Pequena Homilia Antilibertária
Soberania: inicialmente, como o expôs Kuyper, um conceito simples e intuitivo. Soberania é o direito de impor a própria vontade. O direito de exercitar a liberdade, nesse sentido; mas de causar, no exercício da liberdade, uma limitação da liberdade. E a partir de seu direito ao poder, a liberdade de exercitá-lo para bloquear toda resistência a si. Nesse sentido, sim, Deus é a fonte de todo o poder. O Deus Trino é o Soberano absoluto, detentor do direito e das energias necessárias para fazer cumprir a sua vontade.
Como poderia ser diferente? Há quem pense hoje que tal noção de Soberania divina seria um reflexo de patriarcalismo, ou uma fonte de intolerância e violência, ou o fruto de uma sensibilidade religiosa doentia, fundada no medo ou no sentimento de culpa.
Não seria possível demorarmo-nos agora no debate com uma ou outra dessas correntes. Um tratamento justo às teontologias libertárias, que tentam construir uma divindade mais frágil e dialógica, a bem de uma atualização da pregação cristã, exigirá outro artigo.
Não obstante é justo, aqui e agora, denunciar a um modo homilético o seu etos, o seu impulso fundamental. Pouco esforço é preciso para reconhecer-lhe a fonte: um respeito humano desmesurado. Que perversa doutrina pretenderia arrancar das mãos do Senhor o seu cetro, puxar as suas barbas e fazê-lo dobrar-se diante de sua criatura, senão o nosso bom e velho humanismo secular? Já conhecemos essa história; aumentar o espaço da liberdade humana à custa de reduzir o espaço da soberania divina.
Ora, que estratégia mais tola poderia ser criada? Se chegamos a empregá-la, é porque já não habitamos o mundo de Deus, mas o espelho de narciso. Um deus que possa ser posto a par com o homem, que tenha que se por de pé para ceder-lhe o assento já é um nada, um outro do seu tipo. Nem o milagre da encarnação do verbo redimiria esse maquinismo teológico.
E bem a propósito: somente uma terrível confusão poderia levar um homem a entender que, na encarnação, Deus se tornou humano. Deus nunca foi, não é e jamais será humano. Deus é divino, não é uma criatura. Não pode se transubstanciar em uma criatura, segundo os excessos especulativos da communicatio idiomatum. Jesus, o Logos, Deus de Deus, Luz de Luz, era Deus e criatura simultaneamente; mas a sua criaturidade não se tornou em divindade, nem a sua divindade se tornou em criaturidade. Ele era ambos, Criador e criatura, unidos em uma pessoa, sem confusão nem mistura de substâncias.
Mas o humanismo, agora em nome da piedade evangélica, deseja tornar o Leão em gato; criar um pobre deus que vamos abrigar em nossas casas, por piedade – assim o são as divindades das mais variadas formas de teologia libertária, que repetem teimosamente o erro de separar Natureza e Graça, de criar um vácuo de ação divina para dar livre arbítrio e “responsabilizar o homem” elevando a dignidade divina pelo dúbio expediente de livrar-lhe do mal a cara.
Para se achegar ao homem, Deus não deixa a sua divindade. O infinito, por condescendência, se acomoda à finitude, mas não deixa nem por um momento a sua infinitude original, pois “nem o céu, nem o céu dos céus o podem conter”: finitum non capax infiniti. O amor e a condescendência de Deus para conosco não se realizam à custa de sua Soberania e de seu Poder sobre todas as coisas. Não deixa Ele o seu Trono para encher de fumaça o seu templo. Nem assume o corpo infantil calando a Palavra que a tudo sustenta. Nem forma Ele a liberdade humana por meio de uma ausência, de uma limitação de sua Soberania, de um vácuo de presença divina; pois “nele vivemos, nos movemos e existimos”. O Altíssimo está mais perto de nós do que nós mesmos, e não criou a liberdade humana como um poder autônomo em relação a Ele. Antes, é a Soberania divina o fundamento supremo da liberdade humana.
Mas, como Schaeffer tantas vezes nos advertiu, a natureza, deixada autônoma, “devorará a graça”. É o mais fatal dos erros tentar garantir a liberdade humana reduzindo o espaço de Deus e de sua Soberania, postulando um universo opaco, vazio da divindade, “secular” e entregue ao arbítrio humano. No fundo desse poço de respeito à dignidade e à responsabilidade humana há uma serpente matreira.
Há quem pense seria bom para o movimento de Missão Integral no Brasil adotar uma ou outra versão libertária da divindade, como se expandindo o campo da iniciativa humana, os cristãos viessem a se tornar menos passivos, sentindo-se mais necessários a seu pobre Senhor e aos pobres pecadores. Ledo engano. Se nos tornarmos mais missionais, mais ativos e mais responsáveis apenas porque temos um senso elevado de nossa autonomia humana, de nossos poderes de intervenção, de nossa capacidade de romper as determinações históricas, eu pergunto: de quem será a glória?
Essa expectativa já denuncia a ruína espiritual em que estamos metidos. Deus já não nos move. Desprezamos o Deus da Bíblia – aquele Deus poderoso, terrível, Soberano, Juiz, Salvador – nossa sensibilidade, nosso senso de adoração, nossa reverência e nossa abertura para a transparência do mundo se perdeu. Vivemos num universo opaco, relativístico, sem profundidade espiritual e sem Lei. O que nos resta? Exaltar a autonomia humana para fazer a Missão andar no Brasil. Que fracasso miserável. Melhor nos seria amarrar no pescoço uma pedra de moinho. Ou pior: retroceder de vez para a semi-extinta teologia da libertação.
