Mulheres que dirigem
No início de março comemora-se o Dia Internacional da Mulher, data escolhida por conta da morte no dia 8 de março de 1857 em Nova Iorque, Estados Unidos, de cerca de 130 mulheres que, em greve, manifestavam por melhores condições de trabalho, menor jornada e equiparação salarial com os homens. Houve repressão e as mulheres, trancadas na fábricas, morreram em um incêndio.
É uma homenagem e serve para lembrar a luta das mulheres pela afirmação de sua dignidade e por tratamento igualitário. É incrível pensar que em um passado recente foram realizadas campanhas contrárias a participação das mulheres nas eleições por meio do voto. Imagens praticamente inacreditáveis foram lançadas como cartões postais de grupos contrários à ideia de que as mulheres poderiam votar em eleições, conhecidas como campanhas “anti-suffrage” (veja aqui em inglês).
Nos dias de hoje temos vários que ainda questionam a possibilidade de mulheres exerceram postos de liderança e pastores se esmeram em defender suas convicções fundamentadas. Por outro lado, muitas igrejas aceitam, algumas há vários anos, a presença de mulheres nas mais diversas posições, incluindo a de pastora, realidade que mais recentemente se fez presente em segmentos das duas maiores denominações brasileiras: assembleia de deus e batistas.
Haveria um olhar diferenciado a partir das mulheres? Não sei a resposta, sei que comecei a reunir filmes dirigidos por mulheres e que vi recentemente. Foi um interessante exercício observar a forma como determinadas temáticas são abordadas e pensar um pouco como são oferecidos olhares e enquadramentos privilegiados para determinadas situações, muitas das quais carregadas de tensões e dificuldades de difícil solução. Comentarei aqui apenas 5 dos mais de 20 filmes que identifiquei.
O primeiro vem do Irã, uma diretora que entra na onda do sucesso que este país tem merecido já há alguns anos. Em 2000 Samira Makhmalbaf dirigiu “O quadro-negro”. Filha do cineasta Mohsen Makhmalbaf, que possui longa carreira e que participou dos projetos da filha. Samira dirigiu seu primeiro filme com 17 anos (A maça), tendo seu reconhecimento mantido nas produções seguintes. Caso deste “O quadro-negro”.
A história por ela contada beira o surreal, e não consegui verificar se é algo que efetivamente ocorre. Ela nos conta em seu filme o cotidiano de professores que vagam no deserto, entre as fronteiras em guerra de Irã e Iraque carregando um quadro-negro nas costas na busca de alunos soltos nas diferentes vilas e povoados. Eles vagam e buscam trocar pelo ensino de operações básicas de matemática ou por uma alfabetização inicial um pouco de dinheiro ou comida.
A direção de Samira nos leva para esse cotidiano em que o quadro negro serve para várias coisas; não só para tentativas pouco efetivas de ensino-aprendizagem, mas também como maca, atadura ou para se criar um espaço privado sem acesso aos olhares curiosos. No meio da história uma mulher que tem como prioridade cuidar do filho e que se casa em meio a circunstâncias atípicas. Uma estória que nos leva a pensar nos papéis possíveis para um professor e de como esses papéis podem se tornar ainda mais especiais em realidades tão adversas e problemáticas. Não existe neutralidade no processo de ensino e aprendizagem, sempre nos lembra Paulo Freire.
Ainda pelo oriente outro filme que comento é o “Preenchendo o vazio” (2012), dirigido pela israelita Rama Burshtein e que trata do cotidiano de uma família judia ortodoxa que enfrenta uma pequena tragédia. A morte da filha mais velha no parto e a possibilidade de que o neto recém-nascido se mude para outro país por conta de decisões do pai-viúvo.
A direção de Rama fala alto, ela traz para as telas uma forte perspectiva da mulher e de seu papel numa sociedade em que a estas não é permitida centralidade, seja nos rituais religiosos, seja nas festas caseiras. Que riqueza, que diversidade e que olhares que a câmera de Rama nos brindam para contar essa singela história. Coisa bonita e interessante de se ver. Os rituais estabelecidos para a definição do casamento, a forma como o Rabino atua como mediador e orientador dos fiéis. Tudo isso tendo no centro a jovem irmã e suas ações em busca de respeitar as tradições, muitas e fortes no caso, mas também na busca de expressar seus desejos; ao mesmo tempo que sofre diante da pressão da mãe e de uma situação em que ela pode desempenhar o papel de solução.
Com abordagem mais leve entra na lista o filme “E agora onde vamos?” (2011), dirigido pela libanesa Nadine Labaki. Retrata a história de uma pequena vila, cercada por minas oriundas de vários conflitos por todos os lados e que possui apenas uma ponte quebrada para sua ligação com o mundo. Vila que tem em sua história períodos recentes de conflitos entre cristãos e muçulmanos que levaram vários moradores à morte. É essa dor e separação que une todas as mulheres do local, independente de seus crenças.
