O meu corpo sou eu, ou não sou eu, afinal de contas?
eucorpo

Os espíritas e alguns irmãos neopentecostais dizem que somos espíritos que habitam em corpos — mas isso não pode ser verdade. Afinal, Deus disse a Adão: “Tu és pó”. Então o corpo também sou eu. Estranhamente, no entanto, o apóstolo Paulo, que não era espírita nem neopentecostal, dizia que o seu corpo era a sua “casa”.

Ora, se eu sou meu corpo, mas também posso tratá-lo como a minha casa, então há algum tipo de complexidade em mim; talvez, haja uma dualidade. Sou capaz de não apenas ter um eu, mas saber que tenho um eu, e até mesmo “dialogar” comigo mesmo. E mais: posso me relacionar com o meu corpo (que também sou eu) a ponto de tratá-lo como “eu” e “ele” ao mesmo tempo, como Paulo faz em Romanos capítulo 7, dizendo coisas como “em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum”, e logo depois que “o querer o bem está em mim”.

Bem, acredito que essa dualidade tem tudo a ver com a questão da impureza sexual. No artigo anterior falei sobre a necessidade do amor ao próximo para lidar com a impureza sexual; agora vou tocar em outro ponto — o amor do homem por seu próprio corpo em seu caráter sexual, que vou chamar de “corpo sexual”. Porém, não quero tratar do assunto do ponto de vista tipicamente psíquico, ligado à questão da autoestima; é que, de algum modo, sinto que a nossa visão sobre a relação entre a personalidade e o corpo tem um impacto estruturante em nossa ética sexual. Certo, parece uma afirmação trivial. Mas minha experiência me diz que a trivialidade anestesia o nosso senso crítico.

Passemos então sem demora à discussão do assunto: como é essa relação entre mim e o meu corpo?

Dentro e fora

Vamos assumir que de um jeito ou de outro meu espírito e meu corpo sejam o mesmo “eu”, a “alma vivente”, feita de pó da terra e espírito de vida. Como poderíamos representar tal coisa? Talvez possamos dizer que somos como um tecido dobrado. Pela dobra o tecido se encontra consigo mesmo, uma ponta com a outra; e assim, dobrados, podemos olhar nossas faces no espelho, e esse fato curioso acontece: o olho atenta para a face, e vê a alma nela; e a alma olha pelos olhos, e sabe que aquela face é sua.

Difícil? Talvez seja melhor usar uma feliz expressão de Paulo: o “homem interior” e o “homem exterior”. Essa é, sem dúvida, uma boa imagem da coisa toda. Tenho um “dentro” e um “fora”; uma “superfície” e uma “profundidade”. Na profundidade está o meu centro — o coração; e na superfície, torna-se patente o que o coração é. Sim, Paulo não inventou isso; a ideia é muito mais antiga: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). Na antropologia bíblica, o homem tem um centro; um “self” no qual tudo o que ele é está concentrado. Poderíamos dizer que o corpo é o coração patente, e o coração o corpo latente.

Vou estender um bocadinho a metáfora e apontar algo que, creio, ela implica: que há uma espécie de “distância” natural entre “eu” e “eu”; mais precisamente, entre a minha autoconsciência, e o meu corpo. A distância entre o interior e o exterior faz com que haja um “atraso” entre os dois. Às vezes o interior é de um jeito, e o exterior de outro. A mudança de um não implica uma resposta imediata do outro. E podemos até colocar um contra o outro, pasmem!

Ora, os exemplos disso não faltam. O hipócrita é de um jeito por dentro, e de outro por fora. O homem vê o exterior, mas o Senhor vê o coração (1Sm 16.7). Tem gente feia por dentro e bonita por fora, feia por fora e bonita por dentro. “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero esse faço”, disse o velho rabi. Já me imaginei tocando piano de um jeito, mas constatei recentemente que minhas mãos não me obedecem. Quero chorar, mas dou um sorriso para despistar. E, se a minha “casa” se desfizer, há outra para mim, “reservada nos céus” (2Co 5.1).

Em princípio, esse “atraso” é bom. Ele faz com que, de certo modo, possamos ser e não ser ao mesmo tempo. É algo como a diferença de potencial ou tensão entre dos fios elétricos; justamente essa diferença faz surgir a corrente elétrica. A tensão entre o homem interior e o homem exterior faz a gente ter “dinâmica”. Precisamos nos tornar conscientes do que somos e exercitar a vontade para harmonizar o dentro e o fora. Desse modo, a consistência deixa de ser algo dado, para ser objeto de conquista. Será preciso escolher ser consistente — escolher ser uma pessoa integrada.

