Já há alguns anos li no informativo da PUC MINAS (Belo Horizonte, edição 277, set 2006) uma reportagem especial sobre ciência e fé, por ocasião da instalação da Pastoral na Universidade. Apesar do fato já ter alguns anos, acho que vale reproduzir meus comentários à época. A reportagem começa com a entrevista a Dom Joaquim Mol, vice reitor, para quem “houve uma incompreensão histórica em se achar que a ciência e a fé respondiam à mesma pergunta […]. A pergunta da ciência é “como eu existo?” E a pergunta da fé é “que sentido tem a minha existência”? Outro entrevistado, Paulo Agostinho, professor de Cultura Religiosa na PUC – foi professor da minha esposa – sustenta posição semelhante. A reportagem traz também informações sobre a Pastoral e sobre o curso de Ciências da Religião.

Ainda Fatos e Valores?
À primeira vista, parece fazer sentido a distinção: a ciência lida com “fatos”, e a fé com “valores”. Mas eu não posso ver um avanço significativo no diálogo entre a religião e a ciência enquanto o debate continua sequestrado pela divisão kantiana, na origem, entre fatos sem sentido e sentido sem fatos(ou quase). A verdade é que a fé envolve conhecimentos que tem incidência direta sobre a interpretação dos fatos, a ponto de torná-los em fatos diferentes.

De todo modo, é uma guinada muito interessante essa. Embora evangélico, sempre me senti bastante incomodado pelo fato de os católicos saírem da PUC muito menos católicos, e muito mais ateístas ou agnósticos! Já não era sem tempo – se bem que não posso dizer até que ponto as mudanças refletem um interesse pastoral local ou a ênfase positiva e mais conservadora de Ratzinger no campo das relações entre fé, razão, e ciência.

 

Ciência (Combativa?) da Religião

Uma coluna na página 10, no entanto, me chamou a atenção de modo especial. Intitulada “Religião como objeto científico”, pretendia explicar o papel das ciências da religião no universo da PUC, e a justificativa foi curiosíssima:

” ‘O que nos diferencia da teologia é que, para nós, a religião é o objeto. E precisamos avançar na investigação científica para poder combater, por exemplo, o fundamentalismo’ explica Flávio Senra, coordenador do programa […] ‘não podemos fechar os olhos para o fato de que cresce uma instância conservadora de princípios na sociedade. Nós que somos leigos, cientistas, estudiosos, precisamos assumir o discurso da explicação religiosa. A explicação religiosa apenas nas mãos dos fanáticos religiosos é como uma bomba-relógio’, alerta Senra.”

Na verdade, faz muito sentido. O crescimento do fundamentalismo islâmico, pondo em perigo a segurança mundial, merece resposta séria e corajosa. Mas este não é, evidentemente, o problema aqui no Brasil; tenho a impressão de que Senra se refere ao fundamentalismo cristão, em suas formas católica e evangélica. Entretanto, não há nada parecido com o fundamentalismo islâmico por essas terras, do ponto de vista da violência e do totalitarismo. Mesmo o fundamentalismo norte-americano, que tanto influenciou o evangelismo brasileiro, tem características profundamente individualistas, oriundas da Reforma Radical, em suas formas pacifistas, e do puritanismo inglês.

Talvez Senra esteja se referindo ao “conservadorismo de príncípios” na sociedade. Ora, se ele se refere ao conservadorismo católico, isto é realmente um problema; a reportagem expondo a natureza e finalidade da pastoral universitária parece pender em uma direção bastante conservadora! Mais provavelmente, ele se refere ao conservadorismo descentralizado (ou sem controle papal) que se vê na comunidade evangélica.

A linguagem bélica de Senra é que surpreende. “Combater“, “bomba-relógio“. Talvez seja mesmo necessário combater o fundamentalismo evangélico; mas é no mínimo intrigante que um programa científico universitário seja definido nesses termos. Ou não. No último congresso da SOTER, em Belo Horizonte, a mesa redonda sobre Religião e Ciência, coordenada por uma equipe da PUC de São Paulo definiu a sua perspectiva nos mesmos termos. Isso não parece mesmo nem um pouco ecumênico. Não; é mesmo paradoxal, que aqueles interessados em superar o fundamentalismo se tornem, de repente, tão parecidos com Ratzinger.

 

Ciência (Iluminista?) da Religião: O Paradoxo Brasileiro

Há, na atualidade, um grande movimento internacional que busca reconectar religião e ciência e, especificamente, teologia e ciências naturais. Este movimento conta, principalmente, com teólogos, filósofos e cientistas da natureza, na maioria físicos e químicos. A participação de psicólogos, cientistas políticos, cientistas sociais, e cientistas da religião ainda é bem pequena.