Após esses conflitos e agora quase que totalmente isolada, nessa pequena vila não são mais identificados conflitos religiosos. Uma
mesquita está erguida ao lado de uma igreja ortodoxa e a população se divide entre os dois credos, convivendo pacificamente. Porém a instalação de uma antena começa a desestabilizar aquele universo estável. Notícias de conflitos entre muçulmanos e cristãos começam a chegar pelo rádio e pela TV e isso vai mobilizando as mulheres em busca de formas, no mínimo, criativas para evitar que esta realidade aterrisse novamente por aquelas localidades.
De um lado homens bravios em busca de defender honras e crenças, de outro mulheres criativas e perspicazes em busca da paz e de uma convivência harmoniosa entre diferentes. Uma baita referência para tantos que exigem o direito às suas crenças e bradam em alta voz os limites e as fronteiras que a tal tolerância precisa respeitar. A mensagem do filme é evidente: em nome da vida humana é possível rever conceitos e valores, isso é ainda mais forte entre aquelas mulheres que perderam filhos, pais e maridos e que entendem que ter certezas de nada vale diante da morte e da separação de entes queridos. Tema difícil que este filme com leveza e humor pode nos ajudar a pensar alguns valores e convicções que possuímos.
Na linha que busca retratar o cotidiano com bom humor lembro também do filme “Herança” (2001), dirigido por Paula Hérnandez. Paula é uma das jovens cineastas do belo e importante cinema argentino. São vários os filmes produzidos em nosso país vizinho que têm trazido relevantes questões, tratadas com qualidade técnica e artística. Que bueno!
Neste filme é contada a história de pessoas que saem de seus países na busca do encontro de amores perdidos. Os protagonistas, um alemão recém chegado a Buenos Aires, tem seu destino cruzado com uma italiana há anos residindo na capital portenha. O mesmo motivo os levou àquele país: a busca de uma pessoa amada. Suas histórias e esperanças se encontram e dessa bonita relação é que se estabelece a tal herança do filme, não havendo laços de sangue, mas sim um desejo de construir relações e experiência numa realidade além-mar. Nesse encontro ambos encontram forças para seguir adiante, mesmo que isso represente mudanças de planos ou retornos protelados há vários anos. Interessante abordagem.
Por fim, vamos para o velho continente. Da Europa o filme selecionado foi “Polícia” (2011), dirigido pela francesa Maïwenn Le Besco. Filme feito no estilo de documentário em que a diretora interpreta o papel de uma fotógrafa que acompanha o grupamento da polícia responsável pelo combate aos crimes contra crianças e adolescentes. É esse olhar externo que o filme apresenta, o cotidiano de um departamento de polícia que por conta de sua área de atuação, convivendo com histórias que expressam muito da crueldade humana a partir de violências, geralmente sexuais, que crianças padecem.
Nesse sentido a câmera da diretora transmite a revolta cotidiana que envolve este trabalho, uma necessidade do urgente que celebra as pequenas vitórias e se deprime diante de cotidianas derrotas que redundam não só da maldade humana, mas também de uma estrutura social deficiente que corrobora e agrava situações de violência. São um conjunto de relatos, a maioria colhidos em depoimentos, que fundamentam a narrativa e acabam tanto por afirmar o importante trabalho de profissionais que optam por encarar este lado “sombrio da alma” em sua prática cotidiana, ao mesmo tempo que nos ajuda a lembrar do sofrimento cotidiano que estes profissionais enfrentam. Aqui lembro, em relação ao Brasil, de tantos que assumem o desafio de atuar no Sistema de Assistência Social, como também no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo ou ainda nos Conselhos Tutelares.
A lista de filmes seria imensa, várias outras diretoras têm nos brindando com um olhar, um enquadramento diferente que suas câmeras oferecem. Considerar esse “olhar feminino” é minha homenagem e o meu convite para que você, como eu, aprenda um pouco mais com as “mulheres-diretoras” que circulam mundo afora – não só no cinema – e que têm contribuído para nossas reflexões, nossos pensamentos e com as formas e lentes com que temos visto o mundo.
Alexandre Brasil Fonseca
Carolina Carteli
É muito interessante esta perspectiva do olhar feminino no cinema, eu incluiria ainda Sofia Coppola, Valerie Faris, Julie Delpy e Isabel Coixet na lista. Isto já daria uma boa tese.
Equipe do Blog Dignidade!
A lista é imensa e, certamente, pode gerar teses, artigos e, principalmente, bons papos. Sair do modelão utilizado e se abrir para novas perspectivas são uma das grandes virtudes do cinema. O que acontece a partir das diferenças geográficas, mas que também tem tido nesse olhar feminino uma bela contribuição.