por G.K. Chesterton

(trad. Gabriele Greggersen)

Certo dia, um amigo e eu estávamos passeando numa daquelas florestas típicas de toda a Europa ocidental, que podem tornar-se tão traiçoeiras, quanto um verdadeiro deserto, de tão uniforme que é a paisagem, a ponto de qualquer um ser capaz de perder-se nelas. Fortes, altos e todos iguais, lá estavam os troncos de madeira dos pinheiros, rodeando-nos de todos os lados, apontando-nos as suas afiadas agulhas, numa silenciosa insurreição. Sempre que falamos em “biodiversidade”, estamos nos referindo, sem dúvida, a uma verdade, no entanto, penso que muitas vezes a natureza manifesta a sua diversidade precisamente na sua mesmice. Pode-se observar uma cadência extremamente diversificada nesta unidade; é como se o mundo todo decidisse seguir o mesmo itinerário, sempre de novo, até que este preciso itinerário comece a nos parecer até estranho.

Você já experimentou ficar repetindo umas trinta vezes uma mesma palavra tão comum quanto “cachorro”, por exemplo? Na trigésima vez a palavra já se terá transformado em “vira-lata” ou “pulguento”. A simples repetição certamente não tornará o cachorro mais simpático, antes, bem pelo contrário, ele se tornará bem mais selvagem. No final o cãozinho acaba virando algo tão obscuro e tenebroso quanto um Godzila ou alguma serpente marinha. É possível que seja esta precisamente a razão de ser de tantas repetições na natureza; que este seja precisamente o motivo que justifica a existência de tantas milhões de folhas e pedras bem parecidas nesse mundo. Quem sabe elas não sejam tão repetitivas, precisamente, para se evitar que sejam consideradas triviais. Talvez elas se repitam só na esperança de que possam, no final, tornar-se cada vez menos triviais. É provável que nenhum ser humano ficasse surpreso com o primeiro gato que visse pela frente, mas certamente ele daria um pulo de surpresa ao por os olhos no septuagésimo nono. Às vezes é preciso que ele tenha que passar diante de milhares de pinheiros, até se deparar enfim com o pinheiro, aquele que reconheça como sendo pinheiro de verdade. Em todos os casos, há algo de excitante ou único, e eu diria até mesmo de premente e radical nas eternas ladainhas da floresta; algo que nos remete à loucura, nessa harmonia tão monótona dos pinheiros.

Quando fiz um comentário deste tipo com o meu amigo, ele respondeu em tom sarcástico, “Caro amigo, espere só até dar de frente com um daqueles postes telegráficos…” E, não é que o meu amigo estava certo? Coisa que ocorre raríssimas vezes nas nossas conversas, principalmente quando estamos tratando de fatos.

Tínhamos acabado de atravessar a floresta, por uma de suas principais trilhas, que, por acaso, seguia a linha telegráfica daquela cidadezinha. E, ainda que os postes só surgissem uma vez ou outra, eles faziam uma imensa diferença. Toda vez que atingíamos uma daquelas clareiras, onde havia um poste, nós nos dávamos conta nítida de que, afinal, os pinheiros não estavam tão retos assim. Era como se algum dia vislumbrássemos entre um monte de riscos rabiscados por colegiais, uma linha traçada com uma régua.

Aquelas linhas todas de marinheiro de primeira viagem nos pareceriam uma tortura, que pendiam ora para a esquerda, ora para a direita. Poucos instantes antes poderíamos jurar que elas estavam retas, e agora nos damos conta de que elas estavam tortas, balançando de lá para cá, feito gangorras. Comparados aos postes telegráficos, os pinheiros passavam a nos parecer tortos, ao mesmo tempo em que também pareciam mais vivos. Uma única linha vertical basta para imediatamente deformar tudo, deformar e libertar. Embora tudo parecia estar saindo fora do prumo, isso era libertador, como quando, no meio da floresta, avistamos um burlesco carvalho ou um pequeno resto de mata virgem.

Tínhamos já caminhado muito mais longe do que pretendíamos, guiados pela nossa linha imaginária; quando vimos anunciar-se o cair do dia, que ia se transformando em um belo crepúsculo. Até que nos demos conta de ter deixado a floresta para trás, e já nos encontrávamos no alto das montanhas que se elevavam em torno da cidadezinha ou vilarejo desconhecido, cujas luzes já começavam a piscar na crescente penumbra do vale.

