Causas de estresse entre missionários
Por medo de perder o apoio ou por vergonha, muitos adoecem e não buscam ajuda
* Por Lorraine Oliveira
Situações contínuas, recorrentes e/ou agudas de estresse, contudo, podem levar ao esgotamento físico e emocional, reduzindo (ou até eliminando) a capacidade laborativa de uma pessoa. Quando esses fatores estressores estão ligados a situações de trabalho desgastantes, pode ocorrer a Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional, distúrbio psíquico registrado no grupo 24 do Cid-11 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde). Adiante foram relacionados sintomas para os quais devemos atentar.
Já foram feitos estudos com diversas classes de profissionais, principalmente aquelas cujas atividades exigem envolvimento interpessoal direto e intenso: professores, enfermeiros, agentes penitenciários, religiosos etc. No entanto, ainda é pequeno o número de estudos com missionários, um grupo cujo trabalho reúne inúmeras dificuldades, agravadas pelo fato de os obreiros transculturais viverem em locais isolados (na maior parte dos casos), sem o apoio necessário. O missionário frequentemente muda de terra e de cultura, deixando para trás amizades e estruturas sociais já estabelecidas. Além disso, muitas vezes vive em ambiente hostil, como áreas de conflito nas quais há até risco de vida. O presente estudo identifica fatores preponderantes que levam esse grupo ao estresse, bem como sugere algumas formas de reduzir o estresse entre os missionários.
Como parte do presente estudo, foi feita uma pesquisa de campo de 2016 a 2018 com oito cuidadores de missionários, a maioria brasileiros, em contextos transculturais. Por meio dela, identificaram-se quais são as queixas mais frequentes entre os missionários: falta de suporte financeiro apareceu em 62,5% dos relatos; falta de apoio da igreja, em 50% dos casos. Outros fatores apontados foram: dificuldade de relacionamento com a equipe, expectativas não atingidas e problemas de saúde. Com respeito a barreiras observadas na relação cuidador-missionário, 62,5% dos cuidadores responderam que o medo de se abrir e, por consequência, perder o apoio era o principal obstáculo a ser trasposto.
Além da investigação de campo, pesquisa bibliográfica sobre o tema em âmbito nacional e internacional com registros dos últimos 30 anos identificou alguns estudos importantes. O realizado pela Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira em 2016, por exemplo, traz a percepção de 146 missionários sobre pontos de estresse no campo. A seguir estão alguns dados desse estudo.
- Vida emocional foi considerado o fator que mais gera estresse no âmbito pessoal.
- Ainda no âmbito pessoal, ritmo de trabalho intenso foi citado por 47,5% dos participantes, e dificuldade em praticar exercícios físicos regularmente, por 65,2%.
- Na dimensão financeira, controle e administração dos recursos (orçamento pessoal ou familiar) apareceu em 55,6% das respostas.
- No aspecto familiar, tempo de qualidade com o cônjuge e os filhos foram os itens mais citados: 55,3 e 35,8% respectivamente.
- No âmbito do trabalho, relacionamento com a liderança local, denominacional ou equipe missionária foi apontado como fator de estresse em 40,9% das respostas.
- Em relação à agência missionária, o item sustento financeiro e benefícios (salário, convênio médico, aluguel, encargos sociais) foi citado em 40,9% dos casos.
- Quanto à igreja enviadora, o tópico mais apontado foi acompanhamento e pastoreio da família, presente em 34,3% das respostas.
Outro estudo – este realizado pelo Ministério Oásis, um centro de aconselhamento cristão – buscou identificar os principais motivos de os missionários procurarem tratamento psicológico. O artigo “A luta com as crises diversas”, de Bacheler, foi escrito a partir dos dados coletados (MEER, 2011, p. 145-161). A investigação incluiu 118 missionários, e, nas respostas, as queixas principais eram conjugais (54%) e pessoais (27%); elas incluíam autoimagem negativa, síndrome do ninho vazio, questionamento do chamado ministerial, luto por morte de um membro da família, problemas sexuais ou falta de perdão. Em terceiro lugar apareceu crise ministerial (citada por 23% dos missionários), manifestada pelo desejo de mudança de ministério, de agência, de campo geográfico ou de função. No entanto, durante o processo de aconselhamento, o terapeuta identificou como causas mais frequentes para os transtornos os conflitos não resolvidos com a equipe e a liderança do trabalho.
