Mãos no arado, pés entre pedras
* Por Saulo Xavier
Eu tinha 18 anos quando me rendi ao Senhor. Irresistível, por definição, Ele me transformou e me deu família com quem contar em um mundo solitário, mesmo eu tendo minha família por perto. E, por meio da família da fé, Deus me dava a oportunidade de semear cura nas relações da família de sangue. A Igreja foi meu vale de Gileade, minha cidade refúgio. Tão diversa que, certo dia, tive a oportunidade de trocar os elementos da ceia com um dos jovens surdos. Fiquei apavorado naquele instante e bem desconfortável. Mas fui muito bem acolhido por ele que, com um sorriso no rosto e o amor de Cristo, recepcionou-me a um mundo com o qual nunca tinha tido contato antes. Depois daquele dia, decidi aprender a língua dele para poder me comunicar.
Alguns meses antes desse evento, meus dedos corriam a lista de aprovados em Jornalismo e encontrei meu nome ali. Daí, mediante aquela aprovação, enquanto caminhava para o setor de assuntos estudantis da Universidade para efetivar minha matrícula, o Senhor falou claramente ao meu coração: “você vai comunicar minha Palavra às nações”. Assim começou minha nova vida, 15 dias depois de nascer de novo em Cristo. Era um turbilhão de desafios e aprendizados. Aprendi a ser outro ser humano. Aprendi a ter outros valores e princípios. Como um aprendiz, errei muito nesse processo. Como eu precisava do Senhor! Era perdido, Ele me resgatou. Fui quebrado, mas n’Ele fui restaurado.
Em 2006, casei-me com uma jovem de Goiás. Fiquei transcultural. Amei toda aquela diversidade. Então, fomos ser missionários em Curitiba, depois São Paulo. Trabalhei na Igreja com surdos e em um movimento missionário com Comunicação Institucional e Tradução. Fui crescendo na fé, na Palavra, no amor, na humildade, na renúncia, na comunicação, na academia e no ministério. Deus continuava a me quebrar e moldar; Aquele que me corrigia derramava óleo em minhas feridas. Nesse mesmo ano, um sonho me fez sonhar algo novo: povos não alcançados em nações com igrejas frágeis.
Em 2007, iniciei meu mestrado em Estudos da Tradução e recebi a maravilhosa notícia de que minha esposa estava grávida da nossa primeira filha. Conciliava o trabalho missionário com estudos e ainda fazia tendas à noite como intérprete educacional para ajudar no pequeno sustento missionário que tínhamos.
Foto: @filipe_aires
Após essa etapa, em meados de 2011, chegara o tempo de atender a voz do Supremo Pastor. De Curitiba, fomos à São Paulo para estudar teologia e realizar outras formações como preparativo para partirmos para a Ásia. A esposa foi estudar Gastronomia. Foi um tempo de aprender a sermos pais, quando a lembrança que tínhamos era a de nossos próprios pais nos deixarem ainda crianças. Tempo de aprender sobre casamento, quando os casamentos que nos geraram desfizeram-se quando nem tínhamos condições de entender o que estava acontecendo.
Abandono. Desprezo. Humilhação. Deboche. Descrédito ministerial… Surdos? É sério? “Estranho ficar se mexendo lá na frente irmão…” Muitos rótulos foram colados a mim. Não desisti e segui firme! Lágrimas secretas…
Em 2013, fui desafiado por meus ex-professores de Tradução a concorrer a uma vaga de doutorado. Já estávamos com a rota para a Tailândia definida e alguns passos iniciais adiantados. Aceitei o convite e entrei no curso para avançar nos meus conhecimentos em Tradução de Poesia, almejando servir na área de Tradução da Bíblia no campo missionário, meu grande sonho como comunicador e linguista cristão.
O seminário teológico ficou pelo caminho. Não tínhamos recursos, apesar de termos tentado de tudo.
