o céu dos ingleses
“Eu não penso como mamãe. Não falo nada porque em negócio de religião ela não admite discussão. Não posso ter esse medo que mamãe tem porque eu penso comigo: ‘Se meu pai for para o inferno, para onde irão meus tios e todos os homens de Diamantina a não ser Seu Juca Neves?’. Eu sei que Deus é justo. Já sofri muito em pequena por causa de vovô e não quero agora sofrer também por causa de meu pai.
Na escola de Mestra Joaquina eu não podia ter a menor briguinha com uma menina, que ela não dissesse logo: ‘Meu avô não é como o seu que foi para o céu dos ingleses’. Meu avô não foi enterrado na igreja porque era protestante; foi na porta da Casa de Caridade e até hoje se fala nisso em Diamantina. Quando ele estava muito mal, os padres, as irmãs de caridade e até Senhor Bispo, que gostava muito dele, pelejaram para ele se batizar e confessar para poder ser enterrado no sagrado. Ele respondia: ‘Toda terra que Deus fez é sagrada’. O vigário não quis deixar dobrar os sinos, mas os homens principais de Diamantina foram às igrejas e fizeram dobrar todos os sinhos da cidade o dia inteiro. Ele era muito caridoso e estimado. Quando o doente não podia, ele mandava os remédios, a galinha e ainda dinheiro. A cidade inteira acompanhou o enterro. Quando ele morreu eu era muito pequena e até hoje se fala em Diamantina na caridade do Doutor Inglês, como todos o chamavam. Um homem assim pode estar no inferno?”
(Helena Morley, Minha Vida de Menina, 9 nov. 1893). [Helena Morley era o pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, de pai protestante e mãe católica, que manteve um diário de infância que veio a se tornar muito famoso na década de 1940]