O Atomismo Social segundo Charles Taylor, e a Espiritualidade Cristã
Do Contra
Não é de hoje que procuro meios eficientes e interessantes de criticar a experiência moderna de autonomia humana. Não que eu rejeite completamente a noção de autonomia ou, falando de forma bem mais abrangente, a idéia de liberdade humana; mas já chega de modernidade, né? Essa coisa não deu certo mesmo (e nem era para dar certo). Seu ideal antropológico – do homem absolutamente autônomo, feliz da vida criando mundos demiurgicamente, “livre” dos constrangimentos da autoridade, da tradição, e da religião não passa de um mito naturalizado, que já está comendo o próprio rabo faz tempo.
E nem me venham falar de pós-modernidade. Ao menos, não da sua versão consumista, massificada, ideológica, com um discurso sobre pessoas “diferentes”, e sobre “pluralidade”, na qual a diferença é afirmada através de sua redução à insignificância (não importa se temos valores diferentes, pois nossos valores são igualmente infundados); e na qual cada indivíduo se desliga de tradições e constrangimentos externos para reforçar a sua “individualidade” contra a homogeneização institucional – mas com isso alcança apenas um status de “consumidor exigente”.
O problema da pós-modernidade real – ao contrário daquela idealizada por alguns teóricos militantes – é que ela é moderna demais.
Pois bem, como eu ia dizendo, me sinto muito feliz (sim, isso não parece nem um pouco objetivo) quando encontro insights interessantes sobre a inviabilidade do que chamo de “ideal libertário”, que Dooyeweerd chamaria de “ideal de personalidade livre”; as propostas, presentes na economia, na política, e ainda extremamente fortes no campo do pensamento acadêmico, que pressupõe e/ou promovem os direitos e poderes do indivíduo às expensas da sociedade. Aqui, por exemplo, eu incluiria o “dogma da autonomia religiosa da razão” – a idéia de que exista um pensamento teórico livre de influência religiosa – o pensamento político e econômico liberal, especialmente em sua forma anárquica, e a política socialista do trabalhismo brasileiro, de fortalecer indivíduos contra vínculos comunitários como a família, a religião, as escolas, etc, para controlá-los de modo mais eficiente através do Estado – um uso estatista do liberalismo.
E incluiria também parte da atitude evangélica em relação à igreja e à sociedade.
Charles Taylor on Atomism
Charles Taylor é um dos mais geniais representantes do movimento normalmente denominado “Comunitarismo”, que recoloca de forma criativa o tema da comunidade na discussão sobre política, direitos humanos e ordem social, sem cair na velha armadilha de simplesmente favorecer o Estado contra o indivíduo (e isto é uma distinção conceitual importante entre “socialismo” e “comunitarismo”). Em termos bem gerais, os comunitaristas se opõe a toda interpretação de justiça política, direitos humanos e ordem social que afirme a prioridade dos indivíduos contra as suas relações com outros seres humanos e com a sociedade. Outros nomes famosos do comunitarismo são Alasdair MacIntyre, Michael Sandel e Michael Walzer.
Sim, nem tudo o que Taylor diz me deixa feliz. Me incomoda, em especial, o seu Hegelianismo, do que eu sou um oponente incondicional. Mesmo assim suas percepções sobre a natureza do indivíduo fazem sentido.
Um artigo importante de Taylor a respeito, que vou comentar aqui, é Atomism (Atomismo) – um termo realmente perfeito para sintetizar a discussão. O artigo foi publicado inicialmente em Philosophy and the Human Sciences (1985) e depois na coletânea Communitarianism and Individualism, de Avineri e de-Shalit (Oxford Readings in Politics and Government, 1992, 237 pp.), aonde o li.
