Reflexões sobre dois eventos celebrativos, e duas concepções conflitantes de fé cristã e direitos humanos

Por Marcus Vinicius Matos*

 

Os Direitos Humanos talvez sejam o discurso mais poderoso que surgiu no século 20, a narrativa mais perturbadora da ordem mundial que nós conhecemos no campo do direito. E eu digo isso com tranquilidade, porque os Direitos Humanos já derrubaram regimes totalitários e ditaduras militares, já colocaram atrás das grades autoridades policiais e burocratas da violência, e já condenaram reis e presidentes em cortes internacionais. O fato de que tenham sido também utilizados para justificar intervenções militares disfarçadas de ação humanitária, não diminui, em nada, sua importância – apenas reforça que, mesmo aqueles que os violam, reconhecem o poder do discurso e da política internacional associada aos Direitos Humanos.

Imagine só isso: você ter direitos que não são conjugados a nenhum dever, que não são condicionados por nenhuma escolha moral, e nem limitados por qualquer condicionante política ou filosófica. Imagine se apenas por ser humano, por fazer parte da espécie humana, você tivesse direitos inalienáveis, ou seja, que não podem ser retirados de você por nenhuma atitude sua ou ação de algum estado, indivíduo ou instituição. Essa ideia, quando ela surge a primeira vez, ela é absolutamente revolucionária. Porque estamos falando de uma ideia que vem atrelada a uma concepção de valor intrínsica à humanidade, de uma ideia que promove a dignidade de seres humanos – seres vivos, que já tinham sido tratados como coisas. Ou pior do que são tratados os animais.

E para exemplificar isso, faço uma pergunta pra vocês: o que tem em comum uma mulher na Inglaterra no final do Século 19, um estudante brasileiro em meados do século 20, e um prisioneiro na base militar em Guantánamo, no século 21? Eles tem em comum ter tido – ou terem sido – bons advogados, que construíram argumentos semelhantes a respeito do tratamento de pessoas e animais. Explico, como fazem os advogados, com casos concretos.

No final do século 19, uma mulher escreveu uma carta anônima para o Parlamento Britânico pedindo a aprovação de uma lei que permitisse que as mulheres na Inglaterra fossem tratadas da mesma maneira que os cachorros. Ela explicava, de maneira eloquente, o problema: um marido havia batido em sua esposa até a morte e, devido à legislação da época considerar o crime como tendo o atenuante de defesa da honra, ou do exercício do Pátrio Poder, o marido homicida não foi punido. Se ele tivesse espancado seu cachorro até a morte, argumentava a escritora anônima, pelo menos ele teria sido multado…

Na década de 1960, no Brasil, o advogado Sobral Pinto dirigiu-se ao Quartel do Exército Brasileiro localizado na Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro. Ao chegar lá, se deparou com seu cliente, um estudante, jogado ao chão de um calabouço sem latrina, brutalmente ferido e espancado, dormindo sobre seus próprios fluidos. Ao constatar o quadro, o ilustre advogado entrou com uma petição na justiça, solicitando que fosse aplicada ao seu cliente a Lei de Proteção dos Animais, em vigor no Brasil da época…

No século 21, na Base Militar de Guantánamo, um advogado fez uso de audiência com um General do Exército dos Estados Unidos da América (EUA) para tentar entender quais eram as proteções jurídicas de seu cliente, um detento naquela prisão. O advogado perguntou ao General se a Constituição dos EUA, da Espanha, ou de Cuba se aplicavam ao seu cliente. Diante da negativa, mudou a pergunta. Mencionou, então, uma espécie de lagarto que habita a Bahia de Guantánamo e que estava ameaçada de extinção, e perguntou se os militares estavam, de alguma forma, protegendo aqueles animais a partir do direito internacional…

O que estes casos tem em comum é o fato de que na ausência de Direitos Humanos, as pessoas podem ser tratadas de maneira pior do que tratamos os animais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), completou 75 anos desafiando este tipo de infâmia. Na próxima seção quero compartilhar algumas reflexões acadêmicas sobre seu texto. Ao final, farei também algumas considerações sobre a relação entre Direitos Humanos e Fé Cristã.

Perspectivas e críticas globais: o estado da arte da DUDH

Retomo nosso objeto de celebração neste ano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que entrava em vigor 75 anos atrás. E algumas das ideias que eu vou discutir aqui, é importante dizer, não são minhas, mas de três colegas meus, os professores titulares Javaid Rehman, Manisuli Ssenyonjo e Alexandra Xanthaki, aqui de Brunel University London – que são gigantes no universo da direito internacional, e com quem tenho aprendido muito, em particular sobre a Declaração. Eu não sou internacionalista, minha atuação no campo dos direitos humanos se dá no ambito da teoria e da política pública e não no direito internacional. Mas talvez seja dos internacionalistas a primeira palavra que temos que ouvir sobre os 75 anos da DUDH – e fizemos isto em evento acadêmico recente aqui em Brunel.

