Jejum e Imigração
A experiência de jejuar e orar sob influência da fé alheia em um contexto multicultural
Por Marcus Vinicius Matos*
“E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos?” (Mateus 25:38)

A igreja de St Margaret é o prédio mais antigo de Uxbridge, em Londres, datada de 1492
Nesse ano tive uma experiência familiar incrível. Através da minha filha, fomos convidados para jantar na casa de amigos de outra fé, muçulmanos. Foi a primeira vez que tive a oportunidade de conhecer, de perto e na intimidade do lar, pessoas de fé islâmica. E, como quase sempre ocorre com todo tipo de preconceito, nossas opiniões são absolutamente desafiadas pela realidade dos fatos. Foi exatamente isso o que ocorreu nessa experiência marcante, que compartilho aqui.
O preconceito é uma opinião sem fundamento, dizia Voltaire. E o que mais vemos hoje circulando na internet, e no zap, é justamente preconceito – muitas vezes baseado em ódio e mentiras, as chamadas “fake news”. Geralmente, mensagens de ódio contra estrangeiros e imigrantes são parte de campanhas de difamação que são produzidas para parecer que são expontâneas – como se tivessem surgido do nada, e como se fossem um simples reflexo das opiniões do cidadão comum. Na verdade, boa parte dessas mensagens que recebemos pelo zap são bem financiadas e produzidas, baseadas em pesquisas e algorítimos para atingirem o público certo. Essa é a nova cara da velha propaganda: mandar mensagens que mobilizem, pois esse é o objetivo de toda propaganda, como já ensinava o teólogo Jacques Ellul[i]. O objetivo é sempre mobilizar as pessoas a fazerem algo, mesmo que seja algo cruel, como no caso dos movimentos extremistas de direita que temos visto crescer no mundo.
Na Inglaterra, onde moro com minha família, uma mentira espalhada nas redes chegou a causar passeatas e tentativas de homicídio, quando uma multidão enfurecida atacou um hotel dedicado à hospedagem de famílias de refugidados. E, nesta semana, quando encerro este texto, outra vez militantes de extrema direita ameaçaram vandalizar um outro hotel destinado a hospedagem de famílias de pessoas que fogem de perseguição – política ou religiosa – e que buscam asilo no Reino Unido.[ii] Aparentemente, a atual verve política desses grupos de extrema direita ignora e contradiz, completamente, todos os mandamentos bíblicos que nos ensinam a acolher os estrangeiros e imigrantes – uma infinidade de textos, que incluem Levítico 19: 9-10 e 33-34; Êxodo 22:21; Deuteronômio 24:14, dentre outros. Esse tipo de ideologia política tem levado muitos cristãos a atear fogo na casa provisória daqueles a quem deveriam estar hospedando e vestindo.

Priscila e Aurora foram catar lixo na rua, em ação organizada pela Pastora Tina para cuidado com a comunidade e com o meio ambiente.
Pois é nesse contexto que tenho assistido, diariamente, o testemunho de cristãos que desafiam os preconceitos e discursos de ódio – e que vivem, de maneira bela, estes textos bíblicos citados. E aqui tenho visto cair, também, outro preconceito que circula facilmente pelos zaps de cristãos no Brasil: o de que a fé cristã no Velho Mundo estaria fria, morta ou abandonada. Minha experiência de imigração para Londres tem sido o contrário: tenho experimentado a fé cristã de uma maneira impactante, e que desconhecia, a partir da igreja local. Tenho que ser grato pela igreja que tenho. Deus provê de maneiras incríveis, e que a gente não espera.
Desde que retornamos para Londres, em 2021, fomos acolhidos de maneira inacreditárvel em Saint Margaret, Uxbridge – uma igreja cristã, fundada em 1492 e, desde a Reforma Protestante, parte da Igreja Anglicana. Uxbridge é uma localidade chocante para um brasileiro, nascido em um país católico. A pequena cidade (ou bairro de Londres) era equidistante de Londres, capital Protestante, e de Oxford, a capital Católica, na Guerra Civil Inglesa. Devido à essa localização, aqui foram tentados, em vão, os Parlamentos de Paz dessa sangrenta guerra religiosa – a maioria dos envolvidos foi enforcada. O local onde, hoje, fica a estação de metrô de Uxbridge, é também onde foram queimados três mártires protestantes na estaca, acusados de heresia; e, posterioremente, decaptados dois mártires católicos. Esse é um lugar absolutamente marcado pela violência motivada por diferenças religiosas e políticas. E é incrível que elas tenham sido superadas para que tenhamos, hoje, um projeto de igreja diverso, inclusivo e multicultural em Londres.
