A dignidade das lembranças que sempre retornam para o mesmo lugar.

 

Lidia Loback*

 

Uma menina de 4 ou 5 anos, com o entusiasmo de uma criança qualquer quando vai brincar, sai de sua casa em companhia de sua mãe e irmã mais velha para um dia diferente.

A mãe carrega bolsas com pedaços de lençol velho, uma garrafa de café, pão caseiro já cortado untado com margarina, uma marmita de “bóia-fria” contendo o suficiente para as três passarem o dia e muito desejo de voltar para casa com novidades para o marido, também, “bóia-fria”.

Para as crianças é uma festa. Para a mãe: uma colheita de algodão. A roça é linda! As flores abertas transformadas em algodão. O trabalho é para muitos na mesma situação daquela mãe. Conversas animadas se espalham pelas fileiras das pequenas árvores, o encarregado, filho do dono da roça caminha supervisionando o serviço, afinal, não se pode deixar algodão para trás.

As pessoas com os sacos amarrados à cintura arrastam folhas, gravetos e tudo o mais por onde o fardo passa. No meio da roça está a balança. Velha e enferrujada recebe os fardos repletos de algodão. A renda do trabalho depende do peso do algodão colhido. Feita a pesagem o saco é despejado na caçamba de um pequeno caminhão ali estacionado, e depois retorna para a fila dos sacos vazios à espera de outro trabalhador.

A mãe, numa tentativa de proteger as crianças, amarra um pedaço de lençol velho em quatro pés de algodão, dos mais fortes que conseguir encontrar. Embaixo da “cabaninha” estão as crianças, a garrafa de café, a comida e o lanche. Mas, as crianças não permanecem por muito tempo ali, correm, brincam com o encarregado, se juntam com outras crianças para a festa. Não muito tempo depois inicia-se os sintomas de insolação. Febre, tontura, vômito… Enfim, a mãe desesperada tem de tomar uma atitude rápida que não estava em seus planos: pegar as meninas, antes do dia de trabalho acabar, juntar os cacarecos esparramados por baixo dos pés de algodão e partir para a casa.

Planos frustrados. Não poderá contribuir no orçamento doméstico, continuará recebendo diariamente seu esposo cansado do sol, enfraquecido pela força exercida no facão no canavieiro, exaurido de quebrar pedras, e as vezes, machucado direto para o hospital, pelo facão, foice, cólica renal e etc.

Ao mesmo tempo, não pode se distrair com a frustração. É preciso acolher duas crianças febris, chorosas e sem forças para caminhar.

A casa oferecia os cuidados básicos que precisavam: banho gelado e descanso, protegidas do calor e da exposição solar.

Foto de Shuhrataxmedov.

 

O tempo passou. As crianças cresceram. Não precisam mais ir para a roça. O pai está aposentado, mas não parou de trabalhar. É zelador da igreja que frequenta. A mãe já passou por momentos bem piores mas está bem. Graças a Deus o tempo passou.

A  menina mudou pouca coisa. Cresceu, amadureceu, mas sente saudades. Da marmita do pai, da água da garrafa térmica, das brincadeiras na roça.

A menina é caçula. Inúmeras vezes esperava o pai voltar da roça para trazer-lhe o que sobrara da marmita. Não porque não havia comida em casa, mas porque, para a caçula, aquela era a comida mais gostosa! Até hoje o cheiro da marmita e o pão enrolado num papel visitam a lembrança da menina.

Enquanto os adultos lutavam pela sobrevivência a menina curiosa que era, acompanhava as conversas, prestava atenção e, de certa forma, sofria com eles. Um dia ela ia sair dali, mas as lembranças sempre retornariam para o mesmo lugar.

 

Originalmente publicado em: http://www.respingosdagraca.com.br/infancia/algodao-insolacao-e-a-marmita-do-pai/

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*Lidia Loback é pastora e assitente social.

É coordenadora do NUSELON – Núcleo Social Evangélico de Londrina e pastora na Igreja Casa de Oração Para Todos os Povos.

Formada em Assistência Social pela UEL e em Teologia pela UNIFIL.

É casada com Lisanias Loback e mãe.

Cotidianamente escreve em seu blog, Respingos da Graça.

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