Da esquerda para a direita: Alexandra Xhantaki, Javaid Rehman e Manisuli Ssenyonjo

Na ocasião, o Professor Javid Rehman nos falou da importância de relembrar o texto da Declaração e do contexto onde foi feita e adotada. Porque antes dela nunca houve um documento com tamanha declaração de direitos, adotado por tantos países. Não se trata de feito pequeno, a dificuldade de mobilizar tantos estados, representando seus cidadãos, para ratificar um texto com tantos direitos, não é tarefa fácil. Por isso, é preciso celebrar a Declaração. O texto da DUDH é poético, nas palavras de Javaid, há poesia naqueles artigos. Além disso, o texto reflete um momento específico da história, no período após a segunda guerra mundial, quando os países Aliados vencem a guerra e decidem avançar em medidas que pudessem prevenir novas violações de Direitos Humanos como aquelas que ocorreram na segunda guerra e, ao mesmo tempo, manter uma ordem internacional que guarantisse a paz.

O processo de articulação que levou à assinatura da DUDH foi de grande mobilização dos estados membros da Nações Unidas. Em comparação com a nossa constituição Federal de 1988, talvez seja possível dizer que a DUDH foi fruto de um processo semelhante de debate e construção coletiva do seu texto. Javaid nos lembrou, no entanto, que muitos países que assinaram a DUDH naquela época, hoje mudaram completamente de posição. É o caso por exemplo do direito à liberdade de religião e consciência, garantido na Declaração com o apoio do Irã e do Afeganistão, que hoje não apenas perseguem pessoas por motivo de conversão religiosa, como também promovem o que alguns especialistas chamam de um “Apartheid de Gênero” contra mulheres.

Para Manisuli Ssenyonjo, a eficácia da DUDH dependeria de três coisas fundamentais: paz, prevenção à violação de Direitos Humanos, e mecanismos de sanção às violações de Direitos Humanos. Esses três aspectos, seriam fundamentais para superar um dos grandes entraves para a efetivação dos direitos proclamados na DUDH, cuja eficácia está prevista no seu artigo 28:

Todos os seres humanos têm direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Segundo Manisuli, não há ainda uma ordem social e internacional capaz de realizar as promessas da DUDH e um dos sintomas graves dessas contradições é o fato de que não existe uma Corte de Direitos Humanos nas Nações Unidas, capaz de exercer poder judicial sobre a ordem internacional vigente. Manisuli questionou, então, se em 75 anos da DUDH, o artigo 28 foi respeitado ao menos alguma vez pelos países signatários da Declaração.

Na mesma ocasião, a atual Relatora Especial da ONU para Direitos Culturais, Alexandra Xanthaki também teceu críticas e elogios à DUDH. Segundo ela, os principais problemas da Declaração são a sua falta de operacionalidade, e a não inclusão, no seu texto, de direitos coletivos e sociais. Para Alexandra, as falhas da ONU na implementação das promessas não cumpridas da DUDH são falhas dos Estados membros e, em última análise, falhas nossas – dos cidadãos representados por seus estados. Por outro lado, ela destaca, vivemos em uma época onde os estados reconhecem os Direitos Humanos, e quando as novas gerações possuem muito mais sensibilidade para proteger os direitos de minorias.

Para além da crítica e da celebração restam, no entanto, perguntas sobre o papel das organizações religiosas no cenário dos Direitos Humanos atual, e nos 75 anos de implementação da DUDH.

Direitos Humanos e Fé Cristã: inclusão ou exclusão?

Evento celebrativo promovido pela Rede Cristã de Advocacia Popular, disponível no canal da RECAP no YouTube, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0LMqvTMtw3g

Que os Direitos Humanos sejam descendentes diretos do Direito Natural, praticamente ninguém duvida. Isso significa que a ideia de Direitos Humanos tal qual expressa na Declaração, é resultado de muitos séculos de debates teológicos sobre o conceito de Justiça. Penso que estes são baseados em dois conceitos teológicos importantes: a Graça universal de Deus, e a Imago Dei. Sem sombra de dúvida, os Direitos humanos como discurso incondicional de defesa do ser humano, é baseado na ideia de amor incondicional de Deus por todos os seres humanos. A ideia de que nenhum ser humano é merecedor da Salvação, mas que ela vem pelo amor e pela graça imerecidos, parece ser um antecedente teológico dos Direitos Humanos, como direitos inalienáveis cuja violação consiste em crimes imprescritíveis.

No mesmo sentido, vem daí também o problema e a solução para a compreensão equivocada que muitos cristãos tem dos Direitos Humanos: seriam eles “apenas” para defender bandidos, criminosos? A resposta é um retumbante não, uma vez que são direitos de todos os seres humanos, e não apenas daqueles que cometeram crimes. Mas a pergunta, de certa forma, lembra as interações de Jesus com seu povo, no Novo Testamento: os israelitas e seus líderes religiosos estavam, à todo tempo, questionando porque Deus estaria preocupado em salvar os gentios, os pecadores…e a resposta de Jesus em Marcos 2:17 é ilustrativa: são os doentes que precisam dos médicos, e não os sãos. Ora, o mesmo argumento é aplicável a universalidade dos Direitos Humanos: são aqueles que cometeram crimes e que serão punidos pelo Estado, que mais precisam ter garantidos a sua humanidade. O parâmetro mínimo dos Direitos Humanos é que eles valham para os piores seres humanos. Se isso for atingido, certamente valerão para todos os seres humanos.