Mais abrangente, a investigação conduzida pela organização Heartstream Resources e denominada “Personalidade, sintomas de estresse e fatores estressores na vida transcultural” verificou os níveis de estresse em cada momento da carreira de um missionário. Foram avaliados 582 obreiros transculturais por aproximadamente 20 anos. Para pontuar os níveis de estresse, utilizou-se uma versão modificada da escala Holmes-Rahe, ferramenta muito difundida que verifica a probabilidade de um indivíduo adoecer por estresse levando em conta os acontecimentos que vivenciou nos últimos 12 meses. A lista original de eventos estressores padrão foi modificada, adicionando-se eventos típicos da vida transcultural (veja tabela no anexo a seguir). De acordo com o instrumento Holmes-Rahe, metade dos que se submetem ao teste e obtém pontuação 200 seriam hospitalizados nos dois anos subsequentes; dentre aqueles que alcançam 300 pontos, 90% seriam hospitalizados nos dois anos subsequentes. O resultado é alarmante: a média obtida junto aos missionários foi de 439,5 pontos. Os cinco primeiros anos da carreira são considerados como o período mais crítico (541 pontos), que em geral coincide com a fase de candidatura, treinamentos diversos e aprendizado da língua. O segundo pico foi observado no período de 16 a 20 anos de carreira (451 pontos), no qual frequentemente estão presentes a síndrome do ninho vazio, a crise de meia idade e as necessidades dos pais idosos.
Apesar desses relatos apontarem para níveis maiores de estresse no início da carreira e na fase tardia, dados mostram que esses períodos ainda são pouco priorizadas pelos cuidadores. Em 2017, a AMTB –Associação de Missões Transculturais Brasileiras observou que, em um universo de 594 missionários entrevistados:
- 11% deles foram enviados ao campo sem nenhum tipo de treinamento prévio;
- 79% das organizações missionárias não se envolvem com os custos de plano de saúde de seus obreiros;
- 71% das organizações missionárias não se envolvem com os custos com previdência social de seus obreiros.
Além disso, constatou-se que o índice de cuidados por parte dos enviadores durante o serviço no campo é grande (71%), contudo, há uma queda drástica quando o missionário regressa ao seu país ou cidade (26,3%). Sobre isso Antonia Leonora Van Der Meer, no livro Perspectivas do cuidado missionário, alerta que o cuidado não termina quando o missionário fica doente ou volta para o país de origem. Ela lamenta o fato de que os missionários dão suas vidas no campo e, quando voltam, estão doentes ou mudam de campo, param de receber ofertas para sua sobrevivência (MEER, 2011, p. 21).
Outro grande projeto chamado ReMAP – Reducing Missionary Attrition Project [Projeto de Redução do Retorno de Missionários] foi feito no período de 1992-1994 pela Comissão de Missões da World Evangelical Alliance (WEA) [Aliança Evangélica Mundial]. A pesquisa foi registrada no livro Valioso demais para que se perca: Um estudo das causas e curas do retorno prematuro de missionários. Tinha como objetivo avaliar quantos missionários realmente estavam retornando para casa e por quais razões. Constatou-se que, em média, 5,1% da força missionária abandona o campo por ano. Desses retornos, 70% eram por causas evitáveis (aposentadoria normal, morte, fuga por motivos políticos) (TAYLOR, 1998, p. 108). No Brasil, no entanto, a taxa de retorno é de 7% ao ano. As agências brasileiras mencionam os seguintes fatores como principais causas de retorno de missionários:
- Sustento financeiro
- Razões pessoais
- Imaturidade espiritual
- Problemas de saúde
- Compromisso inadequado
- Chamado
- Vida imoral
- Agência enviadora (19% dos casos)
- Falta de apoio
- Desentendimento
No ReMAP, solicitou-se que os líderes brasileiros de Missões listassem os três fatores que eles consideram mais importantes para minimizar o retorno prematuro de missionários. Foram citados: (1) chamado claro de Deus para obra missionária; (2) supervisão – cuidado pastoral e apoio regulares; e (3) capacidade para manter uma vida espiritual sadia sem apoio externo. Em contrapartida, os três fatores considerados menos importantes foram: (1) contatos regulares com amigos – igreja de origem e parceiros de oração; (2) promoção de treinamento apropriado regularmente; e (3) bom relacionamento com os supervisores e a missão. Com respeito a essas afirmações, Ted Limpic comenta:
Encorajador ver que se reconhecem a importância de supervisão, cuidado pastoral e apoio regulares, porém podemos detectar a tendência das missões brasileiras de dar muita ênfase no indivíduo: chamado pessoal, capacidade para manter uma vida espiritual sadia sem apoio externo e capacidade para ministrar sem contatos regulares com amigos, igreja de origem e parceiros de oração. Surpreendeu-nos a descoberta de que nenhuma das agências missionárias no Brasil com as melhores porcentagens de retorno citou “capacidade para manter uma vida espiritual sadia sem apoio externo” como um dos fatores mais importantes para reduzir o retorno prematuro. Mas todas as agências com as piores porcentagens o fizeram! (TAYLOR, 1998, p. 139).
Como evitar o estresse na vida dos missionários?
A percepção de sintomas do estresse é o marco do limite emocional e físico do corpo. Identificá-los é fundamental para iniciar o processo de tentar aliviar a tensão. A psicóloga Marilda Lipp afirma: “O corpo fala”. Devemos, então, compreender a sua linguagem em vez de nos desesperarmos. Alguns desses sinais (falas) são: falha de memória para coisas pequenas e corriqueiras, acordar cansado após um bom período de sono, tensão muscular excessiva, hiperacidez gástrica sem causa aparente, irritabilidade excessiva, ansiedade, vontade de sumir, sensação de incompetência e distúrbios do sono (LIPP, 2013, p. 14).
