Racismo e religiosidade em “A Mesa do Senhor”, de Alice Walker
Há uma canção Negro Spiritual escrita no século XIX que atravessou o século XX e ganhou interpretação famosa na voz de Clara Ward: “I’m gona walk and talk with Jesus”, anunciando a recepção que Jesus dará aos convidados nas bodas do seu Reino, conforme está no livro de Apocalipse 19. A canção expressa um sonho de mudança diante da realidade de opressão e violência em que vivia, e vive ainda, o povo afro-americano.
O conto “A Mesa do Senhor”, escrito por Alice Walker (1970), é inspirado na canção tradicional e dedicado à cantora gospel Clara Ward (1924-1973). O conto faz lembrar a canção que fala do grande banquete prometido por Jesus aos que nele confia. Os escravos, que jamais puderam sequer sonhar em estar à mesa com seus senhores, alimentavam o sonho de um dia estarem à mesa com o Senhor dos senhores. É desse sonho que o conto trata, um sonho atualizado para a América do Norte dos anos 1970.
O conto se inicia com uma senhora idosa e humilde, vestida com roupas apropriadas, mas rotas e envelhecidas, para ir ao culto. Está diante de uma igreja toda branca. Essa mulher preta trabalhou a vida inteira como empregada doméstica em casa de brancos. Seu rosto enigmático, envelhecido e fechado desafia interpretações. A igreja é branca, o bairro é de brancos, ela é que parece destoar. Num país onde a segregação racial seguiu a libertação dos escravos, tornou-se comum a estranha divisão entre igrejas para prestos e igreja para brancos.
Inadvertidamente, a mulher, que enxerga muito mal, entra numa igreja de brancos e é recebida com frieza. O dia é de inverno. Frio congelante na rua, um pouco menos frio dentro do templo, gelado nos corações. Após subir as escadarias, a mulher senta-se no último banco, contempla os vitrais e passa a adorar, cantando mentalmente algum hino antigo. Os fiéis chegam depois. A reação deles é de desconcerto, primeiro, depois irritação, hostilidade e rejeição. O reverendo tenta convencê-la de que ela está na igreja errada, “como se fosse possível escolher a igreja errada”. O jovem zelador da igreja também não conseguiu convencê-la a sair. Foram as mulheres, cheias de indignação, que forçaram seus maridos a “tirarem dali a velha de cor”.
Uma vez expulsa da igreja, a mulher, perplexa, vê aproximar-se pela longa estrada uma figura conhecida: Jesus. Era o mesmo da imagem que tinha em sua casa: vestes brancas, sandálias, olhos castanhos, como se sorrisse. Ao chegar perto dela, Ele disse: “Segue-me”. Os dois passam a caminhar juntos em silêncio profundo estrada afora, sorrindo e conversando. As pessoas da igreja nem tomaram conhecimento. “Aquela gente da igreja nunca soube o que aconteceu à velha. […] Algum tempo depois, eles ouviram falar que uma velha morrera em algum ponto da estrada”.
É possível estar numa igreja e mesmo assim não enxergar o outro. É possível estar na igreja e nem sequer enxergar a presença de Jesus. Ele vem para andar com o oprimido, o excluído, o desprezado. Ele traz o sorriso de Deus e um gesto de acolhimento. Sua graça transcende a aridez das instituições religiosas. Sua luz revela as sombras ocultas de nossa hipocrisia e nos mostra quem de fato somos.
Gladir Cabral
Alice Walker. De amor e desespero: histórias de mulheres negras. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.