Em 2015, fui estudar na Missão ALEM para me formar como missionário especializado em tradução e educação intercultural. A segunda filha apareceu de surpresa para quase nos matar do coração! Assim, do nada!? Meu Deus, achei que ia enlouquecer entre a alegria e a preocupação! Foram os dias mais intensos que vivi, doutorado por concluir, curso de linguística e educação intercultural e mais a segunda gravidez da esposa, agora dessa vez, gravidez de alto risco. Para completar essa etapa, 3 de nossos parceiros ministeriais nos abandonaram, sem avisar previamente! Mais pedras no meio do caminho.
Em 2016, começamos a fechar os ciclos. A partir de Goiânia, fomos terminando tudo e dando à família da minha esposa a experiência de curtir a Helena nascer. Ali, passamos quase um ano com nossa Igreja Local e, em 30 de novembro, embarcamos para Bangkok.
Em Bangkok, vivi a experiência da rejeição de maneira ainda mais cruel do que aquele menino, imprudente e intempestivo, filho único e primeiro crente de uma família ultra católica enfrentou. Agora, minhas lágrimas eram de um homem adulto, pai, esposo, quase “doutor”. Vivi a humilhação de ser um analfabeto, de falar errado, de ter de cara uma rejeição ministerial assim que cheguei. Em família, vivemos a dor do choque cultural das filhas às lágrimas, a peregrinação para tentar achar um ministério que nos aceitasse, os dramas da burocracia de visto e de sermos enganados por “espertinhos de plantão”. Foi fundamental sermos esmagados lá atrás. Foi fundamental ter pés experimentados nas dores do caminhar no ministério.
Minha esposa, despretensiosa e tranquila, encontrou-se ministerialmente primeiro. Meu plano A de trabalho com surdos esvaiu-se como fumaça. Fiquei sem um ministério para servir de fato. Então, a saída foi aprender Tailandês, cuidar da adaptação das crianças, correr atrás de sustento, amar a esposa, ajudar em casa, enviar a tese de doutorado pronta, fazer amizades com tailandeses… Até o dia em que um convite chegou: “você aceitaria pregar em uma igreja de surdos do outro lado da cidade, numa região bem carente, bem tipicamente Thai?”. Não tive dúvidas! Lá fui eu! Animado, desesperado e em busca de esperança, eu pensava: “quero um ministério para servir Senhor! Será que vai ser esse?!”.
Barba, cabelo, camisa nova… muito estudo bíblico e oração.
E foi! Depois de quase 2 anos em solo Thai, já frustrado e na companhia daquelas lágrimas secretas, enfim uma comunidade de surdos precisava de ajuda e me chamou. Hoje, atuo como colaborador desse projeto de plantação de igrejas em Thonburi, na grande Bangkok. Quase 40 surdos e, dentre esses, alguns que possuem também outras deficiências. Estou colaborando para que essa comunidade conheça as Escrituras na língua deles, o que envolve tanto tradução quanto educação intercultural e língua de sinais.
Retomei o seminário online… Deus é Senhor da História.
Fotos: @filipe_aires
Ele usou cada passo, cada curso, cada processo, cada tropeço, cada recomeço. Estava o tempo todo nos conduzindo. Estava sempre nos formando e preparando para a Sua jornada. Enquanto meus pés sangravam pelas trilhas pedregosas da vida, o Senhor adestrava minhas mãos para a batalha no campo missionário. Ele é sempre bom, sempre sábio e NUNCA dorme. Ele controla tudo, chama e nos capacita. Sinto-me tremendamente honrado e realizado hoje. E por toda parte ao redor de mim, consigo ver e celebrar os meus memoriais de vitória!
* Saulo Xavier é jornalista, mestre e doutor em tradução, e trabalha com Surdos desde 2002. Hoje, serve como missionário entre surdos em situação de risco em Bangkok, na Tailândia. Também é consultor do projeto DOT Brasil (Tradução da Bíblia para Libras) da Wycliffe Associates. E-mail: sauloedaniela@gmail.com
Robson Rosa Santana
Sempre me emociono com o coração missionário de Deus, que transforma muitos outros corações semelhantes ao dEle. O ministério e o evangelho são loucura para os que se perdem. Lembrem sempre que vocês estão seguindo os passos de Jesus, Deus, Salvador, Mestre e Exemplo!