Livro da Semana   |   Por Paul Tournier

A maior parte das pessoas lê a Bíblia como se ela fosse um conjunto de proibições e prescrições cuja observância deveria nos assegurar uma existência sem culpa

Essa oposição entre a culpa do fazer e a culpa do ser nos ajudará agora a compreender melhor a Bíblia e a dissipar alguns trágicos mal-entendidos que muitas vezes parecem contrapor a experiência dos psicoterapeutas à mensagem bíblica, mas que, na realidade, elas estão plenamente concordes entre si.

A culpa do fazer está ligada aos tabus e a toda atitude moralista, cujos efeitos patogênicos são denunciados pela psicologia moderna. O tabu é uma proibição mágica: “Isto é impuro, não toque; isto é proibido, não faça”. Tabus são proibições carregadas de angústia ameaçadora. O moralismo procede disso, é a criação de um código rigoroso de proibições, de um código moral. Já mencionamos o comentário de um jovem, que o doutor Bovet nos relatou: “Religião é o que não se deve fazer!”.

A maior parte das pessoas lê a Bíblia com esse espírito, como se ela fosse um código moral revestido de autoridade sagrada, um conjunto de proibições e prescrições cuja estrita observância deveria nos assegurar uma existência isenta de culpa. Bela utopia, na verdade! Porém, como a Bíblia não pode ser obedecida em todos os seus detalhes nasce um desespero, uma angústia neurótica de ter cometido algum sacrilégio, uma culpa que não encontra solução.

Vimos, por exemplo, que a ordem de Cristo: “A ninguém julgueis”, não pode ser observada rigorosamente, pelo menos numa base permanente. O mesmo acontece com todas as ordens de Cristo. Veja o Sermão do Monte: nenhuma de suas exigências é plenamente realizável. Tome a mais simples, a de fazer aos outros não apenas o que eles nos pedem, mas o dobro (Mt 5.41). Pense no problema do emprego do tempo, já mencionado; o problema tornar-se-ia ainda mais insolúvel. E a exigência suprema é: “Sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste” (Mt 5.48). Então, me parece que é errado apresentar o Sermão do Monte como um esboço da ética de Jesus Cristo, como é feito com frequência. Uma ética pretende justamente ser aplicável. Ela é limitada. Define certo número de exigências precisas (tabus, para usar a linguagem dos psicólogos) de tal modo que se pudesse ter a consciência tranquila ao segui-las cuidadosamente. No entanto, diante de Jesus Cristo e do seu apelo está sempre faltando alguma coisa, e muito, em nossa justiça. Esse é o sentido, por exemplo, da história do jovem rico que perguntou o que deveria fazer para herdar a vida eterna (Mc 10.17-22). Jesus lembrou-lhe a lei de Moisés, o Decálogo, e esse jovem respondeu com consciência tranquila: “Mestre, tudo isto tenho observado desde a minha juventude”. E Jesus, olhando-o, o amou. Porém, com uma só palavra, Jesus mostrou imediata e justamente o que lhe faltava: “Vai, vende tudo o que tens […]”.

É preciso reconhecer que a lei mosaica dos primeiros livros do Antigo Testamento tem um caráter moralista, o de um código limitado, aplicável, cujo obediência meticulosa deve assegurar a consciência tranquila. “Os meus estatutos e os meus juízos guardareis; cumprindo-os, o homem viverá por eles” (Lv 18.5). Em consequência, essa lei é facilmente investida pelas características arcaicas, infantis e mágicas da moral dos tabus, fonte de culpas patológicas. A própria noção de impureza, de objetos impuros que não se deve tocar, que tem um grande lugar na legislação mosaica, tem algo muito parecido com o sentido formalista e mágico do tabu.

Outro resultado é uma angústia neurótica, porque se pode cometer um pecado sem saber, sem má intenção: “[…] quando alguém tocar em alguma coisa imunda, seja corpo morto de besta-fera imunda, […] ainda que lhe fosse oculto, e tornar-se imundo, então será culpado” (Lv 5.2). Assim, o que devia dispersar a culpa, uma definição explícita e exaustiva, própria para garantir a consciência tranquila, suscita uma culpa nova, infinitamente mais angustiante porque, por ser inconsciente, é impossível de se prever. Vejam outro exemplo: a arca de Deus tinha, aos olhos dos israelitas, esse caráter mágico do tabu; não se podia tocá-la. Deus ordenou a Davi que a transportasse a Jerusalém. Colocaram-na, para isso, num carro de bois. Mas em Nacom o carro ameaçou tombar, então “estendeu Uzá a mão à arca de Deus, e a segurou porque os bois tropeçaram”. Uzá morreu na mesma hora! O que nós sabemos sobre o poder dos tabus nos permite compreender que a ideia de ter tocado numa coisa tão santa pode bem ter sido a causa da sua morte. Mas as testemunhas oculares reconheceram uma punição de Deus que atingiu Uzá pelo pecado de que se tornou culpado numa intenção em si mesma tão louvável. E todo o povo e o rei foram tomados de angústia (2Sm 6.6-9).

De acordo com a palavra de Bergson, adotada por Ricoeur, a Bíblia toda nos mostra o choque entre duas mentalidades: a mentalidade infantil, formalista, moralista, a dos tabus, e a mentalidade profética. A primeira oferece uma moral limitada, definida, explícita, que localiza o pecado numa ação, numa coisa impura. Ela pretende apresentar ao homem uma salvação que ele possa assegurar a si mesmo observando cuidadosamente todas as suas leis rigorosamente, e ela o conduz, na realidade, a uma angústia sem limite. A segunda situa a culpa no coração do homem e não nas coisas, na intenção, no ser e não no fazer. Ela proclama o caráter ilimitado das exigências de Deus, a impossibilidade, por conseguinte, de o homem eliminar a sua culpa pela perfeição da sua conduta moral. Então, a resposta vem de Deus e não do homem; no perdão que Deus dá precisamente àquele que confessa a sua culpa inevitável, em vez de justificá-la.
O choque dessas duas mentalidades culmina nos debates que travam Jesus Cristo e os fariseus, e leva ao drama da cruz. Os fariseus encarnam esse espírito moralista, infinitamente sincero e escrupuloso, que “coa o mosquito” (Mt 23.24), tal é o seu cuidado em proteger-se contra a culpa. Eles são os herdeiros, como tantos crentes escrupulosos dos nossos dias, do aspecto mais primitivo da lei de Moisés, que eles ampliaram até chegar a um casuísmo esmagador.

• Trecho retirado do capítulo 14 de Culpa e Graça: Uma análise do sentimento de culpa e o ensino do evangelho, de Paul Tournier (Editora Ultimato)

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