A VOZ DA FÉ
por Cleber Santos Oliveira
Revisão Gabriele Greggersen
Certa vez C.S. Lewis encontrou entre a pilha de cartas que se amontoavam em sua mesa uma correspondência cujo remetente não lhe era familiar. Nesta carta o remetente, dr. James Welch, editor chefe da BBC, convidava o professor de Oxford para proferir uma série de palestras ao vivo na estação de rádio da BBC. Este episódio aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial. Lewis aceitou o convite, e, durante o conflito armado, da cabine de transmissão da rádio britânica, o catedrático de Oxford proferiu uma série de palestras radiofônicas sobre a fé cristã. A versão final do material produzido durante as palestras no tempo de guerra conhecida como Cristianismo puro e simples é considerada uma das obras cristãs mais importantes de C.S. Lewis.
O Cenário
No dia 1° de setembro de 1939, a Alemanha nazista governada pelo ditador anti-semita Adolf Hitler, conjuntamente com a União Soviética, invadiram a Polônia. Era o início da Segunda Guerra Mundial. Foram seis anos (de 1939 a 1945) caracterizados por um estado de guerra total com mais de 70 milhões de mortos. Com a Europa de um lado e o Leste da Ásia de outro, o conflito global foi marcado por acontecimentos impressionantes como o Holocausto, o ataque à Base Naval de Pear Harbor nos EUA, o massacre em BabynYar próximo a capital ucraniana Kiev e o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagazaki. De acordo com o historiador Geoffrey Blainey (2004, p. 306), Hitler e Stalin foram os líderes decisivos que moldaram a Segunda Guerra Mundial e conjuntamente com Mussolini “comungavam uma forte determinação de reescrever os resultados da Primeira Guerra Mundial. […] A luta que começou em 1939 era a oportunidade que há muito tempo esperavam, feita sob medida”.
Além da conflagração que consumiu milhões de vidas, a Segunda Guerra Mundial “foi, também uma guerra de ideologias políticas concorrentes – uma guerra de palavras” (CAWTHORNE 2020, p. 7). Se de um lado “Hitler e Stalin cultivavam uma certa aptidão por contar mentiras plausíveis a seu povo e ao mundo […] marechais-de-campo da propaganda numa época em que a influência era ainda mais ampliada pelo rádio e pelos filmes” (BLAINEY, 2004, p. 306), Winston Churchill, Primeiro-ministro do Reino Unido, destacou-se pelo domínio da linguagem. Considerado como “o único homem que poderia enfrentar a ameaça nazista” e possuidor de uma notável oratória cujos discursos ecoaram por todo o Reino Unido pelas ondas do radio “reunindo o povo britânico quando eles pareciam condenados a perder”, Churchill “mobilizou a língua inglesa e enviou-a para a batalha para estabilizar seus compatriotas e animar os europeus, sobre quem longa noite escura de tirania tinha descido” (CAWTHORNE apud MURROW). Para o presidente John F. Kennedy “a qualidade incandescente de suas palavras iluminou a coragem de seus compatriotas” (KENNEDY apud CAWTHORNE, 2020, p.9 e 7).
À procura de um orador
De acordo com Alister McGrath, teólogo cristão e escritor, a BBC procurava um orador que não falasse a partir de uma agenda denominacional, mas que atingisse a totalidade da nação. A emissora não se via como voz da igreja oficial do país e C.S. Lewis era precisamente o que a empresa procurava. James Welch, diretor de transmissão religiosa da BBC, não conhecia Lewis pessoalmente, mas ficou profundamente tocado com a leitura do livro “O problema do sofrimento” e com a visão cristã do autor. Welch escreveu uma carta endereçada ao professor de Oxford convidando-o para participar das transmissões religiosas e enfatizou que a qualidade de pensamento e a profundidade da convicção que encontrou em seu livro precisavam ser compartilhadas com muitas outras pessoas. Na carta, Welch pediu que C.S. Lewis falasse aos ouvintes da emissora sobre como ele enxergava a fé cristã na qualidade de leigo. Katheleen Norris (2012, p. XXII), escritora, teceu um interessante comentário a esse respeito na introdução da publicação de Cristianismo puro e simples:
Falando unicamente com a autoridade da experiência de leigo e ex-ateu, C.S. Lewis disse aos ouvintes na rádio que o motivo pelo qual fora selecionado para a missão de explicar o cristianismo para a nova geração era o de não ser ele um especialista no assunto, mas antes “um amador… e um iniciante, não uma mão calejada”. Confidenciou a amigos que aceitara a tarefa porque acreditava que a Inglaterra, que passara a se considerar como uma parte de um mundo “pós-cristão”, nunca tinha aprendido de fato, em termos simples, em que consistia a religião. Assim como SØren Kierkeggard antes dele, e de Ditrich Bonhoeffer, seu companheiro, Lewis buscou, em Cristianismo puro e simples, nos ajudar a ver a religião com novos olhos, como uma fé radical cujos partidários devem ser comparados a um grupo clandestino agrupado numa zona de guerra, num lugar onde o mal parece predominar, para ouvir mensagens de esperança vindas do lado livre.
