Infância, memória e imaginação em A Bibliotecária de Auschwitz, de Antonio Iturbe
Que tenha havido infância em Auschwitz já é surpreendente. As crianças eram enviadas para as câmaras de gás logo na chegada. Que tenha havido biblioteca, então, é um milagre. Num espaço construído para a extinção do humano, para o apagamento da memória e da liberdade, o acesso aos livros configura absurdo de ousadia e resistência. Como disse certa vez o poeta William Somerset Maugham, “[a]dquirir o hábito da leitura é construir para si um refúgio contra quase todas as misérias da vida” (1940, p. 7). Um frágil refúgio, certamente, pois afinal o que fazer diante da guerra, quando se é apenas uma criança? Como observa o narrador de A Bibliotecária de Auschwitz, com certo pessimismo, “[p]ara ser criança, é preciso ter uma infância” (Iturbe, 2014, p. 80). Uma coisa é haver criança, outra coisa é haver infância.
A Biblioteca de Auschwitz funcionava no bloco 31, conhecido como o bloco infantil do campo familiar de IIbii, pois ali as famílias não eram separadas, como acontecia em todo o resto do complexo de Auschwitz e em todos os demais campos de concentração nazistas. O livro do escritor espanhol Iturbe é baseado em pesquisas e entrevistas pessoais com Dita Kraus, sobrevivente do campo e conhecida como a bibliotecária de Auschwitz. Dita nasceu em Praga, capital da antiga Tchecoslováquia. Em 1942, Dita, com apenas 13 anos, foi deportada juntamente com a família para o gueto de Theresienstadt, depois para Auschwitz. Ali ela testemunhou a morte do seu pai. Meses depois, ela e a mãe foram levadas para o campo de Bergen-Belsen, onde foram libertadas pelas forças aliadas em 1945.
O romance vai mostrando como a infância pode ser protegida até mesmo em um lugar árido como um campo de concentração, como ela resiste e cresce, sorvendo o máximo de afeto de seus pais ainda vivos, apegando-se a seus professores no bloco 31, ouvindo e imaginando histórias, brincando, rindo e cantando ainda que em meio à fome, à lama e ao frio. Sem dúvida, as crianças não eram imunes ao terror nem ao risco da morte, mas muitas conseguiram opor-se à força desumanizadora e caótica ao redor.
A memória foi uma das estratégias utilizadas por Dita para vencer o desespero e a fome. Uma das coisas que aprendeu a fazer foi “transformar recordações em fotografias, e sua cabeça, no único álbum que ninguém poderá lhe tomar” (p. 81). Assim, a criança ia decorando sua mente com imagens do passado, para não esquecer quem era, para não esquecer que um dia fora feliz. Ao deitar-se no catre de palha, ao ver-se sozinha, a menina recordava fragmentos de seu passado e assim alimentava sua esperança de um dia sair dali.
A imaginação foi outra grande estratégia de sobrevivência de Dita. E nesse ponto, os livros da biblioteca foram fundamentais, tanto os oito livros que ela guardava, que incluíam uma gramática russa, um livro de psicologia, um romance francês e um de H.G. Wells entre outros, quanto os livros vivos, isto é, prisioneiros voluntários que se dispunham a contar para as crianças histórias de outras obras da literatura universal, como O Conde de Monte Cristo, além das histórias da Bíblia. Há uma cena em que Dita diz a uma senhora que hesitava em colaborar como livro vivo: “[…] durante uma história, as crianças esquecem que estão nesse estábulo cheio de pulgas, deixam de sentir o cheiro de carne queimada, deixam de ter medo. Durante esses minutos, as crianças são felizes. […] Se olharmos para a realidade, sentimos asco e raiva. Só nos resta a imaginação, senhora Markéta” (p. 406).
Gladir Cabral
Antonio Iturbe. A Bibliotecária de Auschwitz. Trad. Dênia Sad. Rio de Janeiro: Agir, 2014.