentos, não uma inovação.
Num artigo anterior (“Sobre as intoxicações políticas, e porque sou oposição”) descrevi o governo atual como servindo a “um projeto hegemônico muito maior, de uma absorção progressiva das forças da sociedade civil para incorporá-las em um processo historicista de revolução social, pilotado pelo partido-estado”. Maior, digo, do que o cuidado com o pobre e o excluído. Ou, em outros termos, que “temos um estado inclinado apossuir a sociedade civil, sendo lentamente possuído por um partido desde sempre possuído por um sonho hegemônico.”
A resolução de anteontem mostra com pureza cristalina que essa é de fato a direção do partido; pilotar um movimento trans e suprapartidário de integração de forças partidárias de esquerda, movimentos da sociedade civil em todos os campos possíveis, das instituições do estado e, na medida do possível, de grandes empresas, em uma potência política central que levará à consumação o socialismo democrático. Nesse processo, realizar-se-á uma “revolução cultural” – confesso-me surpreso com o emprego dessa expressão no texto da resolução – e se dobrarão as forças conservadoras.
Ao ler minhas críticas a esse movimento “hegemônico” alguns leitores se impacientaram, como se eu estivesse ignorando a hegemonia, por exemplo, do PSDB em São Paulo. Calma gente! “Hegemonia” aqui é um termo técnico para a esquerda democrática, e expressa um projeto de totalismo político que é assimétrico em relação a projetos de poder político de outros partidos, que desejam tão somente atuar na arena política e… ganhar um dinheirinho.
Bem, o que temos aqui é nada menos que o “Príncipe Moderno” de Gramsci; o “partido” como grande movimento de esquerda democrática, e não no sentido de “partido registrado”, é o príncipe que com autoridade supramoral (isso mesmo, ignorando as moralidades tradicionais a atuando com vistas ao poder absoluto) obtém a hegemonia cultural e implementa a reengenharia da sociedade em toda a sua extensão. “Hegemonia”, nesse projeto, é algo muito mais profundo e extensivo do que a longevidade do PSDB no poder; envolve a politização e ocupação (sequestro, eu diria) da sociedade civil como um todo (engajar a educação, movimentos sociais, igrejas, mídia, imprensa, etc).
Seria isso motivo de preocupação, se a nossa sociedade é, afinal, tão injusta, e se já estamos sob a hegemonia do capital? Penso que sim; não vejo porque lutar contra dois gigantes seria mais fácil do que contra um só. A não ser que você considere um deles bom. Não é o meu caso.
Gramsci descreveu o marxismo como “o historicismo absoluto”. O historicismo é essa ideologia (cujas origens remontam a Giambattista Vico) que absolutiza o processo histórico, e que considera todas as estruturas da sociedade e da cultura como produtos da ação inventiva do homem. Nessa perspectiva a estrutura social é vista como o resultado do processo histórico, carecendo de qualquer “base natural”, “lei natural divina” ou “ordem criacional”. Parece uma boa forma de desnaturalizar as injustiças sociais; o problema é que além de se fundar em uma dicotomia irracional entre base natural e criação cultural, é incompatível com toda a visão cristã da Criação como o resultado da lei e da palavra divina.
Os cristãos acreditam que Deus, por exemplo, estabeleceu a família (por quais meios, não vem ao caso). E ela tem uma ordem dada. Mas para um historicista isso é impossível. A família como a conhecemos é tão somente um produto histórico, e o avanço histórico implica sua mutação permanente. Se você se opõe ao processo histórico, cuja lógica “nós” (os materialistas históricos… os hegelianos e os historicistas em geral) já antecipamos, então você é… reacionário.
De um ponto de vistão Cristão faz todo sentido imaginar que a historicidade seja uma dimensão da cultura, mas não toda ela, e que a mudança progressiva da sociedade não implica em progressismo, nem em “revolução cultural”. Afinal há coisas na cultura que são divinas e estruturais, em todos os campos da vida: família, arte, sociedade, economia, ciência, justiça; e essas coisas tem de ser discernidas e preservadas, e não “revolucionadas” indiscriminadamente.
“Mas isso não naturaliza a injustiça”? Não necessariamente. Pois tudo o que empobrece qualquer campo da vida precisa sim ser corrigido, e quem reconhece a realidade da Queda não negará isso. Às vezes até uma revolução é necessária, para destravar o processo histórico. Mas a “revolução total”, a absorção de todas as normas, instituições, valores e sistemas da cultura em um processo de ascensão rumo ao “paraíso” humanista é uma negação da bondade da Criação e da pecaminosidade humana.