São, afinal, os detentos, os presos, os que mais frequentemente são sujeitos à violação de seus Direitos mais básicos, através da tortura e do estupro em instituições penais. É para impedir à violação desses corpos presos, feitos à imagem e semelhança de Deus, que os Direitos Humanos proibem a prática da tortura – que é, em si, um abuso e tentativa de destruição da própria imagem de Deus, como ocorreu na Paixão e crucificação do Cristo. É neste sentido, brutalmente teológico, que os Direitos Humanos devem ser aplicados aos piores seres humanos. Este é um parâmetro mínimo que deve ser sempre adotado pelas autoridades.

Em evento promovido pela Rede Cristã de Advocacia Popular em celebração aos 75 anos da DUDH, tivemos a oportunidade de ouvir o Defensor Público da União e Presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), André Carneiro Leão, que destacou o papel dos cristãos e das organizações cristãs na defesa e promoção dos direitos humanos no Brasil. André nos lembrou dos muitos homens e mulheres de fé que lutaram contra o autoritarismo no Brasil e daqueles que deram suas vidas na defesa de sua fé e das pessoas que tinham seus Direitos Humanos violados cotidianamente no país. O presidente do CNDH falou também sobre os atuais desafios de reestruturação do Conselho e da efetivação de um sistema de proteção de Direitos Humanos no Brasil.

Conclusões

Os Direitos Humanos, como conceito, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como documento, sem dúvida não são imunes à críticas. E há pelo menos duas críticas que podem ser feitas a eles. Considero que uma delas seja uma crítica de exclusão e, a outra, de inclusão. Acredito que a posição dos cristãos deve ser, sempre e de maneira inegociável, pela segunda. A primeira posição de crítica aos Direitos Humanos é aquela que deriva de valores éticos que foram excluídos da esfera pública pelos próprios estados membros da ONU, os países Aliados, após a Segunda Guerra mundial. Trata-se de críticas aos Direitos Humanos que são baseadas em valores éticos produzidos pelos países do Eixo na época – Alemanha, Itália e Japão, mas que também eram encontrados na Espanha e em outros países declarados neutros. Tais valores são o oposto do exposto no preâmbulo e nos 30 artigos da DUDH.

Foi um grande espanto perceber que, no Brasil dos últimos 5 anos, diversos grupos cristãos se prestaram a apoiar este tipo de posição. Em casos extremos, muitos líderes religiosos, pastores e presbíteros serviram a governantes que afirmaram que os Direitos Humanos eram “esterco da vagabundagem”. Mais que um assombro, foi um completo escândalo ver cristãos conclamarem pessoas à violência em solo nacional e internacional, promoverem o armamentismo e questionarem o genocídio. É diante desse quadro que precisamos reafirmar a fé, o amor a Deus e ao próximo, e os limites ao exercício do poder dos estados estabelecidos na DUDH.

Por outro lado, as críticas relevantes que precisam ser observadas são aquelas que buscam a inclusão de mais pessoas, estados, direitos e valores na DUDH. Trata-se de conjunto de críticas aos Direitos Humanos que questionam os usos interesseiros, mesquinhos e econômicos das guerras e intervenções humanitárias; das críticas que se voltam contra o uso dos Direitos Humanos para fazer valer a lei dos países mais fortes e desenvolvidos, passando por cima do direito à autodeterminação dos povos, da promoção da justiça social, e do combate à pobreza extrema. Estas são as críticas aos Direitos Humanos e a DUDH que devem ser levadas à sério. São estas as perpectivas a partir das quais os cristãos devem defender os Direitos Humanos e buscar incluir mais pessoas no hall da humanidade – os famintos, os sedentos, os estrangeiros, os sem roupas, os enfermos e os presos, de que Jesus nos fala em Mateus 25:35-45, e pelos quais haveremos de ser julgados, por nossa omissão.

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*Marcus Vinicius Matos é professor efetivo (Lecturer) de Direito Público em Brunel University London, no Reino Unido. É doutor em Direito pelo Birkbeck College, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), e colaborador de Paz e Esperança, uma organização cristã de defesa dos Direitos Humanos na América Latina. É membro da  Diretoria Nacional da Aliança Bílbica Universitária do Brasil (ABUB), e membro fundador da Rede Cristã de Advocacia Popular, a RECAP. É casado com Priscila Vieira, com quem é autor do premiado livro Imagens da América Latina: Mídia, Cultura e Direitos Humanos, e pai de Aurora. Torcedor do Flamengo. Siga no Instagram e Twitter: @mvdematos.  Siga também a página do Blog Dignidade, no Facebook. As opiniões expressas nesse texto são de responsabilidade exclusiva do autor.

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