Haverá um modo mais rigoroso de descrever essa diferença? Em filosofia usamos bastante a distinção entre “sujeito” e “objeto”. O sujeito é aquele ao qual as coisas se referem; é aquele que pensa e toma o mundo como o seu objeto. Os objetos são relativos ao sujeito, aquilo que é pensado, vivido, descrito, e que é possuído pelo sujeito em seu pensamento, o que se apresenta ao sujeito, e que ele pode conquistar e dominar por palavras e ações. Isso inclui coisas, ideias, eventos, plantas, animais… e até seres humanos. Os corpos das pessoas aparecem diante de nós como realidades “objetivas”; podemos até trata-los como objetos (numa cirurgia; ao calcular o peso em um elevador; ao contar o número de passageiros em um veículo).

Na verdade pessoas são sujeitos, e isso tem implicações éticas: posso dizer que uma outra pessoa é o “objeto” da minha atenção, mas sei que ela não está aprisionada no mundo dos objetos, porque ela é também uma pessoa, com autoconsciência e interioridade. Em outras palavras: as pessoas estão no universo do “tu”, e não do “isso”. Usamos o “isso” para falar do mundo dos objetos, e o “tu” para o mundo dos sujeitos. E a forma de conhecer cada universo é diferente; o “isso” é conhecido pelo uso; mas o “tu” é conhecido pela comunhão.

Como isso se aplica ao caso do corpo? Curiosamente o corpo é experimentado de forma dupla. Quando recebemos um abraço ou um aperto de mão, sentimos que isso se dirigia a nós, ao self. Mas ao mesmo tempo, distinguimos o nosso self do nosso corpo – trata-se da “distância” à qual nos referimos há pouco. Creio que isso acontece porque, muito embora tenhamos um tipo de conhecimento “direto” (ou imediato) de nosso eu, através da autorreflexão, temos um conhecimento “indireto” (ou mediato) de nós mesmos por meio do corpo. Isso significa que o seu eu aparece como um objeto diante de você mesmo por meio do corpo. Ou, colocando em outros termos, o seu corpo é uma oportunidade de se relacionar com você mesmo como se você fosse um objeto. Por isso, a sua relação com o seu corpo não pode ser separada de sua relação com você mesmo.

Assim, a diferença entre o “dentro” e o “fora” é a possibilidade de dar uma expressão concreta à relação que temos conosco. De um modo misterioso a relação que temos com a nossa alma se expressa na relação que temos com o nosso corpo – seja ela desprezo, o amor, desespero ou segurança, perfeccionismo ou aceitação.

Dentro sem fora e fora sem dentro?

E aqui, como sempre, temos que falar do pecado. Por causa da queda do homem e de seu afastamento de Deus criou-se, mais do que um descompasso, uma ruptura entre o dentro e o fora. A ponto de “o pó voltar para a terra, e o espírito voltar para Deus, que o deu”. Cada homem, por causa do pecado, vive morrendo; vive o processo de ser lentamente rasgado, até que a corrente “elétrica” cesse dentro de si. E a característica dessa ruptura final é a perda do corpo, a sua superfície. Isso é o que significa a morte: não há mais imagem; não há mais uma face com músculos para mostrar o sorriso da alma.

Claramente, se nos damos conta dessa distância, compreenderemos que a morte é o que se mostra no alargamento dessa distância. É mortal tudo aquilo que me impede de ser consistente, de manter a conexão entre o interno e o externo. Todo conceito, decisão ou processo que produz a inconsistência é mortal; tudo o que promove a independência da alma em relação ao corpo, ou do corpo em relação à alma, é mortal.

Mortal é a filosofia de Descartes. Pois ele estabeleceu a razão como critério absoluto da verdade, e por isso duvidou de tudo o que não pudesse demonstrar racionalmente. Por isso duvidou até da existência do seu corpo, a “res extensa”, e identificou o seu ego com o pensamento, a “res cogitans”: “Penso, logo existo”. Daí pra frente, demonstrar como a alma racional se relaciona com o corpo virou um problemão. O pensamento ocidental permaneceu oscilando entre dois extremos: diminuir o corpo material (idealismo), ou negar a existência da alma (empirismo Humeano), dissolvendo-a no corpo.

