Entrevista (parte 2): O campo missionário transcultural
Leia aqui a primeira parte desta entrevista.
Originário do Mato Grosso do Sul, Matt Mattos (nome usado por segurança) é mestre em zootecnia e trabalha com missões entre povos não-alcançados pelo mundo. Ele lidera a base americana da World Nations, da qual é um dos fundadores. A missão da organização é combater a fome e a pobreza por meio da agricultura sustentável, de projetos de desenvolvimento comunitário e do acesso à saúde, sendo estas plataformas para abrir portas entre povos não alcançados. Conversamos com ele sobre chamado missionário, o campo transcultural e povos não alcançados e negócios em missões. Confira abaixo a segunda parte desta entrevista.
Nota: Matt foi para um país com certa liberdade religiosa para o protestantismo, porém onde há perseguição. Por isso não mencionamos a nação do Sudeste Asiático onde ele ficou.
No campo transcultural, qual foi tua experiência em capacitar lideranças locais para criar uma igreja autossuficiente?
Nós estamos nesse processo. O projeto começou em 2013 numa transição ministerial que Deus estava falando ao meu coração, modificando meu chamado em algumas áreas. Encontrei um pastor local, que na época trabalhava como gerente de karaokê durante a semana e no fim de semana era pastor de crianças. E ele tinha um desejo muito grande de servir o povo dele. Meu interesse era caminhar com ele, realmente entender como eu poderia servi-lo e abençoá-lo. Algumas reuniões foram acontecendo, e ele foi se enchendo de um fogo e um zelo pela obra. Ele ficou muito inspirando em saber de histórias de obreiros que deixaram a sua nação para se tornarem missionários de tempo integral, ele ficou muito impactado. “Nós estamos aqui, e nós não temos nossos próprios missionários daqui. Mas eu quero ir”, ele dizia. A esposa dele já tinha esse chamado, tinha formação teológica. Ele resolveu voltar para a vila dele para começar um trabalho missionário. Ele, o primeiro missionário, sendo enviado por si próprio. E eu no processo com ele.
Esse pastor começou a florescer os dons e talentos dele de conector. Ele começou a conectar com outros pastores. Eu marcava de fazer uma visita, e ele fazia uma reunião especial. Eu ia, dormia no chão, cheio de pernilongo, no meio do mato da floresta. Tínhamos reuniões com os pastores, mais uns três ou quatro de outras denominações que e ele começou a juntar. E eles começavam a compartilhar as dificuldades do servir. E era uma vila que já tinha sido alcançada por missionários alemães, então no coração eles tinham convicção do chamado do Senhor e queriam fazer algo mais, pois os jovens da igreja não estavam mais interessados. Uma das preocupações eram os jovens, como engajá-los no trabalho da obra, pois eles não viam que haveria sucessão nas lideranças das pequenas igrejas que eles tinham plantado. O povo era muito pobre, o pastor passou a viver da obra e era muito sofrido, não tinha condição de nada, estava ali por zelo e amor ao senhor.
Você enfrentou alguma dificuldade no campo? Como superou?
O campo transcultural é realmente um lugar fascinante. Amo cultura, línguas e povos. Mas nem sempre é agradável, porque é muito diferente da nossa zona de conforto. E se você estiver indo trabalhar com povos indígenas é realmente muito contrário, você precisa andar numa contramão do que o homem moderno já construiu, você precisa se desfazer. Eu acho que a maior dificuldade do campo transcultural que eu enfrentei é entender que eu preciso me despir de mim mesmo no sentido de que, mesmo se eu soubesse sobre algum tópico, mesmo tendo conhecimento, muitas vezes eu preciso me manter calado, me despir de tudo isso e simplesmente entrar na cultura. Não pelo tanto que eu sei, que eu fiz, que eu consegui de títulos de educação, experiência, nada disso, simplesmente um processo de ser quebrado mesmo, remoldado. É a olaria, esse lugar de sair da zona de conforto e ir servir alguém é sempre o processo de um vaso na mão de um oleiro.
Teve um momento que eu não queria estar ali, não queria comer a comida local, tive infecção gastrointestinal. Ir contra sua própria cultura, seu jeito de pensar, como você aprendeu, é um processo de quebrá-lo e reconstruir de novo. E quando você tem o Senhor do seu lado, ele vai capacitando, ensinando pelo Espírito. Quando estamos servindo nossa igreja local, nós temos o Senhor, os irmãos, a comunidade. Quando você vai para fora, só tem você e o Senhor, e você se depara muito com você mesmo, com suas próprias mazelas, seus pecados de estimação, e precisa confrontar tudo isso. O Espírito vai mostrando as pedras que precisam ser arrancadas do meio da massa do vaso.