E porque temer a acusação de “ingenuidade” e “naturalização”? O humanismo secular não tem nem mesmo uma pista sobre como correlacionar bem natureza e cultura, desde que decidiu “desnaturalizar” a ordem social para se livrar da visão Cristã de sociedade! Quem tem feito isso melhor é a turma do diálogo entre ciência e religião – com a qual a esquerda iluminada não quer conversa.
O problema do projeto petista não reside em sua luta para erradicar a pobreza e para aumentar a participação popular na democracia brasileira. A “revolução cultural” que as esquerdas seculares desejam é muito mais do que isso, envolvendo uma laicização completa da existência (e não só do “estado”), como o próprio Gramsci pregou. O capitalismo faz isso? Sem dúvida. Marx está certo quando atribui ao Capitalismo um caráter intrinsecamente revolucionário; o capitalismo de consumo ou de “hiperconsumo” (Lipovetski) é escravo da ideologia do progresso e alimenta a cosmovisão historicista. Isso justifica a revolução conscientemente historicista pregada pela esquerda, pilotada por uma hegemonia do “partido-estado”? Não sei como. Essa aula de lógica eu cabulei.
Não me considero injusto nem descaridoso ao considerar o historicismo uma forma idolátrica de “culto ao processo histórico”, pois a idolatria é isso: adorar as coisas que o homem faz. O historicismo conservador estava por trás do fascismo; o historicismo de esquerda, do marxismo-leninismo; o historicismo, associado ao nacionalismo, deu munição à ideologia do Apartheid. Não é flor que se cheire! Herman Dooyeweerd descreve a emergência desse ídolo moderno em “No Crepúsculo do Pensamento Ocidental”, que eu e o Rodolfo traduzimos. Vale conferir (veja AQUI uma resenha publicada na Ultimato).
Não estou, naturalmente, acusando todo eleitor de esquerda de ser idólatra – e muito menos, inocentando o eleitor de direita. Estou, sim, acusando o projeto atual; a ideologia da esquerda latinoamericana. Quanto ao eleitor – e ao leitor – depende; depende de seu centro identitário. Se a posição política o define no âmago do ser, e se o seu compromisso com a revolução é incondicional e relativiza todos os outros compromissos (inclusive com a Igreja e com a confissão de fé); se faz todo sentido para você uma leitura historicista do mundo e da vida, fazendo o cristianismo clássico parecer a você algo tolo e dogmático, então… penso que você deveria considerar seriamente essa possibilidade.
Quanto aos deuses pagãos, eles andam em bando. No caso dos projetos petista e, mais claramente, psolista, uma divindade menor serve à maior: o estado serve ao processo histórico. É seu arauto. O estado deve ser ampliado para que a revolução cultural se complete; e ele é ampliado, neste momento, pela colonização política da sociedade civil. Assim se constitui o “príncipe moderno”. O problema é que o príncipe moderno é um centro absoluto (ainda que não absolutista) para a sociedade como um todo. Mas para o Cristão a sociedade como um todo não pode ter um outro centro, que não Jesus Cristo. A convergência do todo social em torno do “príncipe moderno” é incompatível com a convergência de todas as coisas em torno de Cristo.
A convergência do todo social em torno do “príncipe moderno” é incompatível com a convergência de todas as coisas em torno de Cristo.
Daí eu ter ressuscitado um texto anterior, “A Visão Cristã do Estado”, a partir da leitura de um texto introdutório de política. É que considero o projeto do “Príncipe Moderno” intrinsecamente incompatível com uma visão do Estado que seja compatível com o Cristianismo. O tom é forte, em razão do momento; escrevi a uns anos atrás, no calor de um debate. Embora deixe muitas questões em aberto (várias além da minha competência), acho que é útil para levantar a peteca; mas se você deseja algo realmente rigoroso, por um especialista (e não por este pastor intrometido), recomendo fortemente a leitura de um livro do qual a Associação Kuyper de BH promoveu a publicação: “Estado e Soberania”, de Herman Dooyeweerd. Muito embora esse também seja uma exposição apenas introdutória de sua teoria social.