Taylor descreve “atomismo” como uma característica das teorias de contrato social e outras cuja pressuposição básica é a visão da sociedade como “em algum sentido constituída por indivíduos para o cumprimento de fins primariamente individuais” (p. 29). A primazia dos direitos individuais se encontra no próprio centro dessa tradição (p. 30), segundo a qual nenhum indivíduo tem a obrigação de pertencer, mas apenas direitos; o “contrato” é estabelecido para viabilizar a realização dos direitos, de modo que assim obrigações são adquiridas. Autonomia individual é, portanto, a priori, e obrigações comunitárias seriam a posteriori.
Para conferir plausibilidade a essa interpretação dos direitos, o atomismo precisa afirmar algum tipo de auto-suficiência do indivíduo (p. 32) – chegamos, portanto, a uma determinada visão do Self, e a uma antropologia.
De acordo com Taylor, atribuímos direitos aos homens porque eles exibem certas capacidades dignas de respeito (33), sendo na verdade impossível racionalmente atribuir esses direitos desconsiderando completamente essas capacidades. Ele toma como exemplo particular a capacidade da liberdade, e levanta a questão:
Se não podemos atribuir direitos naturais sem afirmar a dignidade de certas capacidades humanas, e se esta afirmação tem outras consequências normativas (ou seja, que deveríamos estimular e nutrir essas capacidades em nós mesmos e em outros), então qualquer prova de que essas capacidades só podem se desenvolver em sociedade ou em uma sociedade de um certo tipo é uma prova de que devemos pertencer ou sustentar a sociedade ou este tipo de sociedade. Mas então […] a afirmação da prioridade dos direitos será impossível; pois afirmar os direitos em questão é afirmar as capacidades e, uma vez que a tese social seja verdadeira no que tange a essas capacidades, implicará para nós uma obrigação de pertencer (35-36)
Nesse caso, portanto, as obrigações para com a sociedade não seriam o resultado adicional de um contrato, mas obrigações inerentes à existência humana completa.
Taylor prossegue para mostrar que essa capacidade (a liberdade) é completamente dependente de uma sociedade complexa para emergir e se manter. A interpretação libertária (não se pode julgar moralmente a liberdade individual) da liberdade só pode ser contraditória, portanto, na medida em que torna possível a contradição ou destruição da sociedade que habilita o homem a ter a capacidade da liberdade. A mera afirmação de um direito envolve, em si mesma, o reconhecimento de uma obrigação de pertencer.
Agora, um ponto muito importante: a tradição Hobbesiana de descrever o estado de natureza como um impulso para a realização de desejos (um nivelamento das capacidades humanas ao nível de outros seres sencientes, biológicos) acaba por gerar uma interpretação dos direitos individuais como o direito de satisfazer desejos, e também a ilusão de que até as capacidades que dependem da vida social complexa (ao contrário das capacidades biológicas) são inatas e geram direitos. Isso nos ajuda a entender muito do que é feito hoje em termos de direitos humanos. No campo da legislação sobre sexualidade, por exemplo. Se você tem um desejo, então tem um direito.
Depois de uma discussão mais detalhada sobre a dependência da liberdade em relação à sociedade, Taylor responde à questão:
Em outras palavras, o indivíduo livre ou o agente moral autônomo pode apenas adquirir e manter a sua identidade em um certo tipo de cultura, com algumas facetas e atividades a que me referi brevemente. Mas essas e outras da mesma importância não vem à existência espontaneamente a cada instante sucessivo. Elas são mantidas por instituições e associações que requerem estabilidade e continuidade e, frequentemente, também, apoio da sociedade como um todo […] O meu argumento é de que o indivíduo livre do Ocidente apenas é o que é em virtude de toda a sociedade e da civilização que o trouxe à existência e que o nutre […] (44-45) O ponto crucial aqui é este: desde que o indivíduo livre pode apenas manter a sua identidade no interior de uma sociedade/cultura de um certo tipo, ele precisa se preocupar com a forma dessa sociedade/cultura como um todo (47)
Taylor não poderia ser mais claro. É simples. O atomismo é impossível. Não há um self autossuficiente, nem há direitos que se apliquem atomisticamente. O eu individual forte depende de uma comunidade forte, e os direitos individuais emergem inelutavelmente conectados a obrigações comunitárias, a deveres de pertencimento e responsabilidade moral, a valores.
