O primeiro casal, a primeira briga
Livro da Semana | Carlos Catito Grzybowski e Jorge E. Maldonado
Quando uma decisão é tomada unilateralmente, frequentemente resulta em crise. O difícil caminho do diálogo.
A vida do primeiro casal não estava isenta de crises. A primeira e mais profunda delas acontece exatamente quando eles, em sua rotina, deixam de buscar a Deus como casal e passam a ouvir outras vozes que pretensamente têm instruções a lhes dar para a vida.
A crise nesta vida paradisíaca se inicia quando a serpente se encontra com a mulher, que está sozinha, sem a companhia do esposo. É interessante observar que a serpente escolhe exatamente esse momento, pois quando estamos sozinhos ficamos mais vulneráveis. Por isso o sábio afirma em Eclesiastes 4.9-10 que é sempre melhor serem dois. O fato de estar sozinha faz com que a mulher tome uma decisão sem consultar seu cônjuge – e essa decisão se mostra equivocada.
O processo de tomada de decisões entre casais é sempre um processo difícil quando não há um diálogo harmônico entre marido e mulher. Nosso machismo cultural afirma que a última palavra deve ser sempre do esposo, e, infelizmente essa modelação cultural entra pelos “poros” e acaba ganhando matizes de pseudo-espiritualidade em intepretações da Bíblia dentro de nossas igrejas. Lemos Efésios 5.22 (“mulheres, sujeitai-vos”) e fechamos os olhos para o verso imediatamente anterior que propõe a sujeição mútua (esposas aos maridos e maridos às esposas).
A verdade é que o caminho mais difícil – o estreito – aponta para a busca de unidade e harmonia e pressupõe, para alcançar este fim, que serão necessários muitos minutos de diálogo fértil e construtivo, com uma escuta respeitosa e de coração aberto ao outro. É preciso abrir-se à criatividade para superarmos a imposição egoísta do meu (que acredito que é o certo) sobre o teu (que por ser distinto é presumido como errado) e chegarmos ao nosso.
Quando a decisão é tomada unilateralmente, frequentemente resulta em uma crise!
Outro dado importante a ser observado nessa crise é que ela passa essencialmente pelo sensorial, sem buscar elementos racionais para a avaliação da realidade. A mulher vê (órgão dos sentidos) que a árvore era “atraente aos olhos” e que parecia “agradável ao paladar” (órgão dos sentidos). Então, deixa-se levar por essas sensações sem refletir (uso da razão) sobre o significado mais profundo de tudo aquilo. Atitude diferente da de Eva verificamos em outra mulher bíblica de destaque, Maria, que refletia nos acontecimentos e buscava significado no que lhe era de difícil compreensão (Lc 2. 51).
Tampouco Adão se detém para refletir sobre o estava acontecendo e deixa-se levar pela mesma busca por prazer sensorial. Essa busca é algo que afeta homens e mulheres desde os tempos mais remotos da humanidade. Em si, ela não é negativa. Porém, quando não é equilibrada com a reflexão racional, ela pode ter sequelas desastrosas. Hoje em dia, quando um cônjuge trai seu par em busca de um “algo a mais” (sensorial), acaba destruindo não só o relacionamento, mas também a autoestima do cônjuge e a construção de valores dos filhos. Jovens que buscam sensações orgásticas autocentradas “ficando” com vários parceiros/parceiras de forma inconsequente e descompromissada, sem o perceberem estão transformando os relacionamentos em padrões objetais (uso o outro para ter sensações) e corroendo seu valor pessoal. Da mesma forma que eu uso o outro, torno-me objeto de uso do outro (coisa), deixando de ser uma pessoa na relação.
A reflexão à posteriori (“ouvindo os passos do Senhor […] esconderam-se”, Gn 3.8) leva a sentimentos de vergonha (3.10), nojo, medo, e tantos outros negativos. Isso é muito comum em um processo de busca irrefletida pelo sensorial. Quantos jovens sentem-se mal após sentirem-se usados e descartados por seus pares? Como Amnom que, de sentir-se intensamente apaixonado, passou a sentir repugnância após estuprar sua própria irmã (2Sm 13.15).
A crise se intensifica com a troca de acusações (Gn 3.12 e 13) e o não reconhecimento de responsabilidade. Em um processo de crise geralmente pensamos em que o outro é culpado, em vez de nos humilharmos e reconhecermos a nossa parcela de responsabilidade. Sem a humilhação não há a possibilidade de manifestação da graça de Deus (1Pe 5.6). O orgulho próprio impede que desfrutemos de uma vida plena, pois, paradoxalmente quando reconhecemos que erramos é que crescemos. É também quando o relacionamento cresce, mas isso é difícil, pois, como Adão e Eva que tentaram cobrir-se com frágeis folhas em Gênesis 3.7, tememos que, ao expormos nossas falhas, o outro nos rejeitará, perderá sua admiração por nós.
O desfecho da crise entre o casal se dá no aprofundamento da distância relacional, com Deus “pré-vendo” que cada um dos componentes do casal passaria a priorizar outros elementos, o que causaria profundos problemas – uma mudança de foco da unidade relacional para atividades que são consideradas “mais importantes”. A mulher passaria a valorizar mais a maternidade, quebrando a harmonia conjugal e gerando uma prevalência do marido nos processos decisórios familiares (Gn 3.16; 20). O homem priorizaria o trabalho, através do qual tentaria restabelecer sua dignidade (Gn 3.17-19), mas sempre com sofrimento. O prazer sensorial que é buscado transforma-se em desprazer e o vínculo harmônico do Éden é perdido – já não há mais transparência entre o homem e sua esposa (Gn 3.21).