Meu encontro com o Super-homem
De G.K. Chesterton
Trad. Gabriele Greggersen
Daily News, 1909
Possivelmente os apreciadores do Sr. Bernard Shaw e muitos autores modernos ficariam interessadíssimos em saber: o Super-homem[1] foi localizado. Fui eu que o encontrei; ele mora na cidade inglesa de South Croydon[2]. O Sr. Shaw que seguia uma pista completamente falsa e está agora procurando a criatura na cidade de Blackpool[3]; e no que diz respeito à idéia do Sr. Wells, de produzi-lo no seu laboratório particular à base de diferentes combustíveis, sempre tive a intuição de que estava fadada ao fracasso. Posso assegurar ao Sr. Wells que o Super-homem de Croydon nasceu pelo método ordinário, embora ele mesmo evidentemente seja tudo, menos ordinário.
Seus pais também não são menos indignos do ser maravilhoso que eles puseram neste mundo. O nome da Madame Hypatia[4] Smythe-Brown (chamada hoje de Madame Hypatia Hagg[5]) jamais será esquecido no Extremo Oriente, onde ela realizou um trabalho social deveras magnífico. O seu brado retumbante, “salvem as crianças!”, referia-se ao atroz pouco caso dado à sensibilidade visual das crianças, que tinham a abusiva permissão de brincar com brinquedos escandalosamente coloridos. Ela citava estatísticas irrefutáveis de que as crianças freqüentemente expostas à visão de cores violetas e rubras, passavam a sofrer de vista cansada quando chegam a uma idade extremamente avançada. Isso representava parte relevante da sua incansável luta por livrar-se da pestilência destes charlatães travessos de Hoxton[6].
Todo trabalhador honesto deveria varrer as ruas incansavelmente atrás de brinquedos assim, e arrancá-los das pobres criancinhas, que usualmente respondem com lágrimas de comoção diante de tanta gentileza. Mas a obra de caridade da madame teve que ser interrompida, em parte pelo seu mais novo interesse pela crença no Zoroastro, mas também por um golpe violento de guarda-chuva. O mesmo foi dado por uma camponesa irlandesa decadente, que, ao voltar ao seu maltratado apartamento de alguma de suas orgias, pegou a Madame Hypatia no quarto de dormir, removendo uma pintura a óleo da parede, que ela considerava francamente, não contribuir em nada para a elevação do seu espírito.
Diante disto a celta ignorante e parcialmente embriagada deu um golpe violento na reformadora social, acrescentando a isto uma acusação de roubo absurda. A normalmente tão equilibrada madame ficou de mente abalada. Foi durante um breve período de doença mental dessas que ela foi se casar com o Dr. Hagg.
Do próprio Dr. Hagg, espero não ter que falar. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com os audazes experimentos de Eugenética Neo-Individualista, que se tornaram agora o assunto mais “quente” da democracia inglesa, deve ter ouvido falar neste nome, atribuindo-o muitas vezes à sua proteção profissional e poder impessoal. Já desde cedo ele defendia uma postura que lhe foi incutida na infância de engenheiro elétrico e que a história das religiões considera primitiva. Mais tarde, ele se tornaria um dos nossos maiores geólogos. Acabou, assim, desenvolvendo uma visão de mundo radiante em relação ao futuro do socialismo, que só a geologia pode proporcionar. A princípio, parece haver algo semelhante a uma brecha, uma sutil, mas perceptível fissura entre as suas idéias e as da sua esposa aristocrática.
Pois ela era a favor (para usar suas próprias palavras pomposas) da proteção dos pobres contra eles mesmos; enquanto ele declarava impiedosamente, usando uma nova e impressionante metáfora, que os mais fracos deviam ser fuzilados. No final das contas, entretanto, depois de selado o matrimônio, o casal deu-se conta de sua unidade essencial, pelo caráter inequivocadamente moderno de ambas as visões de mundo. Com isto suas almas encontraram a paz nesta expressão iluminadora e abrangente. O resultado foi que esta união entre as duas manifestações mais altas de civilização, da encantadora madame e do nada ordinário doutor, foi abençoada pelo nascimento do Super-homem, aquele ser que todos os trabalhadores de Battersea estavam aguardando dia e noite ansiosos.