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A VISÃO CRISTÃ DO ESTADO
“Ai dos que descem ao Egito em busca de socorro e se estribam em cavalos; que confiam em carros, porque são muitos, e em cavaleiros, porque são mui fortes, mas não atentam para o Santo de Israel, nem buscam ao SENHOR! Pois os egípcios são homens e não deuses; os seus cavalos, carne e não espírito. Quando o SENHOR estender a mão, cairão por terra tanto o auxiliador como o ajudado, e ambos juntamente serão consumidos.” (Is 31.1,3)
Há uma perspectiva cristã do Estado? Há quem pense que o cristianismo não tem nada que ver com Estado – nem com política; que a religião não tem nada a ver com política. Não no sentido de que a religião não se mescle com a política, pois isso sim, acontece sempre, mas no sentido de que a religião não deveria se misturar com a política nem se intrometer em coisas de Estado. Alguns mais radicais sustentam, inclusive, que a verdadeira política é incompatível com a religião.
As razões para isso variam; uns pensam que a política poderia macular a pureza da religião; outros entendem que a religião é irracional e corrompe a racionalidade da boa política. De um jeito ou de outro, os dois lados podem até chegar a uma espécie de cessar fogo pragmático: “cada um no seu quadrado”. Na igreja Deus é Jesus; na câmara, é o Estado.
Mas há quem realmente tome essa solução pragmática como princípio teológico/ideológico – que Jesus nos leva para o céu, e o Estado cuida de nós aqui na terra. Portanto o bom cristão deveria ver em um projeto de Estado secular a cura para as mazelas da sociedade.
Mas será isso possível? Que intenções têm o Estado moderno ao propor (ou impor) essa solução à religião? É possível identificar a política cristã com uma aceitação tranquila dessa ordem de coisas?
A política secular: religião em cárcere privado
Tomemos como referência aqui, um filósofo contemporâneo; um francês, (previsivelmente): Christian Delacampagne. Não porque ele seja muito importante no campo (não é), mas porque representa bem o tipo de mentalidade que pretendemos pôr em questão. Podemos nos sentir gratos pela sua formulação sucinta e clara do problema: “como o religioso, na sua ambição de constituir o ‘laço’ social por excelência (esse é o sentido do latim “religio”), pode coexistir com o político, cuja ambição é análoga?”1
Delacampagne tenta lidar seriamente com o problema, perguntando se o poder político “deve”, e se “pode” se separar do poder religioso. A sua resposta à primeira questão é que ele deve se livrar da tutela religiosa, por uma questão de sobrevivência. Porque, segundo ele, a democracia depende, para funcionar, de uma abordagem pragmática das questões; um partido, por exemplo, deve representar os interesses de certo grupo, não uma verdade absoluta, que deva ser imposta a todos. A política seria um jogo, cujas regras excluem a universalidade, mas a religião, por sua natureza, não pode respeitar essas regras. Ela atua a partir de absolutos, não de considerações meramente pragmáticas. Com efeito, “Na medida em que considera o pluralismo desejável, como deve fazer se quiser ser democrático, o poder político deve opor-se à simples ideia de ‘partido religioso’, isto é – pois todas as religiões tendem a formar partidos desse gênero – opor-se à religião em geral.2”
Mas pode, a política, separar-se da religião? Sim, desde que ela delimite com clareza as duas esferas. Para o filósofo, temos uma esfera “privada” e uma esfera “pública”, que ele define como “sociedade civil” ou Estado. O caminho, seguido pelo ocidente, foi o de “dar a extensão mais vasta possível à esfera ‘pública’ (incluindo progressivamente nela a maioria das atividades sociais, de maneira a subtraí-las à influência da religião).”3 O homem seria perfeitamente capaz de atingir a “virtude cívica” necessária para manter todo o espaço público funcionando bem, sem o auxílio da religião, que seria mantida na esfera da consciência individual.