Nosso pastor, o Reverendo Andy Thompson, lançou ano passado, na data de hoje – dia de Santa Margaret – um livro sobre a história da nossa igreja.[iii] Andy é uma figura rara. Ele é um pastor surdo, e que nasceu mudo. Sua história mudou quando, aos 12 anos de idade, em um retiro da igreja, foi curado e começou a falar – para supresa de todos. Durante a faculdade, foi atuante na união cristã de estudantes, a UCCF (a ABUB do Reino Unido). Após o seminário, Andy foi enviado ao Oriente Médio como missionário da OM. Foi preso. Passou dificuldades em vários países pelas restrições à liberdade religiosa ali impostas. Sua vida muda novamente quando recebe o convite para ser pastor de toda a comunidade cristã em Abu Dabi, nos Emirados Árabes Unidos. Ali, onde passou aproximadamente 20 anos, se casou, teve filhos, e a experiência de ser pastor da única igreja cristã autorizada – onde pastoreou evangélicos, católicos, e ortodoxos. Nessa condição, atuou praticamente como um diplomata da fé cristã – recebeu o Papa Francisco duas vezes em sua casa; além de dois Arcebispos da Cantuária. Andy escreveu Jesus das Arábias[iv] – um livro proibido em alguns países do Oriente Médio –, onde conta como passou a entender mais do Novo Testamento ao viver na região, e como encontrou Jesus nas culturas dos povos do Golfo Pérsico, onde foi missionário.

Sem dúvida, é a visão dele que tem permitido o acolhimento de imigrantes como eu e minha família, e de tantos outros que frequentam, se convertem, e servem em nossa igreja. Londres é uma cidade onde se falam mais de 300 línguas por dia. Talvez seja a cidade mais global do mundo. E já há muito tempo. Bernard Cornwell, autor de The Last Kingdom (livros e série no Netflix), sugere que nas guerras entre Anglo-Saxãos e Vikings no século 8, nenhuma das duas tribos tentou conquistar Londres e impor sua cultura e língua, pois sabiam que era impossível dominar uma cidade tão diversa, já naquela época. Só na escola da minha filha, que é uma pequena escola primária na periferia de Londres, inspirada no filósofo John Locke, as crianças falam mais de 30 linguas por dia. Em termos de diversidade religiosa, há cristãos, muçulmamos, judeus, hindus, budistas, zoroastras e pessoas de diferentes religiões, que eu absolutamente desconhecia. Essa realidade, essa diversidade cultural, religiosa e étnica, tem uma beleza própria. E essa opinião não é minha, mas de Deus.
É Deus quem declara seu amor dizendo que quem quer que seja que creia Nele, será salvo. O Apóstolo Paulo explica essa visão, e esse amor, quando diz que na Igreja “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28). Esse texto expressa algo que é uma realidade encarnada e viva na minha igreja, onde somos iranianos, italianos, brasileiros, ingleses, galeses, armênios, iraquianos, peruanos, etc. A Bíblia é repleta de textos onde Deus demonstra seu amor pelos diferentes povos. Porém, muitas vezes, vemos o Povo de Deus se recusando a reconhecer esse amor. Isso ocorre, por exemplo, quando Jonas se recusa a ir pregar em Nínive. Ou quando os Judeus do tempo de Jesus discriminam os Samaritanos. Ocorre, ainda, quando os Apóstolos tem dúvidas sobre a aceitação completa dos gentios pela Igreja.
Quem não ama os imigrantes, não tem como evangelizar e proclamar o amor de Deus por eles. Se você proclama ódio contra muçulmanos, judeus, ciganos, indianos ou qualquer outro povo, ou qualquer outra minoria, seja étnica ou religiosa, você está indo diretamente contra um mandamento de Deus. Quem não ama os pecadores, não tem como levar até eles o amor inigualável de um Deus que ama pecadores. Quem discrimina imigrantes, nunca experimentou verdadeiramente este amor. O preconceito e o apoio a qualquer tipo de de política anti-imigratória é anti-bíblico, e trabalha contra aquela lindíssima profecia de João, que encerra o cânone:
Depois disso olhei, e diante de mim estava uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé, diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e segurando palmas. (Apocalipse 7:9)
Este ano uma coincidência de calendário, junto a essa diversidade cultural de Londres, me proporcionou a experiência do jejum. Eu não me recordava quantas vezes tinha jejuado na vida – mas certamente não preencheriam os dedos de uma única mão. Ocorre que, em 2025, a Quaresma cristã e o Ramadã mulçulmano praticamente coincidiram. Durante quase um mês, a quantidade de pessoas em jejum na cidade era enorme – o que deve até ter impactado o comércio. Foi nesse contexto que minha filha me pediu para jejuar. Ao ser perguntada porquê queria jejuar, a resposta dela foi afetiva: suas amigas estavam praticamente todas jejuando e, por essa razão, ela não poderia sentar junto com elas fora do refeitório, na hora do almoço. Por volta desse período, recebemos o convite para visitar uma destas famílias, muçulmana, que preparou um verdadeiro banquete para nos receber.