Não foi nada difícil achar a casa do doutor e da Madame Hypatia Hagg; ela se situa numa das ruas menos remotas de Croydon, sendo vigiada de perto por uma galeria de árvores. Aproximei-me da porta em meio à penumbra. Era natural que eu imaginasse um vulto escuro e monstruoso na vastidão turva daquela casa que deveria supostamente abrigar a criatura mais maravilhosa entre os filhos dos homens. Quando eu entrei na casa, fui recebido com distinta cortesia pela Madame Hypatia e seu marido. A dificuldade maior foi chegar a ver o Super-homem de fato, que já estava com aproximadamente quinze anos de idade, sendo mantido isolado em um quarto silencioso. A conversa que mantive com o seu pai e sua mãe não esclareceu muita coisa, nem mesmo sobre o caráter daquele misterioso ser. O rosto de Madame Hypatia era pálido e penetrante, coberto por uma camada de maquiagem acinzentada e esverdeada intocável e cruel, com a qual ela iluminava tantos lares de Hoxton. Ela nem o quis expor, para falar do seu rebento com a vaidade vulgar de uma mãe humana ordinária. Dei um passo à frente e perguntei, se o Super-homem era bonito.
– Ele faz o seu próprio estilo, sabe? – respondeu ela, com um olhar de desdém. – Neste aspecto, ele é superior a Apollo. Isto, visto do nosso plano inferior, é claro… – E voltou a assumir aquele olhar.
Senti um ímpeto terrível e perguntei sem rodeios:
– Ele é careca?
Houve um longo e doloroso silêncio, e então Dr. Hagg disse diretamente:
– Naquela dimensão tudo é diferente, no caso dele … bem, é claro que não se trata do que chamamos de cabelo … mas …
– Você não acha – disse a esposa com ternura – não concorda que, na realidade, para efeitos didáticos, ao falarmos com gente simples, não devíamos chamá-lo de cabelo mesmo?
– Talvez você esteja certa, – disse o doutor depois de alguns minutos de reflexão- para falar de cabelos como aqueles é precisamos usar parábolas.
– Mas, o que mais, poderia ser – perguntei eu com certa irritação – se não ser, cabelo? Seriam penas?
– Não se trata de penas, no sentido que nós costumamos entender,- respondeu Hagg com uma voz horrível.
Eu fiquei um tanto irritado.
– Será que eu posso ao menos vê-lo? – perguntei – Sou um jornalista, e não tenho nenhum interesse sobre a face da Terra, a não ser a mais pura curiosidade e vaidade pessoal. Só queria poder dizer a todos que já apertei a mão ao Super-homem.
O marido e a esposa puseram-se de pé num salto e ficaram paralisados com ar embaraçada.
– Bem, sabe como é – disse Madame Hypatia, com aquele sorriso de fato charmoso de anfitriã aristocrática. – Você deve entender que ele não tem exatamente como lhe dar a mão … ele não tem propriamente mãos, entende? … É claro que a estrutura…
Com isso, eu rompi com todos os padrões sociais e corri para a porta do quarto, onde supunha encontrar a inacreditável criatura. Eu a arrombei; o quarto estava escuro feito breu. Bem à minha frente eu ouvi um uivo pequeno e triste, e pelas costas, um duplo grito estridente.
– Veja só o que você aprontou! – choramingou Dr. Hagg, enterrando a testa calva nas mãos. – Você deixou entrar uma corrente de vento e agora, ele está morto.
Ao deixar a cidade de Croydon naquela noite eu vi homens de preto, carregando um caixão que não tinha forma humana. O vento soprava sobre mim, movimentando as árvores, de modo a se inclinavam de um lado para o outro, como plumas de algum funeral cósmico.
– É isso mesmo,- disse o Dr. Hagg, -o universo todo está chorando em virtude frustração da mais magnífica natividade.
Cá comigo eu achei que havia um tom de riso debochado no fundo do lamento nobre do vento.
[1] N.T. Evidentemente o autor não está se referindo aqui ao personagem de Hollywood que data dos anos 60, e sim do Sobre-homem ou Super-homem, como foi adotado nas traduções mais tardias de Friedrich Nietzsche, “Prólogo de Zarathustra” Assim falou Zarathustra (1883) e na obra de Bernard Shaw, Homem e Super-Homem. Evidentemente Chesterton está aqui fazendo outra das suas famosas provocações ao seu arqui-inimigo literato, Shaw, ainda que fosse seu amigo na prática.
[2] N.T. Trata-se de uma cidade em Surrey, Inglaterra.
[3] N.T. A cidade é reconhecidamente a capital do entretenimento da Grã-Bretanha.
[4] N.T. O nome é o mesmo da primeira mulher grega (350–370 d.C.) a se destacar na matemática, que vivia na Alexandria sob o império romano. Era também filósofa neo-platônica e astrônoma.
[5] N.T. “Hag” com um “g” somente significa bruxa, velha malvada.
[6] N.T. Cidade próxima a Liverpool, Inglaterra.
Texto-Fonte disponível: <http://www.cse.dmu.ac.uk/~mward/gkc/books/HIFTS.html>. Acesso 07 Set. 2012.