E desde que a religião traz, dentro de si, a tendência de lutar para recuperar a sua “essência”, ou “fundamento”, é imperativo que ela seja mantida em seu devido lugar; do contrário, o fenômeno universal e periódico do fundamentalismo ameaçará a própria base do Estado Moderno, que seria, para Delacampagne, nada menos que “uma verdadeira separação entre o político e o religioso”.4 Contra essas ameaças, ele enuncia seu “princípio regulador”: “[…] que a tolerância mais ampla possível seja dada a todas as confissões – desde que nenhuma delas seja autorizada a intrometer-se no funcionamento das atividades sociais. Em resumo, desde que o Estado continue sendo a única instância capaz de determinar aquilo que, no interior do espaço público, é ou não legítimo.5”
O programa deste filósofo francês é claro como o meio-dia: a repressão da expressão pública da religião, e a garantia de sua manutenção na esfera privada, ou no cárcere privado, para sermos claros também. Mantendo esse “monstro” no cárcere, veremos a liberdade e a política florescerem na esfera pública…
Contra a idolatria política
Somente a admissão tácita de certa concepção totalista de Estado pode fazer alguém ler as palavras de Delacampagne sem perceber que há algo muito problemático em seu argumento. O filósofo supõe, em toda a discussão, uma continuidade sem saltos (quase uma identidade) entre “esfera pública” e “Estado”, “sociedade civil” e “Estado”, o que é perfeitamente falso. O público, e o civil, não é o mesmo que “o político”. Há uma diversidade de esferas além da esfera “privada” e da esfera “política”: há a moralidade, a arte, a economia, a ciência e as relações de sangue. Essas esferas compõem o todo da vida social, mas são anteriores ao Estado, e não devem sua lógica interna ao Estado. A política e o Estado têm responsabilidade por apenas uma dimensão da vida pública, que é a da justiça. A dimensão da arte, por exemplo, é responsabilidade dos artistas e apreciadores da arte, e não do Estado.
Mas, como Delacampagne observou, o Estado Moderno se constituiu por meio de uma expansão na qual reprimiu a influência religiosa “da maioria das atividades sociais”, por meio do controle de cada uma delas, para garantir a sua “laicidade” e eliminar nelas os absolutos religiosos.
É claro que tudo isso já estava embutido na primeira pergunta do autor: quem produz o laço social, por excelência? Pode a religião e a política conviverem, se tem a mesma ambição? Uma pergunta deliciosamente reveladora, ao pôr diante de nós a fantástica pretensão do Estado Moderno de se constituir no laço social por excelência, tragando as formas mais antigas de associação humana em seu divino estômago.
Então há, acima de qualquer dúvida, um conflito entre a política e a religião! Há, na medida em que a política deseja ser, ela mesma, a religião. O Estado Rousseauniano de Delacampagne, totalista e vigilante, cioso de sua secularidade, absoluta e indivisivelmente soberano, não passa de uma divindade concorrente com o Teísmo. A política laica de Delacampagne é mais uma das expressões da religião do humanismo secular, que pretende controlar cientificamente o homem, para garantir a sua liberdade – mesmo que, para tanto, tenha que torná-lo seu escravo.
A responsabilidade atribuída por Delacampagne ao Estado, de determinar sozinho o que é legítimo no espaço público, é absolutamente inaceitável. Deverá o Estado decidir qual o método científico legítimo? E o que é arte? E qual a melhor ética sexual? Ou o que é e o que não é prejudicial à família? Ou se, afinal, precisamos de famílias? Pode-se, naturalmente, objetar que o termo “público”, aqui, tem sentido restrito. Talvez, na mente do autor; mas não em seu argumento. De todo modo, o ponto é que o Estado, e a política, tem uma esfera própria, que é a esfera da justiça. Compete ao Estado a justiça pública, e o que for estritamente necessário à realização dessa justiça; e cabe à política a luta por sua representação e implementação adequada.
Essa forma de pensamento estatista me faz lembrar da saga fantástica “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien. A maldição da Terra Média estava na existência do um anel, que concentrava todo o poder. Os teóricos do Estado absoluto parecem não perceber – e isso fica maravilhosamente claro nas especulações de Delacampagne – que a religião, ironicamente, é uma indispensável salvaguarda à liberdade dos indivíduos e das diferentes esferas da sociedade, na medida em que fere Leviatã no próprio coração, desmascarando as pretensões teológicas do Estado de instaurar-se como Deus e Senhor da sociedade.
Uma política cristã existe, assim, tendo obrigações para com Deus e para com o homem. Para com Deus, é seu dever combater a idolatria política. Li, em certa ocasião, a declaração de um grupo de cristãos (do “MEP” – Movimento Evangélico Progressista), para os quais “a visão cristã do Estado é de que o Estado não deve ser cristão”. Um princípio importante, embora excessivamente concordista com a modernidade. Adverte muito bem contra a forma errada de interagir com o Estado, mas nada diz sobre a forma justa. Tornou-se assim politicamente corretíssimo.