A voz da Fé
Ao mesmo tempo em que uma profunda ansiedade e incerteza se expandiam além das fronteiras do império britânico ocasionados pela deflagração da guerra, ouvia-se pela maravilha da propagação sonora uma voz amiga, “a voz da fé”, como ficou conhecida, articuladas do outro lado do aparelho receptor por um professor irlandês conhecido como C.S. Lewis. Por meio das ondas da emissora de radio da BBC a voz da fé ressoava como um oásis no deserto expressando com clareza a própria visão cristã do locutor orientada por uma ortodoxia básica da fé cristã, propiciando aos seus ouvintes a reflexão sobre a vida cristã e o empenho por vivê-la em conformidade com esta esperança. Após a derrota da França, em junho de 1940, a Alemanha iniciou a tentativa de obter superioridade aérea sobre a Grã-Bretanha, como um prelúdio à sua invasão àquele território. Quase todas as noites os alemães bombardeavam Londres (o que se denominou “A Blitz”), e a população civil da cidade tinha que buscar refúgio em abrigos antiaéreos ou no sistema de transporte subterrâneo (denominado “Subterrâneo” ou “Tubo”). Apesar de meses de ataques aéreos contínuos, a Alemanha não foi capaz de destruir a Força Aérea Real Britânica (RAF). No outono de 1940, a invasão foi adiada indefinidamente. A campanha de bombardeamento contra a Inglaterra continuou até maio de 1941. Finalmente, devido aos preparativos para a invasão da União Soviética em junho de 1941, os alemães suspenderam os ataques aéreos contra a Inglaterra. (Fonte: MUSEU DO HOLOCAUSTO, online, tradução nossa).
De acordo com McGrath (2013) W. R. Matthews, deão da St. Paul’s Cathedral de Londres pediu que C.S. Lewis falasse em estações da Força Aérea Real (RAF) com o objetivo de ensinar e encorajar a fé cristã aos jovens. Mesmo com a vasta experiência do ensino exercidas no Magdalen College nas áreas da Filosofia, Línguas e Literatura Inglesa desde os idos de 1925, Lewis teve dificuldades em traduzir suas ideias para uma linguagem não-acadêmica. Apesar dos contratempos, em meio à exaustiva agenda e visitas às estações de acampamentos da RAF, Lewis interpretou as Sagradas Escrituras de maneira criativa e encorajou os capelães militares e os combatentes das forças armadas britânicas com a mensagem cristã. Tal experiência temporal trilhada nas avenidas da aflição e ansiedade durante o seu engajamento na RAF, quando pode constar de perto a situação dos combatentes, serviu-lhe de experiência necessária para falar sobre o problema do sofrimento humano e para se comunicar de maneira mais habitual nas palestras radiofônicas.