Consequentemente, diríamos, não se pode criar direitos, juridicamente, com base em ideais utópicos de liberdade humana, sem considerar cuidadosamente a relação dos indivíduos com as comunidades, sem atentar para os laços pessoais e morais que sustentam os indivíduos e os direitos.
No fundo, bem na base de tudo, entra a questão da identidade do indivíduo, que Taylor coloca muito bem:
A tese esboçada acima sobre as condições sociais da liberdade é baseada na noção, em primeiro lugar, de que a liberdade desenvolvida requer uma certa compreensão do self, na qual as aspirações à autonomia se tornam concebíveis; e, em segundo lugar, que essa auto-compreensão não é alguma coisa que possamos sustentar por nós mesmos, mas que nossa identidade é sempre parcialmente definida na conversação com outros ou través da compreensão comum que subjaz às práticas da nossa sociedade. A tese é de que a identidade do indivíduo autônomo, auto-determinado, requer uma matriz social que, através de uma série de práticas reconheça o direito à decisão autônoma e que clame pela voz individual na deliberação sobre a ação pública. O debate entre atomistas e seus oponentes vai bem fundo, portanto; ele toca a natureza da liberdade e, além disso, o que significa ser um sujeito humano; o que é a identidade humana, e como ela é definida e sustentada […] (p. 49)
A identidade humana, enfim!
Atomismo e Presença Cristã
Não é muito difícil extrair implicações do argumento de Taylor, que é bastante convincente. O teólogo Helmut Thielicke, em sua antropologia teológica, já havia apontado o problema moderno, em especial no campo da racionalidade: a visão kantiana de autonomia (e moderna, enfim) é problemática, na medida em que ignora as fontes do autós. O autós é tão dependente de uma teia de relações, que somos obrigados a qualificar a “autonomia”.
Em outras palavras, não há autonomia sem heteronomia, porque não há autos sem heteros. Nos termos de Taylor, não há self sem comunidade. O que implica, diretamente, a necessidade de reconciliar liberdade e lei/norma, bem como individualidade e comunidade. Ou melhor, de compreender a sua relação.
De cara, a crítica ao atomismo implicará mais uma linha de ataque contra o dogma da autonomia da razão – a idéia de que o pensamento teórico seja neutro em relação à tradição e ainda em relação à fé, como dimensão da experiência humana. Implicará, além do mais, em uma severa qualificação do que eu consideraria uma das marcas mais importantes da pedagogia contemporânea: a ênfase na “autonomia do aluno”, e a caricaturização de todo tipo de pedagogia baseada em tradição ou valores normativos (não confundir com tradicionalismo metodológico) como “doutrinação”. Não é que ensinar valores tenha um “lado bom”; é que a pedagogia focada na autonomia individual está simplesmente correndo atrás do vento.
Na política, implicará em que a legislação não pode abstrair a questão dos direitos individuais da matriz social mais ampla, nem da saúde das comunidades. Não se trata de mero conservadorismo, como se não se pudesse reformar a legislação de direitos; o ponto é que não se pode gerar direitos sem compreender os valores e obrigações que os acompanham, e como eles são “encaixados” com a forma presente da sociedade. As ações do governo petista no campo da homossexualidade no brasil, por exemplo, são exemplos perfeitos de insensibilidade para com a saúde comunitária.
Outro exemplo é o completo desinteresse pela preservação de uma estrutura familiar saudável, adotando pelo contrário a estratégia de meramente absorver e naturalizar as disfunções familiares em nome dos direitos de indivíduos em contextos disfuncionais, o que constitui prova evidente do problema que apontamos.
Atomismo e Igreja Evangélica
Finalmente, algo tinha que sobrar pra nós. Num post anterior observei que a igreja evangélica tende a ser muito moderna. Demais. A igreja é vista como associação de indivíduos; um grupo se junta e decide: “haja a igreja”! E nem queremos saber de tradição, de associação com outras igrejas, de nada. A igreja evangélica se tornou extremamente vulnerável à cultura de mercado, exatamente por isso. Ela procede da mesma lógica individualista que corta o vínculo do self com a comunidade, tornando-o um ponto descontexualizado, um buraco-negro de desejos.