Parodiando essa declaração, no entanto, eu diria que a visão cristã do Estado é, antes de tudo, que o Estado não deve ser Deus. A tarefa teológica da política cristã é a luta contra a idolatria política; é a luta pela reforma do Estado, para que ele se veja redimido de sua fome totalista, e se dedique à sua tarefa divinamente ordenada, respeitando a soberania das outras esferas da sociedade.
a visão cristã do Estado é, antes de tudo, que o Estado não deve ser Deus
Sem dúvida, isso não diz tudo sobre a visão cristã do Estado. A igreja tem uma tarefa teológica, de combater a idolatria política, mas também uma tarefa antropológica, de promover a justiça política; isso significa que uma política cristã precisa, sem dúvida nenhuma, convocar o Estado à prática da justiça. Mas ela não poderá realizar essa tarefa se colocar os carros na frente dos bois: cumprir a segunda tábua da Lei, deixando de lado a primeira. Não: combata-se a idolatria, e então seguir-se-á a justiça.
O Brasil: um país Politicamente idólatra
No universo verde-e-amarelo florescem as condições adequadas a um Estado tirânico. Em 2002 ou 2003, eu tive a oportunidade de assistir a uma entrevista sobre a atitude política brasileira, veiculada pela Globo, do famoso antropólogo brasileiro Roberto da Matta, que à época já estava trabalhando como professor na universidade de Notre Dame, em Indiana. Da Matta, talvez sob o impacto da mudança cultural, fez uma breve comparação entre os norte-americanos e os brasileiros. Segundo ele, há uma nítida diferença de postura entre os dois povos; os americanos não constroem suas esperanças sobre o Estado; a sociedade civil é fortíssima, no sentido de que as pessoas se organizam de modo voluntário e quase automático para resolver seus problemas. O brasileiro, em contrapartida, raciocina em termos paternalistas, esperando que um “poder superior” solucione suas dificuldades sem que ele precise agir diretamente. Como exemplo, ele apontou a temática de certa escola de samba (já não me lembro qual), no carnaval daquele ano. O desfile inteiro apresentou as mazelas sociais do Brasil, denunciando a pobreza, a corrupção, etc; ao final, o último carro alegórico trazia uma imagem enorme de Lula, de braços abertos, representando a esperança para o futuro.
E, enquanto aguarda com expectativa a vinda do seu “Cristo Redentor” político, o brasileiro cruza os seus próprios braços. Quando alguém toma uma atitude e organiza algum projeto social, as pessoas dizem – pessoas do governo, empresários e cidadãos comuns – que a sociedade civil está entrando onde o Estado não está cumprindo o seu papel – ora, ninguém duvida de que o Estado Brasileiro não cumpre o seu papel, mas a tarefa de construir uma sociedade justa é da própria sociedade, não do Estado. O Estado é uma ferramenta do povo, não seu Pai.
Eu diria, bem ao contrário, que precisamos agir rápido, tomar a frente e desenvolver projetos de transformação em todas as áreas da vida brasileira, antes que o Estado tome o controle delas! Os cristãos precisam fazer isso, não só porque a soberania de Deus precisa encontrar expressão em cada esfera da vida brasileira, mas também por que somente assim a nossa obrigação política para com Deus será cumprida: a obrigação de desmascarar a idolatria política e combater as pretensões teológicas do Estado.
Alugar os egípcios?
Noutro dia desses a Norma Braga escreveu um provocativo texto para a Ultimato, intitulado Por que não sou de esquerda. Gerou muitas respostas indignadas. Bem, eu discordo de muita coisa que a Norma costuma dizer em suas defesas do conservadorismo. As razões são compreensíveis para quem já leu algo do que publicamos sobre cristianismo e sociedade aqui na Ultimato.
Mas há um ponto em que a Norma está certíssima, e sei que vou exasperar meus amigos socialistas, do tipo que se sente atraído de um jeito ou de outro pelos estatismos: sim, o Estado não é o Messias. Sim, o capitalismo é idólatra. Não, não podemos alugar os egípcios para nos livrar dos assírios. Chamar o Estado para nos salvar do mercado também é idolatria. Pura e simples idolatria.
É claro que o Estado deve zelar pela justiça pública. É claro que deve intervir quando o sistema econômico se torna injusto. Mas o Estado não deve deter em suas mãos o projeto nacional. Porque o Estado não é o país; o Estado não é a sociedade; sua soberania é limitada e não vem do povo, mas de Deus. E o mais essencial na visão cristã do Estado é exatamente que o Estado não é Deus, nem deve cobiçar o seu trono.
Vamos esperar em Jesus Cristo. E que ele nos salve dos assírios, dos egípcios e dos israelitas que confiam na cavalaria de Faraó.
Notas
1. Delacampagne, Christian, A Filosofia Política Hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 31.
2. Ibid, p. 34.
3. Ibid, p. 35.
4. Ibid, p. 39.
5. Ibid, p. 41.
Oi, Guilherme!