A última opção anda bem popular hoje em dia. Mortal é o pensamento de Daniel Dennett, que considera a liberdade uma ilusão criada pelo cérebro, o qual não passaria de uma máquina bioquímica. Mortal é o pensamento do grande Claude Levi-Strauss, que aguardava ansiosamente pela aniquilação definitiva das ideias de “eu”, “self” ou “alma”, a partir de uma espécie de materialismo racionalista (segundo o professor Ivan Domingues). Deve ter sido uma decepção para ele descobrir-se tendo um eu sem corpo — o que é a sua condição atual desde o fim de outubro de 2011.

Assim, dentro da filosofia, se traça um suicídio do humano, negando-se a distinção entre o dentro e o fora, ou esticando-se a conexão até a ruptura — tudo sempre em nome de uma superação do dualismo. Mas não se pode confundir dualidade com dualismo. Mortal é a destruição da dualidade.

Da filosofia para o sexo

Antes que o leitor desista de esperar, vou dizer logo o que isso tudo tem que ver com sexo, e com impureza sexual. Alguns leitores mais atentos provavelmente já pegaram a pista. É que há uma relação interna entre a nossa ética sexual contemporânea e a ruptura da dualidade fora/dentro, consciência/corpo.

O que os modernos pensam a respeito do homem é que ele deve ser livre. É preciso promover a liberdade humana nas artes, no pensamento, na política, e na sexualidade. E a liberdade significa a indeterminação, ou o arbítrio. Fala-se às vezes, devo conceder, em “autonomia” no sentido de que o homem deve “dar a si mesmo a lei universal”; mas essa ideia de autonomia, inventada por Kant, perdeu a legitimidade com a crise de fundamentação da modernidade, e prevalece cada vez mais a versão Nietzschiana de autonomia, segundo a qual a vontade de poder e a decisão individual criam “ex nihilo” a lei que o homem “capaz de prometer” dará a si mesmo. A “liberdade” no mundo pós-moderno é a liberdade Nietzschiana.

Converteu-se, portanto, a liberdade, em liberdade para comprar e consumir produtos, liberdade para não ter posicionamentos políticos definidos, liberdade de criar a própria religião, ou de pertencer a todas e a nenhuma, de não ser de ninguém, para ser de todo mundo e todo mundo ser meu também. Campeãs nisso são as empresas de telefonia, garantindo que, se comprarmos seus produtos, teremos muito mais liberdade e viveremos num mundo “sem fronteiras”.

Com a necessidade de abrir espaços para o exercício da liberdade arbitrária, o corpo humano tornou-se a vítima imediata. Pois o corpo é o “objeto” que está mais próximo do eu. O corpo é o eu, mas o eu aparecendo de forma objetiva para mim, o eu revestido de objetividade e por isso vulnerável. E a forma sexual do corpo é constitutiva dessa expressão objetiva do meu eu. Desde a infância aprendo, observando e sentido o meu corpo, que meu eu tem uma forma sexual.

Instrumentalizar o corpo sexual para aumentar a liberdade de escolha interessa ao eu, quando este anseia por livrar-se de limitações rígidas, e interessa ao sistema, que precisa ampliar seus mercados. É claro que uma ética sexual que limite a exploração do prazer por meio do corpo constituirá um sério obstáculo ao crescimento da liberdade humana, desse ponto de vista libertário. A ética sexual cristã faz-se assim um problema político.

E foi assim que teve início a grilagem sexual e o loteamento comercial do corpo, da filosofia moderna com seu incontrolável impulso libertário-prometeico, para a dissolução de todos os valores, hábitos e estruturas sociais que impliquem o cerceamento da liberdade do prazer na sociedade contemporânea.

Daí o corpo vai virando esse campo de experimentação da liberdade: ele deve ser pintado, tatuado, cirurgicamente modificado; perfurado, dobrado, bombado, e cyborgificado; sua cor pode ser modificada, e todos os seus buracos deveriam ser experimentados, mas sempre ao gosto do cliente; pode-se até cuidar bem dele, mas como se cuida muito bem de um automóvel sem considera-lo parte da família; se minha alma tem um sexo diferente, então o corpo será trocado; se ainda não pode ser trocado, será mutilado; se está grávido de um feto indesejado, será libertado; pois há que se preservar o absoluto e arbitrário domínio do indivíduo sobre o seu próprio corpo. Como se o indivíduo não estivesse escondido no corpo de seu “usuário”.

