A poética de Lutero
Nem os estrondos dos tímpanos, nem o som estridente das trombetas, nem a harmonia arrastada dos órgãos, Martinho Lutero gostava mesmo era do som harpejado e aveludado do alaúde, um instrumento ancestral do violão, com o qual escreveu 36 hinos celebrando a beleza do evangelho de Jesus e os princípios da Reforma. Com essa disposição e inspiração Lutero inaugura o hino protestante ao publicar em 1529 o primeiro hinário em Wittenberg, uma coletânea para a congregação.
Lutero não entendia a arte em sua autonomia, mas sempre a serviço da fé, do ensino e da adoração. Seus hinos foram criados a partir desse compromisso primeiro com as Escrituras e com o movimento da Reforma. Sua produção musical é variada: ele versificou alguns salmos, traduziu hinos latinos, escreveu hinos originais e reciclou muitas canções e melodias do folclore alemão.
Uma das características dos hinos de Lutero é a utilização da língua alemã, em lugar do tradicional latim. Lutero queria ouvir a voz do povo e trouxe de volta ao povo o direito de participar da liturgia cantando. Lutero preocupou-se inclusive com a criança, escrevendo canções de Natal pensando em ensiná-las à luz do evangelho. Nos hinos de Natal de Lutero aparece o sentimento, a dimensão humana e redentora do evangelho, a ternura de Jesus. “Ah pequeno Jesus, querido do meu coração, vem dormir e te abrigar no santuário do meu coração, para que eu jamais venha a te esquecer”.
É preciso lembrar que, no período anterior à Reforma, o povo era proibido de cantar na Igreja em sua própria língua. De acordo com o Concílio de Basileia (1431-45), o povo só podia cantar no vernáculo ao ar livre, nas peregrinações ou nos sepultamentos. Nas capelas e catedrais, usava-se apenas o latim, que só o clero dominava.
Outra característica dos hinos de Lutero é a sua ênfase comunal. Seus hinos foram escritos de modo simples, para que fossem cantados em uníssono pela igreja. Muitos deles foram escritos na perspectiva do povo, da comunidade, como o hino baseado no Credo Niceno: “Nós cremos todos num só Deus, Criador de céu e terra. Nós todos somos filhos seus…”.
Outro aspecto importantíssimo na obra musical de Lutero é que seus hinos dialogam com as Escrituras. O próprio hino “Castelo Forte” é uma releitura do Salmo 46. E há um hino de Natal escrito por Lutero a partir do relato de Lucas 2. Nesse hino em particular, há uma sofisticação poética, o ponto de vista da canção é do anjo mensageiro que anuncia aos pastores o nascimento do menino Jesus. “Eu venho a vós dos altos céus, trazendo anúncio bom de Deus…”. Mas Lutero também escreveu em diálogo com João 1.29; Isaías 6, Salmo 130; 12; 124, Filipenses 4.7.
Lutero amava a Palavra e amava a música. Não por acaso, ele escreveu certa vez: “Depois da Palavra de Deus, a nobre arte da música é o maior tesouro do mundo”.
Gladir Cabral