Minha dúvida é em relação a esse pedaço do teu texto:
“ora, ninguém duvida de que o Estado Brasileiro não cumpre o seu papel, mas a tarefa de construir uma sociedade justa é da própria sociedade, não do Estado. O Estado é uma ferramenta do povo, não seu Pai.”
No caso, qual é o papel do Estado? É ruim cobrar dele soluções? Não é, de certa forma, perigoso confiar totalmente num terceiro setor para atender as necessidades de toda a sociedade? Pra você, como funcionaria essa simbiose entre a sociedade e o Estado?
Um abraço!
Caríssimo Guilherme, discordo dos seus argumentos e acho a sua posição extremamente ingênua.Da Matta não é uma boa referência, visto que há muito ele não faz pesquisa de campo no Brasil. Sou evangélico, mas penso que por ser influenciado por autores como Philip Clayton e Nancey Murphy (cristãos progressistas), que discutem muito bem a relação entre Ciência e Fé Cristã. Abracei a fé cristã novamente graças a esses intelectuais e ao Michael Ruse, filósofo ateu que demonstrou a compatibilidade entre o darwinismo e o cristianismo. Sou de uma esquerda que pensa sim a relação entre ciência e fé, estudioso de trabalho interessante de Barbour e de Fraser Watts, por exemplo. Uma política cristã que não afirme que Mamon não é Deus não é digna de reivindicar o seguimento de jesus.Você merece elogios (que de público faço) pela maneira educada como argumenta.Parabéns pelo equilíbrio.
Oi Denis,
bem, citei Da Matta só como ilustração do meu ponto; a linha principal do argumento não é esta. E não vi vc dizer o que exatamente estaria errado com a minha linha de argumento. Sobre meus pontos principais: crítica ao historicismo, ao projeto Gramsciano do “príncipe moderno”, ao revolucionismo cultural, ao estatismo, a defesa (implícita) do pluralismo social, da noção de justiça complexa (Walzer)… Acho que vc é que está sendo ingênuo sobre a ausência de senso crítico no artigo; onde exatamente está a falha?
Quando aos teóricos que vc citou, não entendi o ponto. O progressismo dos autores que vc citou não implica alinhamento com o marxismo cultural, pelo que sei. Mas como vc, tenho me envolvido bastante com o diálogo avançado de ciência e religião. Não sei se vc pode participar, mas organizamos no mês passado um evento em São Paulo em parceria com o faraday institute for science and religion (FISR), um centro baseado na universidade de Cambridge.
Se você tem uma solução interessante para correlacionar natureza e cultura, certamente o faz por ser Cristão; quanto ao historicismo que domina o pensamento de esquerda, penso que ele é incompatível com uma visão sadia das hard-sciences, porque é inerentemente anti-realista e ideologizante. De todo modo, como eu disse, esse ponto é marginal no argumento e levantá-lo não vai ao cerne da questão levantada no artigo.
abraços!
Caríssimo Guilherme,
obriga do pela resposta bastante gentil e esclarecedora. Esclarecendo:
1) O PT não é um partido socialista. O lulismo (ver o livro de André Singer “Os sentidos do lulismo”). O Psol é bastante sectário e não representa a expressão de uma esquerda renovada);
2) Recomendo a leitura da obra dos sociólogos Jessé de Souza (“A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica”, “A invisibilidade da desigualdade brasileira”, “Patologias da modernidade” “A ralé brasileira: quem é e como vive” – livros – e A ÉTICA PROTESTANTE E A IDEOLOGIA DO ATRASO BRASILEIRO, artigo.) e José de Sousa Martins ( “O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta”; “A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais”, “A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala”. Minha crítica aqui é em relação à sua afirmação de que o Brasil tem uma tendência à tirania. Sua leitura da desconsidera que o Estado brasileiro é utilizado por corporações econômicas nacionais e multinacionais para imporem suas políticas; mesmo um anarquista como Noah Chomsky reconhece o perigo para a liberdade do cidadão comum das grandes corporações e a necessidade (tática) da presença do Estado para limitar o poder delas;
3) o mais recente livro do Philip Clayton, “Organic Marxism – An alternative to capitalism and ecological catastrophe” utiliza as mais recentes descobertas das ciências naturais para fazer uma interessante e provocadora releitura do marxismo, o que provavelmente você não acha relevante para um cristão (para mim, o marxismo é, sim, muito relevante para pensar o mundo contemporâneo, mas concordo com Clayton que temos que ir “com Marx para além de Marx;
4) Sou um socioambientalista e minhas identificações partidárias estão com o Partido Verde e com a Rede; um cristão de esquerda não pode alimentar a ilusão de construir um suposto “partido cristão”; precisa se filiar a um partido secular. Eis um desafio que enfrento hoje;
5) Sou anglicano e muito influenciado pela teologia do processo de John Cobb Jr. Também fui influenciado por Moltmann (principalmente pelos livros “Deus Crucificado” e “Deus na Criação”.Isso explica minhas diferenças de base em relação a você;
Um abraço com desejo de continuarmos esse diálogo.