Podemos (ou melhor, devemos!) dividir a responsabilidade de evitar o estresse na vida do missionário entre o próprio obreiro transcultural e as instituições enviadoras. Cada missionário deve ser o principal responsável por sua saúde. O apóstolo Paulo já aconselhava Timóteo, seu cooperador no trabalho missionário: “Fique atento a seu modo de viver e a seus ensinamentos. Permaneça fiel ao que é certo, e assim salvarás a si mesmo e àqueles que o ouvem” (1Tm 4.16 – NVT). Cabe ao indivíduo cultivar uma boa saúde mental por meio de boa alimentação, atividades físicas, disciplinas espirituais, tempo de descanso, além de perceber suas necessidades individuais e buscar auxílio quando necessário. Kelly O’Donnell, no livro Cuidado integral do missionário, afirma que, no nível mais alto do cuidado missionário, está o cuidado do Mestre. O relacionamento com Jesus, cultivado por disciplinas espirituais, proporciona, como diz a autora: “Correr com resistência e entrar no seu descanso” (baseado nos textos de Hebreus 12.1-2 e 4.9-11).
Will Walls, no seu artigo “Lidando com o estresse e burnout no campo missionário” (p. 2), afirma: “A forma como um indivíduo avalia uma situação determinará se é estressante ou não”. Em primeiro lugar, então, é necessária a compreensão correta do papel do missionário: ele é cooperador na divulgação do evangelho, na Missão de Deus, não o responsável direto pelos resultados. A cobrança por frutos visíveis por parte do próprio missionário ou do enviador pode gerar sentimento de frustração, e devemos lembrar que a adaptação a uma nova cultura e o aprendizado da língua levam tempo. A pressão pode ser vista com mais frequência no trabalho entre povos não alcançados, onde os resultados podem demorar ainda mais para serem percebidos.
Cristo é o maior exemplo de viver livre de estresse, afirma Charles Swindoll. Ainda havia milhões de escravos no Império Romano, centenas de pessoas cegas, coxas e doentes que não haviam sido curadas, além de muitas regiões onde ele não tinha sido ouvido (SWINDOW, 2002, p. 19). Mas, apesar das necessidades, o Salvador tinha consciência de missão cumprida. Em João 17.4, lemos: “Eu te glorifiquei aqui na terra, completando a obra que me deste para realizar”.
Cabe aqui ressaltar o papel fundamental da igreja enviadora em todas as fases da carreira missionária. Ela deve ter o compromisso de avaliar se o missionário possui:
- Fundamento de fé sólido, que evite a desestruturação face ao primeiro desafio que encontrar;
- Motivação correta e um chamado genuíno de Deus;
- Caráter cristão – ser obediente, fiel, estar pronto a servir e saber trabalhar em conjunto.
Aliado ao trabalho da igreja, são fundamentais a avaliação e o treinamento feitos pelas agências missionárias. A avaliação prévia ao envio para o campo tem por objetivos estabelecer o melhor tempo e condições para a partida, a melhor área para se atuar, bem como o apoio que o candidato irá precisar no campo. Entrevistas, testes psicológicos, exames de saúde e outras ferramentas podem ajudam a traçar um perfil, e avaliar a capacidade de adaptação do candidato, detectando possíveis questões que podem ser tratadas previamente à partida. Marjory Foyle observou em uma pesquisa com 121 missionários que 54% deles queixaram-se de problemas que existiam muito antes de eles entrarem no processo de seleção. Somente um quarto dos que tinham problemas anteriores à sua seleção tinham recebido algum tipo de ajuda, geralmente mínima (TAYLOR, 1998, p. 154).
Concluímos, portanto, que os fatores mais prevalentes em nossa pesquisa de campo foram compatíveis com os dados encontrados no ReMAP. Em ambos, o principal fator estressor foi a falta de apoio financeiro, mostrando que a Igreja brasileira ainda investe pouco em Missões. Em segundo lugar, estavam as causas pessoais (expectativas não atingidas, problemas de saúde, falta de preparo, imaturidade espiritual, compromisso inadequado, chamado e vida imoral), também presentes na pesquisa feita pelo Ministério Oásis. A partir daí, entendemos a importância de uma boa seleção e de um bom preparo, que deve incluir desenvolvimento do caráter cristão, conscientização sobre a realidade do campo e solidificação da vocação ministerial, não apenas elementos de conhecimento, como focam ainda alguns enviadores. Além disso, observa-se a necessidade de maior investimento em cuidado preventivo – fortalecimento da personalidade e espiritual –, sem deixar de intervir nas crises. Atentando para esses fatores, consideramos que teremos missionários mais saudáveis e fortes para cumprirem a sua carreira.
* Lorraine Oliveira é médica cardiologista. Esse artigo é um resumo do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) realizado pela autora para o POS – Postgraduate Studies on Missiology (Missões) do Seminário Teológico Servo de Cristo. Publicado originalmente no site do Centro de Reflexão Missiológica Martureo.