Civilizar a desonra

Ora, muitos dirão que isso é uma apropriação mais madura do corpo; que as pessoas hoje em dia têm mais liberdade para se expressar com o corpo e possuí-lo. Eu digo que não. Só um espírito vencido aceitaria explicação tão sonsa.

Pois é claro como o dia que todos esses usos do corpo sexual são instrumentais. São idênticos, no conjunto, aos usos que fazemos da natureza, derrubando florestas naturais e plantando capim ou reflorestando com eucaliptos; ou queimando combustíveis fósseis em excesso, destruindo nascentes e emporcalhando os litorais. Façamos um exercício de autocrítica: a sociedade autoconsciente pode ser comparada a uma “alma”, incorporada em um “corpo” biofísico, que é a biosfera. Ora, não é verdade que, para aumentar a liberdade humana (de consumir produtos, basicamente), estamos estuprando o meio ambiente? Não há uma relação interna entre o impulso libertário da cultura moderna e a violência?

Pois então compreendamos, e vou dizer sem meias palavras, o que está por trás da presente cultura da “pegação”, da liberação sexual, da criminalização da crítica ao comportamento homossexual, do aborto, do poliamorismo, e de coisas ainda mais estranhas: nada menos que o estupro do corpo, perpetrado pelo próprio “self”. A negação da subjetividade do corpo sexual, e sua redução ao objeto. A violência do eu externo pelo eu interno.

O estupro é a violência de fonte biológica; a violência para assegurar o prazer, o sentido de domínio, e a propagação da carga genética. No mundo humano, o estupro literal é a manifestação sexual de uma pulsão de violência que se manifesta em outros níveis, como no do Estado totalitário, da intolerância religiosa, da guerra (se você duvida, preste atenção nesses grafites de banheiros universitários: porque a violência e o insulto aparecem associados ao sexo?). É claro que a sociedade moderna precisaria canalizar essas forças de algum modo — e isso é o que está por trás do discurso sobre “aumento da liberdade” dos modernos. O fato é que a forma mais eficiente de manipulação técnica do desejo humano encontrada pelos modernos foi a cultura do consumo, da qual a liberação sexual é uma parte essencial.

Não seria aceitável, no entanto, que as pessoas se estuprassem mutuamente com uso direto de violência. Seria preciso, para canalizar os impulsos de prazer e violência dos indivíduos, facilitar o acesso ao corpo (a natureza a ser explorada e consumida) e modificar a vontade moral dos indivíduos. Enfim: não dissolver o desejo do estupro como dominação instrumental (de usar sexualmente o outro), mas dissolver a resistência do indivíduo à instrumentalização do seu corpo. Em outras palavras, seria necessário civilizar essa instrumentalização do corpo, civilizar o estupro. Mas como é que isso se pode implementar?

É aqui que chegamos ao verdadeiro coração do problema. Ora, se estupro o meu corpo sexual, não posso ter uma relação demasiado íntima com ele. Não posso tratá-lo como o meu eu, ou como parte do meu eu, se vou explorá-lo indiscriminadamente. A solução é tratar o próprio corpo como expressão apenas contingente do eu, desonrando-o. O corpo se torna objeto puro para uma vontade narcisista e arbitrária. Assim o indivíduo poderá dar livremente o seu corpo, sem entregar a sua alma juntamente com ele. Homens e mulheres podem oferecer seus corpos, instrumentalizá-los, e utilizá-los como quiserem; não há mais perversão sexual, pois não se pode julgar o caráter de alguém pela forma como ele faz sexo; pois o caráter do indivíduo — acredita-se — nada tem que ver com o seu uso do corpo. Enfim: o corpo não sou eu; o corpo é “meu”. A desonra é, assim, a morte espiritual; é a entrega do corpo ao fogo.

Não que o corpo seja “literalmente” destruído pelo fogo. O cuidado com o corpo pode até mesmo aumentar, como acontece de fato. Mas isso não é feito por amor ao corpo, e sim para otimizá-lo com fins ainda narcisistas (como quando o tratamento ético dos funcionários é justificado em termos econômicos para a empresa). Daí que até mesmo a saúde corporal é instrumentalizada pela moldagem do corpo com vistas ao aumento do poder sexual, e o aumento do poder sexual se dá para satisfazer aos anseios da alma, muito mais do que às necessidades do corpo. Pois de fato as Escrituras não ligam a concupiscência ao corpo, mas ao coração!