Passei por momentos de solidão muito grande. Eu me lembro num domingo que eu não tinha ninguém para visitar, não tinha amigos, bem no começo da minha vida no campo. Eu queria brasileiro, gente que falasse minha língua, e não tinha. Fui para um restaurante num shopping. E pensei até em pagar uma refeição para alguém almoçar comigo, e não tinha ninguém. Pensei “Senhor, sei que o Senhor está comigo”. Sentei numa mesa com mais três cadeiras e falei: “Aqui tem lugar para o Senhor Jesus, Deus e o Espírito Santo, não estou sozinho”. Almocei com a Trindade, chorando de dor e de solidão, estava muito difícil.
Muitas dessas lágrimas foram as sementes que plantaram. Hoje temos uma família linda no país, um seminário teológico com 55 estudantes de tempo integral, famílias de lá trabalhando conosco. Além da minha família, Deus foi sempre ouvindo o choro. Nesses momentos de solidão que comecei a ver o quanto é importante orar por uma família, por uma esposa, que também tinha o chamado.
[Hoje Matt é casado.]
Você tem trabalhado bastante com negócios em missões e agricultura: o que é e como tem sido esse trabalho?
Nesse processo de começar a avançar o trabalho da missão e usar a profissão como uma chave que abre a porta, e através disso abordar negócios em missões, transferência de conhecimento para gerar sustento e renda, e começar um projeto de sempre incluir a capacitação de obreiros locais, líderes e também ter plantação de igrejas e povos não alcançando na equação, um dos livros que me marcou foi A Pobreza das Nações – Uma solução sustentável, Wayne Grudem. Porque ele fala que não podemos simplesmente entregar na mão das pessoas os recursos, mas precisamos capacitá-las. Fala sobre transferência de conhecimento, que é algo que eu já tinha trabalhado no mestrado. Uma das coisas mais importantes é ensiná-las a ter pensamento crítico, para realmente questionar circunstâncias em que estão e aí, para os próprios cristãos, “o que o Senhor está me ensinando nesse tempo?”.
O livro fala que a produção de riquezas não é contra a Bíblia, isso traz sustento. A forma de quebrar o ciclo de pobreza é capacitar as pessoas para que produzam ou serviços ou produtos. Aí fiquei pensando, então o que eu posso ensinar as pessoas a produzir? Eu já sou formado nessa área de ensinar conhecimento técnico de produção de alimento, algo muito importante. Tanto que hoje o frango é o foco do nosso trabalho, já fui em outros países criar granjas para sustentar pastores que estão em tempo integral no ministério. Pode começar de uma necessidade básica, como produção de alimento, para combater a fome, a pobreza e a miséria, e através disso capacitar as pessoas, adicionar valor na vida delas. Fazer disso uma plataforma para criar conexão com os vizinhos e alcançar, assim, os vilarejos, as pessoas, as famílias… tudo parte dos princípios de serviço. Como eu posso servir? Como eu posso doar, em vez de só receber? Hoje temos algumas frentes de negócio que estamos trabalhando com produtos locais, mas a agricultura tem sido o carro chefe.
Nesse tempo, trabalhando com os pastores, chegamos a conclusão que queríamos montar um centro de treinamento em missões. Para onde os pastores enviariam jovens deles por carta de recomendação para serem treinados conosco. O processo de construção começou do zero, sem nada. O Senhor nos deu a terra, começamos a fundação, muitas vezes limpando a terra na mão, é no meio da floresta mesmo. Começou com um sonho. Mateus 17:20 fala da fé do tamanho de um grão de mostarda, então uma de nossas cartas é chamada “A semente do grão de mostarda”. Deus construiu essa escola em cinco anos e hoje temos 55 alunos estudando tanto produção de animais e agricultura quanto a questão de agente comunitário de saúde, que levamos do Brasil. Além de teologia e missões. Esses jovens serão o futuro dessas igrejas e serão times plantadores de igrejas em povos não alcançados, e eles estão aprendendo negócios em missões dentro da escola. Como usar um negócio, como solucionar um problema, como produzir produto ou serviço e junto com isso pensar em plantação de igreja, em fazer discípulos e alcançar povos que não conhecem Jesus.
Se quiser entrar em contato com Matt, mande um e-mail para matt@worldnationsusa.org.