Aquela peculiar transformação, que era típica do anoitecer, já estava se processando. Enquanto o sol persistia brilhando, o mundo todo ia escurecendo, dando seu adeus, a começar dos seus pontos mais extremos, as montanhas e a copa dos pinheiros. Com isto era nos revelado o mistério secreto dos pinheiros; e, lançando um fugaz e triste olhar sobre eles, meu amigo deu as costas para a floresta, colocando-se sob o imenso céu estrelado. E então olhou para os postes telegráficos diante dele, debaixo do último raio de luz do sol. Agora eles já não tinham mais aquele aspecto ereto, alongado e amenizado pelos traços delicados da madeira do pinheiro; eles se erguiam diante dele com toda a sua trivialidade, arbitrariedade rústica, típica de toda figura geométrica natural. O meu amigo ficou ali parado e, apontando para o poste, deu vazão a toda a sua filosofia anárquica: “Você é o diabo” disse ele com toda simplicidade, “mas vá em frente. O espaço das majestosas árvores, que para trás ficou é o mundo como era antes de vocês, seres humanos civilizados, cristãos, democratas ou quaisquer outros terem chegado e o feito ficar tão maçante, com suas sombrias réguas de moral e da igualdade. Nesta luta silenciosa, cada uma dessas árvores mudas encara outra árvore, cada folha, outra folha.. E toda essa silenciosa batalha acaba nesta belíssima desigualdade. Levante os seus olhos e olhe agora para toda essa medíocre homogeneidade. Observe bem, com que regularidade precisa foram dispostos os nódulos brancos nessa madeira e ouse continuar sustentando esta sua ideologia dogmática.”

“Será este poste telegráfico símbolo assim tão fiel e contundente da democracia?” –perguntei-lhe.

“Vamos supor que, para construir esta rede de telégrafos, geradores de dividendos tivessem sido necessários aproximadamente três mil homens, e talvez outros tantos mil tivessem sido necessários para preservar a floresta, que fornece a madeira. Mas, se este poste telegráfico é rústico (e admito que é), isso não se deve a uma ideologia qualquer, mas antes à anarquia reinante no mercado. Se alguém estivesse defendendo alguma ideologia acerca de postes telegráficos, porque não os confeccionou logo em marfim, recobrindo-os de ouro? Os produtos da modernidade são considerados de mau gosto, não devido ao excesso de ‘dedos” dos homens modernos, mas precisamente devido à falta deles.

“Não vem, não, “respondeu o meu amigo com os olhos fixos no limiar de um pôr do sol magnífico e verdadeiramente exuberante, “há algo de mórbido na própria noção de ideologia. Uma linha reta jamais será bela. A própria beleza será sempre um tanto torta. Estes postes rígidos, dispostos em intervalos assim tão regulares, são feios porque estão transmitindo uma mensagem verdadeiramente democrática ao mundo.”

“Que neste exato momento,” retruquei, ” deve estar clamando ‘comprem postes búlgaros’ por todos os lados. E provavelmente este será o meio de comunicação mais usado por dois dos mais ricos e fracos dos seus filhos, com quem Deus sempre teve que ter tanta paciência. Estes postes telegráficos não são nada belos, de fato, na verdade eles são detestáveis, desumanos e indecentes. Acontece que o seu maior defeito de fundação encontra-se na sua particularidade e não, na sua universalidade. O fato é que este poste preto com nódulos brancos não é produto da criação de uma alma universal. Trata-se de uma invenção que adveio da alma de dois milionários malucos.”

“Mas se é assim, quero que você me faça o favor de explicar ao menos uma coisa “, replicou o meu amigo em tom grave, “diga-me como é que esta ideologia democrática tão rígida pode ter sido transmitida por estes postes telegráficos de formas tão grotescas? Ora, mas Santo Deus, já está na hora de ir para casa. Eu não fazia idéia de que já está assim tão tarde. Deixe-me ver, acho que acabamos saindo fora da floresta. Venha, sigamos a linha dos postes telegráficos, e isso, por um motivo bem mais razoável: chegar em casa, antes que fique escuro.”

Não tinha como chegarmos em casa, antes de escurecer. Por alguma razão nós havíamos subestimado a rapidez do cair da tarde e a súbita invasão da escuridão da noite, supondo que nos encontrávamos às margens da densa floresta. Foi só depois que o meu amigo, tropeçou em um dos fios logo nos primeiros cinco minutos de caminhada, e o mesmo me aconteceu dez minutos depois, sendo que eu já tinha arranhando os meus tornozelos no atoleiro, é que começamos a ter uma vaga noção do nosso rumo. Finalmente, o meu amigo disse em voz baixa e rouca: “receio que nós tenhamos entrado na trilha errada. Está escuro feito breu aqui.”

“Acho que não, algo me diz que ainda estamos no caminho certo,” arrisquei.

“Bem, ” disse ele, e depois de uma longa pausa, continuou” não consigo enxergar nem os postes telegráfico. E olha que fiquei todo o tempo de olhos bem abertos.”

“O mesmo digo eu,” disse. “eles estão alinhados demais.”

Ficamos por aproximadamente duas horas andando em círculos, procurando o caminho certo ao longo das margens escuras da densa floresta, cujas árvores pareciam dançar de forma debochada ao nosso redor. Todavia já era possível vislumbrar no horizonte ao longe os contornos de algo bastante reto e rígido demais para ser um pinheiro. E então finalmente percebemos que estávamos chegando em casa, no frescor do verde crepúsculo, o eterno arauto de mais um novo alvorecer.

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