Não, sejamos progressistas! Vamos progredir de volta. De volta à visão clássica da divindade, sem a qual as nossas idéias sobre a natureza da Soberania não passarão de versões carolas do humanismo secular. Não há futuro no motim libertário. Pois a liberdade não é ganha pela ausência, mas pela presença de Deus.
[O trecho acima é parte de um capítulo meu publicado na obra “Fé Cristã e Cultura Contemporânea”, da Editora Ultimato.]
Guilherme,
gostei do seu texto! Creio que, em muitos momentos, no impulso de levar o evangelho ao próximo, acabamos acreditando em nossas “próprias forças”, esquecendo, assim, de nos colocar como instrumento nas mãos de Deus.
Por outro lado, percebo também que existe no meio cristão certo desânimo, certo marasmo, por parte de alguns que, raramente, se dispõem a trabalhar na obra do nosso Senhor, principalmente quando se trata da pregação do evangelho.
Gostaria que você me explicasse como entender a vontade soberana de Deus na pregação do evangelho e a disposição do crente em cumprir essa ordem.
Abraço,
Jônatas
“E bem a propósito: somente uma terrível confusão poderia levar um homem a entender que, na encarnação, Deus se tornou humano. Deus nunca foi, não é e jamais será humano. Deus é divino, não é uma criatura. Não pode se transubstanciar em uma criatura, segundo os excessos especulativos da communicatio idiomatum. Jesus, o Logos, Deus de Deus, Luz de Luz, era Deus e criatura simultaneamente; mas a sua criaturidade não se tornou em divindade, nem a sua divindade se tornou em criaturidade. Ele era ambos, Criador e criatura, unidos em uma pessoa, sem confusão nem mistura de substâncias.”
Mas aí é que vc se engana, Guilherme! Toda a reflexão sobre a doutrina da encarnação, de Sto. Atanásio a São Cirilo, PRESSUPÕE a comunicação de atributos. O calvinismo, querendo a toda custo salvar a menina dos olhos de sua teologia, a Soberania de Deus, abandona o Credo de Calcedônia e a tradição apostólica, tão bem expressa por Sto. Inácio de Antioquia: “Existe apenas um médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, filho de Maria e filho de Deus, vida verdadeira na morte, vida primeiro passível e agora impassível, Jesus Cristo nosso Senhor”
Abraços,
Rodrigo
Caro Rodrigo,
talvez eu não tenha sido de fato totalmente claro, mas não quis excluir em princípio qualquer formulação de uma comunicação de atributos; apenas apontar os excessos especulativos, que de fato ocorreram. Entre os resultados eu incluiria a interpretação mística da adoção no cristianismo oriental, com a idéia de theosis cruzando perigosamente a distinção Criador-criatura (tão bem enfatizada por Kierkegaard, por exemplo, que era luterano) e as cristologias quenóticas mais modernas, no outro extremo, “solucionando” o problema da encarnação com uma renúncia do logos à divindade. Entre essas, em especial, encontram-se as propostas de uma severa autolimitação divina para suavizar os paradoxos do ensino Bíblico sobre a onipotência e a providência divina, projetando a cristologia quenótica até mesmo sobre toda a relação Criador-criatura, com um Deus que se evade para permitir a criação (vide John Polkinghorne, por exemplo).
De qualquer forma, é claro que Deus se fez carne; “o verbo se fez carne”, ora! 😀 A questão é que ele adicionou a si a criaturidade; se vc tentar dizer mais do que isso, cairá no monofisismo e na mitologia (um Jesus “semideus”), que não foi a posição Atanasiana e Calcedônica de modo nenhum. E há um risco real de monofisismo se esticamos a communicatio idiomatum até o ponto de eliminar a distinção Criador-criatura (afirmando, por exemplo, a onipresença do corpo físico de Jesus, e coisas do gênero). Na intepretação reformada isso infelizmente aconteceu na teologia dos pais, e esse excesso não era necessário à ortodoxia (assim como não é necessário aderir às opiniões dos pais sobre eclesiologia ou sobre a idéia de graça, etc).
Enfim, valeria dizer que a preocupação reformada com a communicatio idiomatum é primariamente com o risco de idolatria, de confundir Deus com a criatura – interdição que não é de modo algum suspensa pela encarnação – e o problema associado da relação entre liberdade humana e liberdade divina – podem elas ser simultâneas ou apenas concorrentes? Meu palpite é que quanto mais longe vc vai com a communicatio idiomatum, mais perto vc fica da concorrência e consequentemente, precisa dissolvê-la no monofisismo. Em outras palavras, o paradoxo da encarnação não é um problema a ser solucionado, mas a solução de diversos problemas.
Muito bom. Creio que esquecemos da soberania de Deus, quando utilizamos nossos próprios conceitos, ideias e planos ao invés de entregarmos a direção de nossa missão a Ele, em oração, em busca da Palavra… Falta-nos reconhecer que só podemos viver bem quando Jesus reina sobre cada detalhe, pois fomos feitos para isso.
Abraço
Texto maravilhoso. O pessoal da missão integral no Brasil precisa, urgentemente, voltar a esse caminho.