Note-se a relação e distinção entre o estupro e a desonra: esta última tem a ver com o símbolo. Desonra-se uma nação pisando-se a sua bandeira, que é o seu símbolo. Desonra-se igualmente a pessoa (o interno) banalizando o seu símbolo visível (o externo).

Assim como, para abusar da natureza, o homem moderno precisou construir uma imagem da cultura como algo “fora” da natureza, como se ele estivesse muito além dela, o libertinismo sexual se torna psicologicamente viável pelo desligamento moral entre eu e corpo. Esse desligamento é evidente no discurso de que o uso sexual dado ao corpo não é importante, desde que traga prazer e aumente a liberdade do indivíduo. Tenta-se uma evacuação do corpo de qualquer significado moral ou espiritual.

Ocorre, no entanto, que tal separação ou evacuação não pode ser feita. Há um atraso entre interno e externo, mas não uma separação absoluta. A corporeidade é um teste moral: o corpo parece ser só mais um objeto para o sujeito, mas na verdade é ele mesmo quem se oculta no corpo. Por isso, em última instância, aquilo que o homem faz com o seu corpo, faz a si mesmo. O corpo é o símbolo visível do coração. Portanto, a separação psicológica feita pelo homem ao usar seu corpo como instrumento externo de prazer é uma separação ilusória, completamente falsa. O atraso entre o interno e o externo torna possível que o interno estupre a si mesmo, como se não fosse a si mesmo, mas a um outro. Mas o outro (o corpo) ainda é o si mesmo. Ao estuprar o seu corpo, o homem estupra a si mesmo. Ao desonrar o seu corpo, o homem não pode amar a si mesmo.

Além disso, na medida em que estupra a si mesmo o indivíduo não tem mais porque resistir ao estupro do outro; se um corpo humano é instrumentalizado, todos o são igualmente por um princípio de reciprocidade (exatamente da mesma forma como o amor a mim mesmo e o amor ao próximo estão unidos). A afirmação da liberdade humana passa a equivaler assim à instrumentalização generalizada do corpo, com o desenvolvimento de uma nova ética sexual pública (sim, exatamente como o faz atualmente o Estado brasileiro), que pretende plausibilizar a distinção entre pessoa e seu corpo sexual policiando questionamentos públicos dessa distinção (do que a PLC 122/06 é apenas um exemplo). A ética sexual secular é a ética da desonra.

Impureza sexual e desonra na Bíblia

Ora, o que descrevemos acima é o que Paulo diz em Romanos 1.24-27: que os homens rejeitaram o conhecimento de Deus e foram por isso entregues às concupiscências do seu coração, “para desonrarem os seus corpos entre si”, mudando o modo de suas relações íntimas, praticando coisas contra a natureza etc. Não é por acaso que o apóstolo associa a concupiscência à desonra do próprio corpo e do corpo do outro. É que a concupiscência leva ao desamor; cessa o amor por mim mesmo e pelo meu próximo, e o fim do amor aparece em nossa relação com o símbolo da alma, que é o corpo. A impureza sexual traz dentro de si o desprezo do indivíduo por si mesmo e pelo seu próximo.

É Paulo quem diz de novo: “Fugi da impureza. Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo” (1Co 6.18).

Graças a Deus por um verso tão claro: a impureza sexual é o pecado do homem contra si mesmo; é a contradição, a desonra do próprio corpo sexual, que deixa de ser tratado como o santuário de Deus, destinado à ressurreição dos mortos. Pois a impureza trata o corpo como um instrumento descartável, como alguns crentes helenistas faziam: “Os alimentos são para o estômago, e o estômago para os alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aquele”. Em outras palavras, “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Não há futuro para o corpo; ele é só uma ferramenta temporária. Por isso alguns dos Coríntios até perderam a fé na ressurreição (1Co 15). Por trás da desonra do corpo está o desespero.