Olá Denis!
Então cara… suas colocações são muito interessantes.
1) Quanto ao PT, tenho que discordar (embora não totalmente). O caso é que me parece muito complicado falarmos em ortodoxias como forma de classificar partidos. Há uma ala convictamente socialista dentro do partido, ainda que ele acomode muitas outras coisas hoje. Mesmo o lulopetismo não pode ser considerado hegemônico; além disso a relação do partido com suas raízes ideológicas é dinâmica; partidos de esquerda às vezes se afastam das raízes e às vezes retornam. O máximo que eu diria é que o PT não “está” socialista neste momento. Ou melhor, não esteve, e está discutindo isso exatamente agora.
2) Ah sim, entendo o seu ponto! Bem, acho que posso ter me expressado mal. Penso que o Brasil é suceptível ao populismo e ao autoritarismo; um exemplo disso é o próprio modo como as mega-igrejas neopentecostais funcionam. O Edir é um fenômeno semelhante ao Lula, do ponto de vista da “razão populista”; mas isso não é o mesmo que “tirania”, sem dúvida. Mas as coisas sempre podem piorar.
Minha leitura não desconsidera o poder do grande capital! Na verdade nem tratei do assunto 😀 ; apenas recuso a convocação do Estado como solução para o embate com o capital. Penso que o Estado deve empoderar a sociedade civil, e não substituí-la. São soluções qualitativamente distintas; quanto a isso, estou com Bob Goudzwaard. Acho, de novo, que vc não chegou a interagir como meu ponto principal: a sociedade civil, atropelada tanto pelo Estado quanto pelo Capital.
3) Ora, muito interessante. Eu realmente desconhecia essa pegada do Clayton. Mas é que conhecia apenas seu trabalho sobre emergência e sobre panenteísmo (do que discordo, por sinal). Quanto a Marx, trata-se exatamente do problema que levantei: o historicismo. Paradigmas historicistas são, na minha opinião, irreconciliáveis, com a ciência moderna (ao menos do ponto de vista de sua justificação teórica) e com a teologia cristã clássica (por eliminar qualquer noção de “ordem criacional”). A propósito, vc conhece a obra de Herman Dooyeweerd a esse respeito?
4) Minhas identificações estão com a Rede também, mas de forma insuficiente. Não penso que ela responda a todos os desafios que o momento exige. Escrevi um breve artigo sobre minha posição política a esse respeito pouco antes deste aqui “Sobre as Intoxicações Políticas”. Mas quanto a um “partido Cristão”, não considero isso ilusório. A Europa teve boas experiências com a democracia Cristã, tanto em contextos católicos quanto em protestantes. Um exemplo que conheço de perto é a Christen Unie da Holanda; conheci pessoalmente três senadores do partido, todos intelectuais cristãos muito criativos; o atual (Roel Kuiper) foi inclusive obreiro de L’Abri. Pelo que pude constatar, a abordagem Cristã dá ao partido uma perspectiva singular para diversos problemas, irredutível à esquerda e à direita secular. Por sinal, no momento eles tendem a ser conservadores quanto à sociedade civil e centro-esquerda na política econômica, além de ter uma atenção para com a sustentabilidade. Penso que isso seria melhor do que viver sempre a reboque.
Como introdução a esse tipo de perspectiva, eu recomendaria muito a leitura do novo livro de David Koyzis, “Visões e Ilusões Políticas”. É um volume de educação política, que apenas introduz a perspectiva neocalvinista, mas acho que seria bom se aproximar dela – do contrário, permanece o risco de subsumir a visão neocalvinista em alguma versão pop de “direita cristã republicana” ou algo do gênero.
5) Ok, de fato estamos trabalhando com paradigmas muito diferentes. Minha estrada vai por Bavinck, Dooyeweerd e a Amsterdam School, com elementos de Thomas Torrance e do católico Henri de Lubac. Entre os anglicanos, além dos evangelicais Alister McGrath e N.T. Wright, há um que anda me intrigando já há uns anos: John Milbank!
abraços!