No Brasil, que ainda não acordou para essa realidade, tenho presenciado um movimento distinto, que nos ajuda a entender as palavras de Senra. Há uma luta, em parte política, em parte epistemológica, para traçar os limites entre as Ciências da Religião e a Teologia, no Brasil. O líder do movimento para separar os dois campos, por aqui, é o Dr. Frank Usarski, da PUC de São Paulo, no que é seguido pelas outras PUCs e, em parte, pelo Depto de Ciências da Religião da UFJF – se bem que vários professores em Juiz de Fora são teólogos.

Por outro lado, na UMESP, o Dr. Etienne Alfred Higuet – meu orientador – defende a viabilidade do diálogo, incluindo a teologia (em uma forma não-confessional, e hermenêutica) entre as ciências da religião. Finalmente, o Depto de Ciências da Religião da Mackenzie discute a possibilidade de uma Ciência da Religião Confessional (reformada)!

A necessidade de ganhar um “lugar ao sol” para as Ciências da Religião, no contexto Brasileiro, criou a exigência de distinguí-las da teologia, e de iniciar um movimento contrário àquele que se desenha no cenário internacional, de reaproximação. Poderíamos dizer, talvez, que o estudo científico da religião é a última estação de desembarque de uma forma não-hermenêutica e objetificante de ciência que, agora, entra em crise e inicia a reaproximação da teologia. Era de se esperar, neste contexto, que as ciências da religião se empenhassem por um diálogo com a teologia, mas o atraso histórico está criando uma instância iluminista em um contexto pós-iluminista.

Policiamento Científico do Sagrado?

Temos, pois, uma forma de Ciência da Religião bastante moderna – em plena “pós-modernidade” (será?) cuja função é, nas palavras de John Milbank, “policiar o sagrado”. O policiamento segue o padrão típico da modernidade: a redução crítica e a naturalização. Mais do que isso, o policiamento tem um interesse político e social que transcende o interesse científico imediato: vigiar aquelas formas irracionais e bárbaras de religiosidade que possam pôr em perigo a divisão moderna entre saber científico e sentido religioso, que sustenta contenção dos religiosos em suas gaiolas dominicais.

Mas o que dizer contra isso? Se há uma ambiguidade fundamental em todos os empreendimentos humanos, não seria este o caso, também da religião? Se ela representa risco, não seria corretíssimo vigiá-la? Sem dúvida. Não posso ver problema nisso.

Exceto na medida em que não temos uma instância científica semelhante para policiar a secularidade. Ninguém policia a secularidade; mas dela se originaram as piores catástrofes políticas do século XX, ainda não igualadas pela religião. A ciência da religião poderia cumprir tal papel, se adotasse um conceito muito mais amplo de religião, e se voltasse para os insights da teologia, como os encontramos em Paul Tillich, Jacques Ellul ou Herman Dooyeweerd. Mas é claro que ela não pode fazer isso, na medida em que apenas objetifica a religião.

O problema são as anomalias advindas dessa restrição voluntária do campo de visão. Recentemente, pouco antes de apresentar uma comunicação sobre Religião e Ciência na Semana de Estudos de Religião da UMESP, assisti a uma palestra na qual o comunicador alegou que o fundamentalismo religioso protestante norte americano (Bush) seria a causa principal da violenta reação islâmica. Eu objetei apontando o fato de que o conflito com o Islã já era um problema social em toda a Europa antes de Bush, e que diversas rusgas com os muçulmanos não tem absolutamente nenhuma relação com o protestantismo americano – vide a “Crise das Charges”, e as recentes declarações de Bento XVI. Obviamente, toda a análise não passava de uma ilusão de ótica, gerada por um standpoint secularista e, diga-se de passagem, de uma grande má-vontade para com a religião. A verdade, muito bem sabida pelos especialistas em política internacional, é que o conflito do Islã se dá com o Ocidente Secular, não com o “fundamentalismo religioso americano”.
Segue-se que, para não cair em um mero policiamento acrítico do sagrado– acrítico sobre as suas próprias conexões tácitas com projetos humanos seculares e secularizantes – as ciências da religião deveriam iniciar seu diálogo com a teologia imediatamente, ao invés de adiá-lo para daqui há duzentos anos, e esforçar-se por entrar na grande conversa contemporânea sobre as relações entre a religião e a ciência.Em suma, as Ciências da Religião precisam deixar a estratégia de objetificar a religião, e entrar em um diálogo real com ela, permitindo-se ser compreendidas também teologicamente, pela religião; e se queremos que o fundamentalismo entregue suas armas totalistas pelo diálogo, precisamos baixar as armas cientificistas. Afinal, como o disse o Prof. Paulo Agostinho,
“Há um fundamentalismo científico, bélico, econômico. Precisamos ter uma ciência que dialogue com a religião”
Parodiando a sua frase, eu diria que há um fundamentalismo secular por trás da Ciência policial da Religião. O que precisamos, hoje, não é de uma campanha contra o fundamentalismo religioso, mas de uma Ciência da Religião que dialogue com a Religião.