Paulo prossegue, afirmando que aquele que se une à prostituta é uma só carne com ela, e o que se une ao Senhor é um espírito com ele; e que não podemos tornar os membros de Cristo membros de uma meretriz. Ora, tudo isso implica que o corpo não pode ser concebido à parte do eu. O seu destino é o mesmo do eu; as suas relações são as mesmas do eu. Se dou meu corpo à meretriz, dei-lhe também minha alma; se dou a Cristo a minha alma, dei-lhe também o meu corpo. Para Paulo, o hebreu, era inconcebível imaginar que o corpo pudesse ser empregado de qualquer jeito, impunemente, segundo o delírio dos gnósticos. Amar a Deus, amar ao próximo, amar a si — tudo isso implica honrar o corpo: “Que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra, não com o desejo de lascívia, como os gentios que não conhecem a Deus; e que, nesta matéria, ninguém ofenda nem defraude a seu irmão; porque o Senhor, contra todas estas coisas, como antes vos avisamos e testificamos claramente, é o vingador” (1Ts 4.4-6).

O ensino não permanece consistente? O corpo deve ser honrado; ceder à lascívia é desonra; usar o corpo do outro é desonrá-lo, defraudá-lo reduzindo seu valor. Desonrar o corpo sexual é matar e morrer; é tentar separar o interno e o externo, mas destruir ambos.

Da desonra à consistência através da esperança

O que me impressiona é que o remédio de Paulo para a impureza-desonra do corpo seja escatológico. Ele poderia ter prescrito chás, banhos frios, ou quem sabe uma boa terapia, mas em vez disso lança sobre os pobres fornicadores de Corinto um petardo teológico: “O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor, e o Senhor para o corpo. Deus ressuscitou o Senhor e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder” (1Co 6.14).

De que modo a ressurreição é uma resposta? Em primeiro lugar, ela é o inverso da desonra do corpo; é a honraria absoluta. Ela significa que o corpo tem um valor singular e eterno — pois se destina ao próprio Senhor. A doutrina da ressurreição nos diz que o prêmio máximo para o eu é a vitalidade eterna do seu corpo; que a vida espiritual que habita no homem interior finalmente brilhará — embora, como dissemos, com algum atraso — através do homem exterior. Portanto, vale a pena amar o corpo e honrá-lo.

Ora, isso é o que chamamos antes de consistência ou integridade. No núcleo da ética sexual cristã deve estar a seguinte doutrina: que o corpo não deve ser o que a alma não pode ser. O corpo e a alma devem estar juntos, e o corpo deve se tornar transparente ao espírito. Ou seja, não posso ser no corpo o que não puder ser no coração. Meu corpo deve se tornar translúcido em minhas relações com o meu próximo. Minha face não pode ser uma máscara a ocultar minhas intenções, mas uma janela para meu homem interior; meu corpo deve ser amado e honrado — seja ele alto ou baixo, novo ou velho, bonito ou feio, gordo ou magro — porque o seu valor é o valor da minha alma. Ele é o símbolo, a parte visível daquilo que tem valor incondicional. Devo unir-me ao meu corpo, de modo que o meu coração fique à flor da pele.

Por isso, não posso me relacionar sexualmente com alguém se não puder entregar a minha alma na mesma proporção. Se amo a Deus, amo a mim mesmo. Se amo a mim mesmo, compreendo minha sexualidade como parte da minha identidade moral, e não como minha identidade animal. E assim amo ao meu corpo sexual, que é a superfície visível do que eu amo. E se compreendo a natureza do corpo, compreendo que o amor ao próximo é mediado pela sacralidade do seu corpo, e que o seu amor por mim é mediado pela sacralidade do meu próprio corpo. Quem quer instrumentalizar o corpo sexual do outro não o ama, nem se ama; quem aceita ser desonrado pelo outro também não se ama.

E a esperança? É aquilo que abre meus olhos para o valor do meu corpo, e para o desejo de ser consistente.

Se alguém não consegue reconhecer sua própria dignidade, nem pode ver valor em ser consistente, é porque lhe falta a esperança. Ele só vê a morte diante de si. Todo homem que defende a libertinagem sexual só vê a morte diante de si, pois é o desespero o que arranca do homem a integridade e o faz entregar o corpo sexual ao prazer impuro.

Por isso Paulo deu aquela resposta escatológica: “Lembre-se da ressurreição”! Ela é a certeza de que o seu corpo tem valor e deve ser amado, e que o seu corpo e a sua alma não devem ser separados, pois foram feitos um para o outro — ou melhor, eles foram feitos para ser um só. E que outra coisa poderia ser a “pureza sexual”? Não é essa a pureza das crianças?

 

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