Caro Guilherme,
Obrigado pela sua resposta. Este diálogo tem me ajudado a pensar melhor sobre algumas questões. Tenho alguns pontos para reflexão:
1) Acho que uma questão crucial seria: é possível para um cristão conciliar seu compromisso com seu testemunho e discipulado de Jesus Cristo com uma forma de Socialismo Democrático? Eu acredito que sim;
2) Concordo contigo a respeito da “razão populista”. Creio que é preciso um grande esforço para superar essa mentalidade. Acredito que podemos aprender dos nossos indígenas. No livro “Sociedade contra Estado”, Clastres nos mostra como nossas sociedades originárias se negavam a constituir um poder central limitando o poder dos chefes. O antropólogo Marcos lama assim resume o pensamento do etnólogo francês:
Vimos como há um sentido em que, modificado o argumento de Clastres, caberia dizer que a sociedade primitiva teria Estado, ainda que um Estado neutralizado, englobado. Já segundo Clastres, não apenas haveria na sociedade primitiva uma “chefia sem autoridade” (Clastres 2003a:47) — com prestígio, mas sem poder e capacidades coercitivas — mas nela o mal do “Estado” seria cortado pela raiz: não haveria continuidade entre o chefe indígena, que estaria a serviço da “sociedade”, e o “Estado”; tratar-se-ia em cada caso de “dois tipos de sociedade absolutamente irredutíveis um ao outro” (Clastres 2003a:217). O “Estado” seria assim ardilosamente abortado pelos primitivos antes de nascer, exatamente na “região do poder”. É evidente que uma dicotomia e uma descontinuidade se produzem: com e sem “Estado”. Por outro lado, “sob a falta, as funções do Estado ausente seriam efetuadas pela estrutura social” (Lima e Goldman 2003:14). Mas neste caso, assim como na suposição da exterioridade do poder, “Estado” e poder não deixariam de estar presentes — nas figuras, respectivamente, de suas “funções” e região — ainda que, como eu dizia, sem se manifestarem coercitivamente. Clastres fala não só em sociedade contra o Estado, mas também em profetas e karai contra a “ascenção dos chefes”, liderando sociedades guaranis em migrações religiosas que seriam “a recusa da via em que a chefia engajava a sociedade, a recusa do poder político isolado, a recusa do Estado” (Clastres 2003a:232). Talvez a revolta dos karai fosse contra o surgimento de algum sistema de tributos desenvolvido a partir de intensificação de trocas em torno da figura dos chefes.
3) Desconheço a obra de Herman Dooyeweerd, mas vou procurar conhecê-la. minha questão é : o Cristianismo não traz uma revelação que se manifesta progressivamente na história? “Eu Sou o Alfa e o Ômega”, declara o Senhor Deus, “Aquele que é, que era e que há de vir, o Todo-Poderoso.” Penso que não entendemos todas as consequências de uma perspectiva evolutiva. Penso aqui na Teoria Geral da Evolução de Ervin Laszlo e suas implicações para uma superação da dicotomia natureza versus sociedade humana. O padre jesuíta Juan Luis Segundo afirmou que nos sinópticos havia uma chave política para a apresentação do Evangelho( O Reino de Deus), uma chave antropológica nos escritos paulinos ( velho homem – Adão versus novo homem – Jesus). Penso que o Evangelho segundo São João nos apresenta uma chave cosmológica. Fraser Watts escreveu sobre a necessidade da Teologia dialogar com a Cosmologia e com a Psicologia. Eu sou psicólogo e percebo a necessidade de um diálogo entre a Psicologia e a Cosmologia. Qual o lugar do homem no universo? o cosmólogo Joel Primack argumenta que, em certo sentido, estamos no centro do universo, pois damos a ele sentido e podemos compreendê-lo. Mais somos fisicamente insignificantes.Nossa finitude mostra nossa total dependência de Deus. O universo é totalmente contingente e destinada a perecer… O fim da história adâmica não é o fim da humanidade. Jesus inaugura uma “mutação” provocada por Deus que nos conduzirá ao surgimento de uma nova humanidade, que substituirá a espécie homo sapiens sapiens. A história nos revelará Deus como Emanuel, como Verbo Encarnado, com o homem para além do homem, como o sobre-homem de Nietszche… Deus estava em Cristo reconciliando consigo o Cosmos! Vou postar mais comentários em breve. muito obrigado pela conversa e um grande abraço!
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