“Seja você mesmo” é quase um mantra que cada um de nós ouvirá nas mais diversas situações, do púlpito ao consultório, passando pela cultura pop: “Just do it cause you want it; not because you saw it!” é o que diz a letra da banda Curitibana Copacabana Club, sumarizando a “lógica” libertária – ou o seu lado “doce”. Mas ser o que quiser quando quiser tem o seu lado amargo: a ansiedade infinita de não se definir, de fragmentar-se e perder a forma, a concretude. Que uma das patologias da modernidade seja dúvida sobre a própria identidade é um fato muito presente em nosso dia a dia. Sugere-se que se formos nós mesmos seremos felizes, mas o problema é saber como ser “eu mesmo”. Isso significa seguir seus próprios projetos, suas crenças, a herança da sua cultura ou seus hormônios?

Esse é um dos bons frutos da sabedoria dos antigos. O homem não nasce “ele mesmo”. Pássaros nascem pássaros; não tem crises de identidade e jamais chegam ao momento no qual precisarão decidir se serão gatos, peixes, urubus ou águias. Mas com o homem é diferente. O pardal não precisa dizer sim a si mesmo, nem ganhar autoconhecimento para seguir sua natureza “pardálica” mas o homem precisa entender-se para ser. E identidade tem a ver com isso; “idêntico” é o que é perfeitamente igual. Identidade significa igualdade consigo mesmo, consistência. O problema do homem é que ele é capaz de perder a consistência, de não entender-se consigo e dividir-se.

Os Modernos e a Identidade

Pico della Mirandola dizia que ao homem foi dada a escolha de ser um anjo ou um bruto, por ter em si as “sementes” de toda e qualquer variedade de vida. E assim o homem precisa escolher se será tudo o que deve ser, e nele habitam as condições para ser menos. Pico, sob influência da religião bíblica, ainda pensava em termos de um destino, de uma forma do humano que deveria ser aceita pela liberdade, mas as coisas finalmente degringolaram. Os insights do renascimento foram levados longe de mais pela modernidade, a ponto de a autodeterminação tornar-se uma carga terrível.

Mais recentemente Zigmunt Bauman observou que “a natureza humana, uma vez vista como um duradouro legado da criação divina, foi lançada, junto com o resto da criação divina, no caldeirão. Ela não seria, e não mais poderia ser vista – como dada. Ao invés disso, ela foi transformada em uma tarefa, uma tarefa que cada homem e mulher não tem escolha senão encarar e realizar da melhor forma possível”.  E assim a “compulsiva e obrigatória autodeterminação” estabeleceu-se profundamente na moralidade dos modernos. Como se estivesse sob uma maldição pela afirmação libertária da modernidade, do homem individual como um ser absolutamente livre e autocriador, cada indivíduo precisa refundar-se e reinventar-se permanentemente na base do puro arbítrio, e não pode aceitar nenhuma definição de sua identidade que tenha origem externa, fora de sua vontade.

O resultado dessa moralidade é um asceticismo de tudo o que é estrutura, norma, tradição ou categorização, do que a ideologia Queer é apenas um exemplar mais evidente. O único modo de não ter sua existência determinada pelos outros e de manter abertas as possibilidades infinitas do arbítrio é não tomar forma nenhuma, seja em termos de crenças, seja em termos de moralidade, seja em termos de lealdades sociais. Assim a manutenção da possibilidade de escolher e mudar sempre torna-se efetivamente a suspensão estética da escolha.  A condição final é bastante doentia, já que nada de valor é construído na existência desse indivíduo que é uma “metamorfose ambulante”. Nesse ambiente cultural, as patologias da identidade e das afeições só podem crescer, como é o caso; e a ansiedade e insegurança a respeito de si tornam-se epidêmicas.

E, como efeito secundário da negação da natureza humana como dádiva, a busca da identidade atomiza-se completamente, assumindo um caráter individualístico. Cada pessoa imagina a sua identidade como uma questão absolutamente pessoal, ligada às contingências de sua existência particular. Essa tendência oculta a maior fraqueza das busca pela identidade como é praticada e recomendada hoje: é que não é possível que eu, Guilherme de Carvalho, saiba “quem eu sou”, se eu não souber primeiro o que significa “ser humano”. Pois “Guilherme de Carvalho” é um exemplo particular do humano, e não tem sentido nenhum a não ser como expressão minha da nossa hominalidade. Segundo a minha observação, grande parte da insegurança identitária que encontro à minha volta deve-se menos à ignorância sobre a nacionalidade, cultura, formação familiar, capacidades e história pessoal, do que a uma completa desorientação sobre o que significa ser humano.

A Inversão de Ser e Agir

Uma observação mais atenta mostrará que nas raízes da obsessão pela identidade fluida e atomizada está uma inversão na relação entre Ser e Agir, como apontou com tanta precisão o Dr. Ernst Cassirer, comentando a diferença entre o medievo e o renascimento:

“Se o sistema hierárquico divide o mundo em degraus e atribui a cada ser um desses degraus como o lugar que lhe cabe no universo, então essa concepção fundamental ignora o sentido e o problema da liberdade humana. Pois este problema está na inversão da relação que costumamos estabelecer entre o ser e o agir. No mundo das coisas, pode ser que seja válida a velha máxima escolástica segundo a qual ‘operari sequitur esse’; a natureza e a peculiaridade do mundo do homem, porém, decorrem do fato de que, nele, vale o princípio contrário: não é o ser que prescreve de uma vez por todas uma direção determinada e definitiva para o tipo de criação, mas é a direção original da criação que determina e fixa o ser. O ser do homem decorre do seu agir” (Cassirer, Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. Martins Fontes, 2001, p. 141).

