Imagina!
Imagina!
Se é pura verdade o que diz Benedict Anderson sobre o caráter imaginário de nossa identidade nacional e se Darcy Ribeiro acertou quando disse que “a coisa mais importante para o brasileiro era inventar o Brasil”, então quero imaginar um país e colaborar para a sua invenção. Trata-se de um exercício de imaginação coletiva, um trabalho participativo e diário de construção e reconstrução.
Neste país como possibilidade a se concretizar, será possível ouvir de novo, e sempre, a voz do velho Lua a cantar aboios e a sorrir sanfonas celebrando o fim da seca no sertão, a volta do retirante e da asa branca com saudade da beleza e da alegria que só a chuva traz. Neste país imaginário, a canção de Antônio Brasileiro será a trilha sonora que chamará os pássaros de volta para as florestas que, finalmente, foram preservadas e reconhecidas como santuário de nossa vida natural.
Nas ruas de Brodowski se ouvirá o som do autofalante chamando o povo para assistir ao grande espetáculo do novo circo que acabou de chegar. E as crianças sairão correndo para ver os palhaços e trapezistas. E Portinari, entre elas, encherá de azul uma país feito de trabalho e brinquedo, balanço, gangorra, violões, frevos, sambas, vaqueiros, garimpeiros e jangadeiros do Nordeste e trabalhadores nas plantações de café.
Os traços suaves e flutuantes de Oscar Niemeyer nos ajudarão a reconstruir cidades agora transformadas em ruína pelo risco implacável da injustiça, pelo rabisco apressado da ambição e da mentira. E imaginaremos Brasília em que a pérola será o entorno, a periferia, em que a beleza será satélite da arquitetura justa e sensível de uma nação reinventada.
E para garantir que não haverá falta de imaginação e literatura neste Brasil que certamente construiremos, será reservado um espaço privilegiado no coreto da praça para que Mário de Andrade leia, em tom apaixonado, o manifesto antropofágico que um dia ouviu da boca do seu amigo Oswald. E em sua voz soarão as vozes de tantos povos indígenas há tanto tempo silenciados, e se ouvirão caiporas e sacis e macunaímas todos a procurar a pedra de muiraquitã, aquilo que um dia sabíamos ser e que afinal perdemos de vista.
Neste país, Guimarães Rosa nos mostrará o que é sertão e quantas veredas o atravessam, e quantos enredos se desenrolam nos fios da sua narrativa, da palavra que se debate diante do inefável, da narrativa que desemboca no silêncio dos caminhos e dos rios, do coração humano que se pega a cismar com o infinito. E Rosa dirá que, assim como Minas Gerais, o Brasil são muitos.
Sim, são muitos os brasis que temos sonhado coletivamente, algumas imagens perturbadoras nos falam de desmatamentos, chacinas, desigualdades tantas, corrupção e desmando, quadros que revelam nosso vício do “jeitinho”, nossa cultura do favor, nosso endividamento moral, nossa miséria, enfim. É como se várias músicas fossem tocadas ao mesmo tempo pela mesma orquestra confusa e desafinada. É como se várias sinfonias se iniciassem ao mesmo tempo, e o maestro, desconcertado, pusesse a mão nos cabelos e perguntasse: “Que faremos deste país?”
Vivemos agora este momento em que paramos todos para pensar que música tocaremos, que obra imaginaremos juntos. Ladrões não fazem um país. Assassinos não têm pátria nem compatriotas. Mercenários não estão em busca do que somos, mas do que temos a fim de vendê-lo ao que não somos e, fazendo assim, roubar a pedra preciosa de nossa identidade. Este é o momento de encarar nossa estranha contradição e de celebrar, com humildade e esperança, a possibilidade da reconstrução de um país pelo uso de nossa imaginação democrática.
Gladir Cabral
Confira:
Site com a obra de Portinari: http://www.portinari.org.br/
Filme “As Sanfonas do Lua”: https://www.youtube.com/watch?v=54UpU1tsdn0
Documentário “O Povo Brasileiro”: https://www.youtube.com/watch?v=eqlcHGj4f7k
EDUARDO
Vale a pena recordar a frase a respeito do PT dita por Roberto Campos — embaixador, economista e pensador do Brasil: “O PT é o partido dos trabalhadores que não trabalham, dos estudantes que não estudam e dos intelectuais que não pensam”.
Entre os intelectuais aí, pode-se colocar Darcy Ribeiro. É o escritor do ufanismo nacional. Nele, tudo que está abaixo da linha do equador é grandioso, quase puro, como se a carta de Pero Vaz de Caminha fosse realmente verdadeira.
Darcy passa ao largo das malandragens, da demagogia, do populismo, do nacionalismo interesseiro e outros males nacionais.
Segundo Campos, as idéias de Darci Ribeiro eram uma espécie de “paranoia antropológica”. Ao contrário dos anglo-saxões, continuou, “que prezam a racionalidade e a competição”, nossos componentes culturais são “a cultura ibérica do privilégio, a cultura indígena da indolência e a cultura negra da magia” nesse caldeirão, digo eu, do patrimonialismo e do cartório para todas as atividades humanas.
“O Guarani” de Carlos Gomes e baseado no livro homônimo de José de Alencar, e foi o primeiro sucesso de uma obra musical brasileira no exterior. A história, baseada no livro de José de Alencar, publicado em 1857, se passa nos arredores do Rio de Janeiro, por volta de 1560, em um momento que os índios Aimorés e Guaranis estão em guerra. É uma história de amor impossível, com muitas lutas, fugas e heroísmo, em um estilo nacionalista de valorização do homem e da pátria.
Darcy Ribeiro é isso tudo aí junto em uma linguagem paranoica como disse Campos.
Não há música que retrata esse nosso Brasil. Acho que a única coisa infantil que juntou o Brasil de norte a sul foi “A Banda” de Chico Buarque. Um exemplo infantil de boçalidade juvenil.
kleber
Falta-nos essa compreensão de Brasil. As nossas músicas, as nossas poesias, e tudo isso nas nossas arquiteturas e “nos jeitos” de ser do povo brasileiro.
Que o nosso cristianismo leve em consideração essas características tão difusas, mas que nos completam como Brasil.
Belíssimo texto, Gladir. Belíssimo!!!