Daí eu fico me perguntando: o que pode ser feito para superar o atomismo entre nós? Isso não é apenas um problema de espiritualidade individual. Tem muito evangélico hoje – e muita gente boa – procurando renovação na espiritualidade, só que em uma base ainda moderna, de busca espiritual individual ou, no máximo, com alguns amigos.
Não dá pra contornar a eclesiologia, então. Taylor está basicamente certo: não existe self sem comunidade. O Self não tem realidade sem comunidade. Realidade é comunidade, eu diria. Deus é comunidade. A lei de Deus se resume no amor a Deus e no amor ao próximo; somente na relação religiosa com Deus e com o próximo podemos dar um conteúdo a nós mesmos. Pensar espiritualidade individual, liberdade individual, pensamento individual, etc, in abstractu, sem mergulhar em uma ecclesia, é besteira.
Seguindo o raciocínio de Taylor, eu diria que a liberdade de crer, que a própria possibilidade de ter fé salvadora, implica em si mesma uma obrigação para com a comunidade que transmite e sustenta essa fé. Extra Ecclesiam Nulla Sallus. Católico demais? Talvez. Mas já não sei o que é pior: ser católico ou ser moderno.
No final do artigo Taylor destacou que o problema todo, no fundo, é o problema da identidade humana. O que é o homem, e o que significa “liberdade humana”? O que Taylor nos deixa ver é que não há resposta apenas formal para essas coisas. Cada civilização/sociedade/comunidade dará uma resposta. A questão é que já nascemos dentro de uma tradição, e precisamos nos ver com ela para dar essas respostas. Mas há uma resposta que não vale de jeito nenhum: o atomismo.
É interessante (e surpreendente) que Taylor encontre Calvino aqui, fazendo a mesma discussão; para Calvino a identidade humana é encontrada no relacionamento com Deus; só há autoconhecimento no conhecimento de Deus. Eu diria que o Self se constitui respondendo de um jeito ou de outro a Deus e a outros seres criados à imagem de Deus. E igreja é isso: Deus conosco, fazendo a paz.
Talvez, a título de sugestão: igrejas realmente pós-modernas, ou para-modernas, ou anti-modernas, seriam igrejas que redescobrem a tradição teológica, litúrgica e pastoral (ao invés de querer inventar a roda), que desistem da democracia como sistema básico (sinto muito pelos batistas – sou um deles), que retomam o sentido sacramental, que trabalham com pequenos grupos (sim, eles estão certos nisso), mas não caem no caudilhismo nem abusam de seus membros (como na massificação neopentecostal). Vamos ver se essa igreja emerge de verdade por aí.
[…] O Atomismo Social segundo Charles Taylor, e a Espiritualidade Cristã – Post de Guilherme de Carvalho, discutindo o comunitarismo de Charles Taylor, e suas implicações para várias áreas, inclusive a igreja. Talvez, a título de sugestão: igrejas realmente pós-modernas, ou para-modernas, ou anti-modernas, seriam igrejas que redescobrem a tradição teológica, litúrgica e pastoral (ao invés de querer inventar a roda), que desistem da democracia como sistema básico (sinto muito pelos batistas – sou um deles), que retomam o sentido sacramental, que trabalham com pequenos grupos (sim, eles estão certos nisso), mas não caem no caudilhismo nem abusam de seus membros (como na massificação neopentecostal). Vamos ver se essa igreja emerge de verdade por aí. […]
[…] Leia também: A Baderna de Deus e a Baderna dos Homens A Ideia Cristã do Estado O Atomismo Social […]
[…] Leia também: Manifestações: a nova cidadania em rede A Baderna de Deus e a Baderna dos Homens A Ideia Cristã do Estado O Atomismo Social […]