A primeira de quatro séries de palestras foi ao ar às 19h45 do dia 6 de agosto de 1941. Cada palestra durava em torno de 10 a 15 minutos, perdurando entre 1942 e 1944. Em 1952 o conteúdo divulgado nas palestras foi trabalhado e publicado em três volumes separados resultando no que conhecemos hoje como Cristianismo puro e simples, apontado entre os 50 principais livros que moldaram os evangélicos, conforme artigo publicado na revista Cristianismo Hoje (2006), e “atualmente considerada a mais refinada obra de apologética de Lewis” (MCGRATH, 2014, p. 230). O teólogo cristão McGrath (2014, p. 116) observou que:
Na preparação para essas palestras, Lewis teve uma dificuldade considerável para aprender a “língua de seu público”. Nessas palestras, ele não era um acadêmico falando para seus ouvintes, usando palavras que eles poderiam não entender sobre as coisas que não lhe interessavam. Lewis falava com clareza e convicção, conectava-se com seu público, tanto nos programas de rádio originais como, posteriormente, em Cristianismo puro e simples. Cada capítulo desse livro é curto e autônomo, assim como as palestras originais. Contudo, o que Lewis apresentou em Cristianismo puro e simples não foi uma mistura de argumentos acerca da fé. Como seu colega de Oxford, Austin Farrer, perceptivamente comentou: Lewis nos faz “pensar queestamos ouvindo uma argumentação”, quando, na realidade, “estamos sendo apresentados a uma visão, e é essa visão que traz consigo a convicção”. Essa visão apela ao anseio do ser humano pela verdade, beleza e bondade. A proeza de Lewis é mostrar que aquilo que observamos e vivemos se “encaixa” com a ideia de Deus.
Numa entrevista realizada com George M. Marsden, professor emérito de História e autor de C.S. Lewis’s Mere Christianity: The Biography ao editor Justin Taylor, publicada no site do ministério The Gospel Coalition, Marsden, ressaltou que C.S. Lewis ouvia o que as pessoas falavam e procurava elaborar uma descrição significativa de seus pontos de vista com uma linguagem que as pessoas pudessem entender e, ainda que tenha lançado mão de argumentos na estruturação de Cristianismo puro e simples, ele se empenhou em colocá-las em contextos imaginativos tornando-os muito mais claros do que a maioria dos escritores não-cristãos: “ele age como um companheiro amigável, como um instrutor, em uma jornada que ele mesmo fez da incredulidade à crença. Ao mesmo tempo, ele não chama a atenção para si mesmo, mas leva o leitor a ver a beleza desafiadora da mensagem cristã central” (MARSDEN apud TAYLOR, 2016, tradução nossa, online).
Algo mais além
É interessante observar que foi diante daquele pavoroso cenário da guerra que C.S. Lewis notabilizou-se como um importante comunicador da fé cristã. O outrora soldado que conheceu os horrores da luta armada nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial assumia posição em seu posto avançado numa cabine de transmissão de rádio para explicar e defender a fé cristã e comunicar aos milhares de ouvintes do outro lado das caixas amplificadoras a convicção vigorosa e positiva da fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus.
O SENHOR Seja engrandecido!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Editora Fundamento Educacional, 2008.
BROWN, Devin.Tudo começou com uma carta. Disponível em:https://faithgateway.com/blogs/christian-books/it-all-began-with-a-letter. Acesso em: 25 out. 2024.
MCGRATH, Alister.Conversando com C.S. Lewis. São Paulo: Planeta, 2014.
______.C.S. Lewis: do ateísmo às terras de Nárnia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2013.
CHURCHILL, Winston. A sabedoria de Winston Churchill: palavras de guerra e paz/ editado por Sean Lamb. Traduzido por Fabiano Flaminio. Cotia (SP): Pé da Letra, 2020.
An Interview with George Marsden on His New Biography of C.S. Lewis’s Mere Christianity. Disponível em: https://www.thegospelcoalition.org/blogs/justin-taylor/an-interview-with-george-marsden-on-his-new-biography-of-c-s-lewiss-mere-christianity/. Acesso em: 31 jan. 2023.
Air Raid Shelter in London During the Blitz. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/film/air-raid-shelter-in-london-during-the-blitz. Acesso em: 21 nov.2024.That Have Shaped Evangelicals. Disponível em: https://www.christianitytoday.com/2006/10/top-50-books-that-have-shaped-evangelicals/. Acesso em: 06/11/2024.C.S. Lewis: BBC. Disponível em: http://michaelgleghorn.com/artLewisBBC.php. Acesso em: 02 fev. 2023.