Nesta visita, a hospitalidade foi tocante, profundamente marcada por uma solidariedade entre imigrantes. Ao chegar à residência destas pessoas, descobri que elas ficavam de jejum desde às 5 horas da manhã; só tomando líquidos – alguns adultos, nem isso. E que, por volta do pôr do sol – horário que mudava a cada dia – eles quebravam o jejum, e faziam uma refeição em família. Me marcou também perceber que eles não faziam orações públicas em casa, como por exemplo, agradecer pela comida que seria compartilhada. Cada um saia do convívio da casa para o quarto, e fazia suas orações em sigilo.
Ao retornar dessa experiência, com uma filha querendo aprender a jejuar, busquei várias leituras sobre a prática do jejum entre cristãos. Encontrei práticas tão diversas quanto o número de denominações cristãs no mundo. A partir daí, decidi que eram melhor criar minha própria prática, para o contexto da nossa família, a partir dessas leituras. Propus para minha filha o seguinte: acordaríamos mais cedo, faríamos uma oração, e tomaríamos café da manhã; em seguida, iniciaríamos o jejum e só iríamos nos alimentar de novo na hora do jantar, em família. E oraríamos juntos pela manhã, e a noite. Fizemos uso do devocionário Common Prayer For Ordinary Radicals – uma das melhores compilações de tradições cristãs que conheço. Fizemos isso por duas semanas, dia sim, dia não. E essa experiência foi muito impactante para mim.
Jejum e oração nunca tinham feito tanto sentido juntos. Mas, nesse contexto de de imigração, pela primeira vez em minha vida, fizeram. Se tornaram parte da nossa espiritualidade individual, em família, e comunitária. E preciso encerrar este texto, escrito no dia de Santa Margarete – a mártir cristã que dá o nome à minha igreja -, com palavras de gratidão à minha comunidade eclesiástica e de fé. Certamente, a vida da Igreja em geral, e da nossa igreja em particular, é uma história de chegada e partida de pessoas, que podem ser imigrantes, clérigos, missionários ou mendigos. A igreja, como Deus, não faz acepção de pessoas e, se faz, não é igreja. O contrário da acepção, e da segregação, é o acolhimento e a hospitalidade – que são marcas de Cristo.

O Reverendo Tim Atkins e a Reader Anne Atkins recebem homenagem do Pastor Andy Thompson
Se estamos aqui, hoje, foi porque Deus usou pessoas para nos acolher e nos hospedar – dentro e fora da igreja. E quero mencioná-las aqui, porque se despedem, hoje mesmo, do serviço eclesiástico. Na primeira vez que pisamos em St Margaret Uxbridge, há 4 anos atrás, um casal de pastores nos acolheu. O Reverento Tim, e sua esposa, a também clériga, Anne Atkins. Eles nos receberam com um calor humano incrível, descomunal. Eles também foram da UCCF (a ABU no UK) e tiveram uma relação de amizade com John Stott e outras lideranças do movimento estudantil evangélico por aqui. Durante esses últimos 4 anos, eles oraram por nós, abriaram as portas da sua casa, e apoiaram nossas atividades na ABUB e na ABU Editora, não apenas com orações, como também com doações. Hoje, ambos encerram, já aposentados, seu papel no Conselho da Paróquia – e seu serviço ministerial.
Além deste casal, o Reitor da Paróquia de Uxbridge – que reúne duas Igrejas Anglicanas -, o Reverendo Andrew Stuart-Kennedy, também se aposentou, depois de 36 anos liderando. E ele encerrou os trabalhos, com uma frase incrível, que me marcou, e com a qual encerro este texto:
“O desafio para a igreja é não olhar para trás, com nostalgia; nem olhar para frente, com ansiedade. Mas, sim, olhar ao redor, com atenção”.
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*Marcus Vinicius Matos é professor efetivo (Senior Lecturer) de Direito Público em Brunel University of London, no Reino Unido. É doutor em Direito pelo Birkbeck College, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), e colaborador de Paz e Esperança, uma organização cristã de defesa dos Direitos Humanos na América Latina. É membro da Diretoria Nacional da Aliança Bílbica Universitária do Brasil (ABUB), e membro fundador da Rede Cristã de Advocacia Popular, a RECAP. É casado com Priscila Vieira, com quem é autor do premiado livro Imagens da América Latina: Mídia, Cultura e Direitos Humanos, e pai de Aurora. Torcedor do Flamengo. Siga no Instagram, Bluesky e Twitter: @mvdematos. Siga também a página do Blog Dignidade, no Facebook. As opiniões expressas nesse texto são de responsabilidade exclusiva do autor.
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Referências:
[i] ELLUL, Jacques, Propaganda: the formation of men’s attitudes., New York: Random House, 1965.
[ii] https://www.theguardian.com/uk-news/2025/jul/17/essex-police-warn-against-violence-as-far-right-exploit-asylum-hotel-tensions
[iii] THOMPSON, Andrew. The Dragon and the Virgin: Religion in Uxbridge. London: Amberley Publishing, 2024
[iv] THOMPSON, Andrew. Jesus of Arabia: Christ through Middle Eastern Eyes. London: Rowman & Littlefield Publishers, 2018.