Cassirer está correto em apoiar a concepção renascentista; o que o homem será efetivamente depende do seu agir, e isso torna o seu ser dinâmico. Mas ainda assim não há prioridade do agir, pois a capacidade de agir emerge do que é doado antes da ação, que é o ser em sua forma germinal. Além disso, ele não elabora (não por erro, necessariamente, mas provavelmente pelo interesse da obra) o problema da contradição. O homem não oscila meramente entre o “entregar-se a si mesmo” ao cosmo e o “subtrair-se a si mesmo” desse cosmo usando a sua capacidade de transcendência e liberdade, como se os dois movimentos fossem equivalentes; subtraindo-se ele pode anular-se a si mesmo. Pois a liberdade sempre existe num contexto. A natureza e as contingências e limites da existência neste universo não são meras situações, mas condições de possibilidade da liberdade, e ela não pode subsistir imaginando-se como uma transcendência desencarnada. Assim, quando a liberdade quer se separar da estrutura do ser, ela entra em contradição.

Contradição

Pois o homem pode usar a sua liberdade de viver para matar-se; pode falar para enganar; pode trabalhar para destruir; pode usar a liberdade para promover e impôr a tirania. O homem, feito à imagem de Deus, revoltou-se contra Ele e quis que seu Deus não existisse, que fosse desnecessário. Mas nesse ato o homem não apenas voltou-se contra uma lei externa a ele mesmo, uma imposição heteronômica. O homem voltou-se também contra si mesmo, e cortou a sua própria carne. Pois se o homem é imagem e semelhança de Deus, não há possibilidade de odiar a Deus sem odiar a si mesmo. Todo homem que odeia a Deus, odeia a si mesmo; todo homem que nega a existência de Deus dissolverá sua existência e seu destino nas trevas do niilismo. Isso é a contradição: mergulhar de volta no nada, no meon de onde Deus arrancou o mundo.

Mas essa não é toda a história; a contradição produz fraqueza e corrupção; a contradição enfraquece o ser, e o afasta da plenitude. Assim, embora os traços da estrutura original estejam em nós, como um bem primitivo, eles já não são guias confiáveis, sozinhos. A forma humana que a liberdade deveria ter abraçado já não existe em sua plenitude; não é como alguém que deixa o seu carro desligado, mas como alguém que o lança contra um poste. Doravante, ser humano tornou-se uma tarefa incompleta e irrealizável para o homem.

 

A Identidade, muito além da “Identidade”

Os cristãos afirmarão algumas coisas fundamentais sobre a identidade. Primeiro, que temos uma estrutura, e que o agir não tem “prioridade sobre o ser”; pelo contrário, o ser é a condição de possibilidade e o ar dentro do qual a liberdade bate as suas asas. E essa estrutura é inerentemente boa; tudo o que torna possível ao homem o ser homem é em si mesmo bom e além disso é dádiva de um Deus bom. Portanto a realização máxima da liberdade será o amor a essa estrutura boa, o sim do homem para Deus e, assim, para si mesmo.

Segundo, os cristãos dirão que o homem está em pecado, em revolta contra Deus, e isso significa que sua identidade sofreu uma ruptura. A igualdade do homem consigo mesmo era desde sua origem indireta; ela passa por Deus, pois o homem foi feito à imagem divina. Por isso a perda da identidade pessoal (em um sentido particular) e da identidade humana (em um sentido universal) são para nós um problema mais do que cultural ou psíquico; suas raízes são espirituais. O homem não quer ser o que é (ou o que foi feito para ser), e porque cegou-se espiritualmente, também não é capaz de ver o que deve ser. Ele está alienado de Deus e de si mesmo.

Terceiro, que a redenção da identidade está além braço humano. A maiêutica jamais será capaz de produzir o autoconhecimento e a integração pessoal. Pois o homem não é apenas ignorante, mas doente e perdido. Ele não tem a verdade dentro de si, pois é a mentira, é contradição; ele não precisa de um professor socrático, mas de um Salvador. Cada homem precisa olhar para além da busca da própria identidade, até porque ele não pode tentar ser consistente consigo mesmo agora, nas condições em que ele está. Se a forma foi corrompida pela liberdade, nem mesmo a mudança da vontade reconstruiria essa estrutura. Assim como a identidade humana lhe veio indiretamente, pela imago Dei, a redenção da identidade lhe virá indiretamente, como uma dádiva de reconciliação.

Temos pois três fundamentos: a identidade só existe quando a liberdade diz sim para a forma; a revolta humana introduziu a revolta da liberdade contra a forma, e sua deformação; e a identidade só pode ser recuperada olhando para além da nossa identidade, para a face de Jesus Cristo, com fé, esperança e amor. Pois nele a forma é perfeita, e a liberdade não é ódio, mas amor a Deus, a si mesmo e ao próximo.

“Seja você mesmo” pode ser verdade, em certos contextos, mas a expressão é inútil para descrever a riqueza da vocação humana. Não ensina a nossa intuição que isso pode não passar de uma sagração da mediocridade e, talvez, da perversão?

Nós cristãos não esperamos ser “nós mesmos”. Como poderíamos? “Nós sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2).